A IMPORTÂNCIA DO MAD IN BRASIL

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A Importância do Mad in Brasil

            Mad in America, que é uma revista publicada na internet desde 2011, no ano passado deu boas vindas a duas afiliadas: Mad in America Hispanohablante, e Mad in Brasil.  Nós vemos essas afiliadas como parte de um crescente movimento global para repensar o existente “modelo de doença” para o tratamento psiquiátrico. Esse é um modelo que se espalhou pelo mundo inteiro, e – como vem se tornando cada vez mais claro – com efeitos doentios.

            E aqui está o que os leitores dessa revista na internet devem saber: Mad in Brasil tem uma oportunidade para se tornar um líder nesse esforço mundial para repensar a psiquiatria.

            Para se entender o por quê que tal “repensar” é tão necessário, é importante fazer uma revisão da história do nosso atual modelo de atenção: como o modelo de doença foi desencadeado, e as histórias que posteriormente vêm sendo contadas ao público. A revisão revela que as sociedades em todo o mundo têm organizado a sua assistência ao redor de uma falsa narrativa que está produzindo um enorme dano.

Uma Breve História do Modelo de Doença

             O modelo atual de assistência psiquiátrica – o “modelo de doença – foi iniciado em 1980, quando a Associação Psiquiátrica Americana (APA) publicou a terceira edição do seu Manual de Diagnóstico e Estatística (DSM III). Esse foi o momento em que a APA decidiu que os principais transtornos psiquiátricos de todos os tipos – transtornos psicóticos, transtornos de humor, e assim por diante – seriam concebidos enquanto doenças do cérebro, com cada doença distinta das outras.

            Contudo, não haviam descobertas científicas que justificassem que a APA viesse a adotar esse modelo de doença para categorizar transtornos psiquiátricos. Ao contrário, a APA assim agiu em grande medida por razões corporativas. Durante os anos 1970, a psiquiatria dos Estados Unidos sentiu que estava sob ataque, na medida em que haviam inúmeros críticos e grupos na sociedade questionando a sua legitimidade enquanto um ramo da medicina. A Psiquiatria, diziam os críticos, funcionava mais como uma agência de controle social do que como um provedor de cuidado médico. Como a APA buscava responder a essa crítica, seus líderes perceberam que ao adotar o que era chamado um modelo médico (embora seja mais correto descrevê-lo como um modelo de doença), a profissão poderia apresentar os psiquiatras ao público como “médicos de verdade” –  vestindo jalecos brancos e tratando as chamadas “doenças” do cérebro.

            Após a publicação do DSM III, em 1980, a APA iniciou uma campanha de relações públicas para vender esse novo modelo ao povo dos Estados Unidos. Ela treinou seus membros, para o que dizer à imprensa; passou a promover sistemáticas campanhas nacionais “educativas”; e passou a cortejar a imprensa, distribuindo prêmios para as mídias que relatassem esse avanço “revolucionário” na psiquiatria. A indústria farmacêutica, por sua vez, ajudou a dar suporte financeiro para essa venda do modelo de doença, concedendo subvenções à APA para os seus esforços de treinamento junto aos meios de comunicação, assim como para as suas campanhas educativas. As empresas farmacêuticas também passaram a contratar psiquiatras da academia enquanto consultores, assessores, palestrantes; e esses “líderes da opinião pública” –  como a indústria os chamava – ajudaram a remodelar o pensamento da sociedade.

            Com a psiquiatria e a indústria agora reunidas – em uma “profana” aliança – formada para vender esse modelo de doença, o público dos Estados Unidos passou a aprender que as doenças mentais eram devidas a desequilíbrios químicos no cérebro, e que as drogas psiquiátricas colocam essa química anormal em equilíbrio, como a insulina para o diabetes. Levando-se em conta a complexidade do cérebro humano, essa foi a história que passou a contar o espetacular avanço médico. A patologia que causava os principais transtornos mentais havia sido descoberta, e os pesquisadores estavam desenvolvendo drogas que corrigiam o problema.

            Isso tudo ocorreu no final dos anos 1980, e após Eli Lilly trazer para o mercado o Prozac, o público nos Estados Unidos passou a ouvir a história que essa droga ‘maravilhosa’ não apenas curava a depressão, mas que poderia tornar os pacientes “melhor do que estar bem”.

prozac

              A psiquiatria estava progredindo; e em seguida chegaram ao mercado os novos antipsicóticos que foram considerados muito melhores do que os antigos. A prescrição de drogas psiquiátricas explodiu, e hoje, um em cada cinco estadunidenses acima da idade de doze anos toma uma droga psiquiátrica diariamente.

             Embora essa história – dos desequilíbrios químicos e das drogas maravilhosas que corrigem essas anormalidades químicas – tenha sido primeiro contada ao público dos Estados Unidos, ela logo foi exportada aos países “desenvolvidos” ao redor do mundo. O método para exportar esse “modelo de doença” foi bem simples.

            No início dos anos 1990, pelo menos 50% dos psiquiatras que participavam do congresso anual da APA eram de fora dos Estados Unidos. Quase todos viajavam com todas as despesas pagas pelas empresas farmacêuticas, e durante o evento eles eram tratados com toda a pompa. Lá tinham café da manhã, almoço e jantar; tudo pago pelas empresas farmacêuticas, onde eles iriam ouvir famosos psiquiatras estadunidenses, provenientes das mais prestigiadas Faculdades de Medicina, a dizerem os últimos avanços na psiquiatria e a eficácia das novas drogas. Quando esses psiquiatras estrangeiros retornavam a seus países, com frequência com as suas malas cheias de brindes, eles evocavam o evangelho do novo modelo de doença. Além disso, aqueles em posições acadêmicas prestigiadas com frequência eram contratados pelas empresas farmacêuticas, para servir como consultores, palestrantes e assessores.

         Desse modo, o “modelo médico” da APA se espalhou pelo mundo inteiro. A Organização Mundial da Saúde (OMS) também passou a promover tais esforços, e tudo isso levou à globalização do modelo de doença em saúde mental.

Uma Falsa Narrativa de Ciência

         O entendimento comum é que essa é uma história de progresso, de uma especialidade médica saindo de um passado sombrio e entrando na brilhante luz da ciência moderna. Mas o que é realmente espantoso a respeito dessa toda história é que ela foi construída baseada em uma mentira, que sem muitas dificuldades pode ser revelada. A noção de que os principais transtornos mentais eram devidos a desequilíbrios químicos começou a desmoronar, faz muito tempo, no final dos anos 1970 e no começo dos anos 1980, chegando a 2005, havendo sido declarada morta em suas bases e enterrada na literatura científica.

            A hipótese de que os principais transtornos mentais, como a esquizofrenia e a depressão, poderiam ser causados por desequilíbrios químicos apareceu pela primeira vez nos anos 1960, após os pesquisadores haverem descoberto como os antipsicóticos e os antidepressivos atuam no cérebro. Os cientistas aprenderam que a Clorpromazina e outros antipsicóticos bloqueavam os receptores da dopamina no cérebro, e daí eles formularam a hipótese que talvez a esquizofrenia fosse devida a um excesso da atividade dopamínica no cérebro (e, portanto, que as drogas funcionavam opondo-se a essa atividade). De forma semelhante, eles descobriram que os antidepressivos aumentavam a atividade da serotonina e outras ‘monoaminas’ no cérebro, e como consequência eles formularam a hipótese de que talvez a depressão fosse devida ao problema oposto (muito pouca serotonina).

         Os pesquisadores então procuraram determinar se essas hipóteses eram verdadeiras. Eles necessitavam verificar se as pessoas diagnosticadas com esquizofrenia tinham um excesso de atividade de dopamina, ou se os pacientes deprimidos tinham muito baixa a atividade serotonérgica. A teoria da baixa serotonina para a depressão foi a primeira a ser derrubada. Tão cedo quanto 1984, os pesquisadores do Instituto Nacional de Saúde Mental (National Institute of Mental Health) concluíram que “Elevações ou quedas no funcionamento dos sistemas serotonérgicos per si não são susceptíveis de serem associados com a depressão. “ Eles não haviam encontrado nada de errado com o sistema serotonérgico nos pacientes deprimidos.

           Investigações subsequentes produziram o mesmo resultado. Enquanto o público estava sendo informado de como a depressão era devida à baixa concentração de serotonina, pesquisadores familiarizados com os estudos científicos estavam chegando a uma diferente conclusão. Aqui está uma pequena amostra de tais achados:

1995: “Não há evidências científicas quaisquer de que a depressão clínica seja devida a qualquer tipo de estado de déficit biológico. “ – Colin Ross, professor associado de psiquiatria no Southwest Medical Center em Dallas, Texas.

1999: Décadas de pesquisa “não confirmaram a hipótese de diminuição de monoamina para a depressão”.  Livro Didático de Psiquiatria da Associação de Psiquiatria Americana APA).

2000: “Não há clara e convincente evidência de que a deficiência de monoamina leve à depressão; quer dizer, não há um ‘real’ déficit de monoamina.”  Livro didático de Psicofarmacologia Essencial (Essencial Psychopharmacology textbook).

2012: “Eu não penso que haja qualquer corpo de dados convincentes de que alguém tenha alguma vez encontrado que a depressão esteja associada, em uma extensão significativa, com a perda de serotonina. ” Alan Frazer, diretor do Departamento de Farmacologia do Centro de Ciências da Saúde da Universidade do Texas.

              As investigações com a teoria da hiperatividade da dopamina para a esquizofrenia produziam dados bem mais complicados, mas no começo dos anos 1990 vários renomados pesquisadores americanos concluíram que não haviam “boas evidências para a perturbação da função da dopamina na esquizofrenia. “ Em 2002, essa conclusão ganhou uma grande repercussão, ao ser assumida pelo diretor do Instituto Nacional de Saúde Mental (National Institute of Mental Health),  Steve Hyman.  Ele escreveu: “Não há evidência forte de que uma lesão no sistema dopamínica seja uma causa primária da esquizofrenia. “

          Finalmente, em 2005, Kenneth Kendler, coeditor chefe do Psychological Medicine, resumiu essa história de pesquisa de um modo sucinto: “Temos ido à caça de grandes explicações neuroquímicas simples para transtornos psiquiátricos e não as encontramos. “

       Tal é a história que pode ser encontrada na literatura científica. A teoria do desequilíbrio químico dos transtornos mentais foi investigada e desacreditada. Mas essa descoberta não foi comunicada ao publico, seja nos Estados Unidos ou em outros países. Ao contrário, o público foi levado a acreditar que o oposto era a verdade. Em 2005, no mesmo ano em que Kendler declarou morta a teoria do desequilíbrio químico para os transtornos mentais, uma pesquisa conduzida pela Associação de Psiquiatria Americana (APA) verificou que 75% dos adultos estadunidenses acreditavam que “doenças mentais são usualmente causadas por um desequilíbrio químico no cérebro. ”

             Esta foi a grande mentira que foi promovida para vender o modelo de doença ao público. A história foi primeiramente contada ao público dos Estados Unidos, e então, como parte da globalização do modelo de doença para a saúde mental, ela foi contada ao público dos países do mundo inteiro. A globalização do modelo de doença levou a um delírio da sociedade acerca da biologia dos transtornos mentais.

          A segunda parte dessa narrativa, que surgiu da aliança profana da psiquiatria americana e da indústria farmacêutica, envolveu a promoção de novos medicamentos psiquiátricos ‘de segunda geração’ para o público. Os novos antidepressivos, antipsicóticos e outros medicamentos psiquiátricos foram considerados bastante seguros e eficazes, e muito melhores do que os medicamentos de primeira geração; mas hoje essa história se desfez. Sabemos que os ensaios clínicos foram influenciados pelo design para fazer com que os novos medicamentos parecessem melhores; sabemos que os resultados das pesquisas publicadas nas revistas médicas exageraram os benefícios das drogas e obscureceram muitos de seus riscos; e sabemos que estudos de longo prazo não conseguiram descobrir que as drogas levam a melhores resultados. De fato, em tais estudos de longo prazo, os pacientes não medicados têm se saído regularmente melhor.

             Juntas, essa narrativa de desequilíbrios químicos e drogas altamente eficazes criou uma falsa ‘narrativa da ciência’. Mas os Estados Unidos e outras sociedades organizaram seus cuidados em torno dessa falsa narrativa, e hoje é fácil se ver o dano causado. Em cada país que o modelo de doença para os cuidados em saúde mental foi adotado, o fardo da doença mental aumentou drasticamente.

O Aumento do Fardo da Doença Mental

              Em 2010, publiquei um livro intitulado Anatomia de uma Epidemia, que, entre outras coisas, investigou o crescente número de pessoas que recebem um pagamento por invalidez por causa de uma doença psiquiátrica. Nos Estados Unidos, o número de adultos que recebem pensão governamental por invalidez devido a uma doença mental subiu de 1,25 milhões em 1987 para quase 4 milhões em 2007 (e já chegou a cerca de 5 milhões.) O número de jovens de 18 anos e com menos idade recebendo um pagamento de invalidez devido à doença mental aumentou de 16.200 em 1987 para 728.000 em 2011.

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            Após Anatomia de uma Epidemia ter sido publicado, comecei a olhar para o número de pessoas consideradas como ‘incapacitadas’ por doença mental em outros países. E numa sociedade ou em outra, invariavelmente eu encontrei a mesma imagem: em cada país em que havia sido adotado o modelo de doença para os cuidados em saúde mental, o número de pessoas com ‘incapacidade’ devido a transtornos mentais havia aumentado dramaticamente. Isso era a verdade nos países escandinavos, na Alemanha, na Alemanha, na Austrália, na Nova Zelândia, e assim por diante. Da mesma forma, como o ‘modelo de doença mental’ foi globalizado, a Organização Mundial da Saúde relatou que o fardo global da doença mental – e, em particular, o fardo devido à depressão – aumentou consideravelmente nas últimas décadas.

            Esses são marcadores de um paradigma fracassado de assistência em saúde mental. A história explica a origem desse fracasso: as sociedades organizaram seus cuidados psiquiátricos em torno de uma narrativa falsa. É por isso que o atual paradigma do cuidado precisa ser repensado, e o por quê o ‘repensar’ necessita ser conduzido através de uma avaliação honesta da literatura científica.

Mad in America

          Fundamos o site Mad in America em 2011 com esse objetivo em mente. Nós publicamos regularmente resultados da literatura científica que apoiam a criação de um paradigma diferente de cuidado, que se concentraria mais em tratamentos psicológicos e não-medicamentosos (dieta, exercício, apoio social, etc.). No entanto, esses achados que desmentem a atual forma de conceber a saúde mental não são regularmente divulgados nos principais meios de comunicação. Na verdade, eu acho que Mad in America é a única mídia nos Estados Unidos que publica regularmente esses resultados.

           Além disso, Mad in America recrutou um grupo internacional de escritores, com uma variedade de backgrounds – psiquiatras, psicólogos, assistentes sociais, jornalistas, pessoas com experiência de vida e membros da família – para escrever blogs que explorem tanto as falhas do sistema atual quanto promissoras alternativas. Nós também regularmente apresentamos as histórias pessoais de pessoas com experiência vivida enquanto “pacientes mentais.” Suas histórias muitas vezes dizem dos cuidados psiquiátricos que fazem mais mal do que bem.

           Estamos publicando Mad in America há seis anos e é encorajador que o pensamento social, nos Estados Unidos e no exterior, esteja mudando e que haja um crescente apelo para se repensar o atual paradigma de cuidados baseado em drogas. Em uma recente conferência da INTAR, na Índia, houve oradores da Organização Mundial da Saúde, da International Disability Alliance e do Escritório das Nações Unidas para os Direitos das Pessoas com Deficiência, e ao final da Conferência houve um acordo unânime de que uma nova “narrativa global de saúde” é necessária, um paradigma que possa substituir o fracassado ‘ modelo médico’ que hoje domina a saúde mental.

            “As pessoas estão clamando pela mudança”, disse Alberto Vasquez, coordenador de pesquisa do escritório do relator especial para as Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. “Queremos ver outra coisa.”

Mad in Brasil

          Isso nos leva ao Mad in Brasil, e por isso ele é tão importante para essa luta global maior (e, em particular, para nós do Mad in America).

            Em Mad in America, somos “críticos” do sistema existente e, portanto, podemos ser vistos como se esforçando para reformar o sistema, de fora. Os fundadores e editores de Mad in Brasil vêm de dentro do sistema.

            Os criadores do Mad in Brasil são Fernando de Freitas e Paulo Amarante. Paulo Amarante tem sido um dos líderes da reforma psiquiátrica no Brasil, desde a década de 1980, e tanto ele como Fernando de Freitas foram dirigentes da Associação Brasileira de Saúde Mental (ABRASME). Ambos são membros do corpo docente da Fundação Oswald Cruz (FIOCRUZ), a mais importante instituição federal de educação e de pesquisa do Brasil dedicada à melhoria da saúde pública.

          É precisamente por isso que o Mad in Brasil pode se tornar um líder neste esforço global para se repensar o paradigma atual do cuidado e desenvolver novas abordagens aos serviços psiquiátricos. Mad in Brasil está sendo liderado por editores que estão em posição de buscar mudanças nos serviços e nos tratamentos psiquiátricos. O equivalente para nós seria algo como se no Mad os seus editores nos Estados Unidos trabalhassem para o Instituto Nacional de Saúde Mental (National Institute of Mental Health), e se assim fosse, as possibilidades de mudança nos Estados Unidos – e para reformular o pensamento da nossa sociedade – seria muito maior.

         É assim como nós do Mad in America pensamos o Mad in Brasil. Vemos este site como um momento ímpar para se repensar o atual modelo de atenção à doença, e acreditamos que o Mad in Brasil, com seus relatos sobre os esforços de reforma no Brasil, irá produzir notícias que serão de interesse para Mad in América em todo o mundo.

1 COMENTÁRIO

  1. Parabéns aos editores do Mad in Brazil e ao Robert Whitaker pela iniciativa de fundar o Mad in America.
    Que mais e mais profissionais de saúde possam despertar para o fato de que as doenças precisam ser
    enfrentadas principalmente com a mudança de hábitos (alimentação, atividade física, meditação, etc) e não
    com pílulas mágicas que possam resolver todos os problemas por nós.