Por que eu não gosto da ideia que o transtorno mental é uma doença

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jmoncrieff

Tenho estado recentemente muito ocupada organizando o programa RADAR, para ter tempo suficiente para blogs, e no momento estou me preparando para dar uma palestra na conferência da Associação Americana de Filosofia e Psiquiatria em maio. O título dessa palestra é: Muitas maneiras de ser humano: desafiar a visão médica dos transtornos mentais e as implicações para a psiquiatria.

Este é o primeiro de uma série de curtos blogs em que eu apresento o meu pensamento que está por trás desse título.

O título foi tirado de um livro do psiquiatra britânico Alec Jenner e de três colegas portugueses: Schizophrenia: A Disease or Some Ways of Being Human?  O livro esboça uma abordagem para a compreensão da esquizofrenia que desafia a ideia de que a esquizofrenia pode ser entendida usando o paradigma causa e efeito das ciências naturais.

Se alguns ou todos os transtornos mentais são doenças no sentido médico essa é tanto uma questão filosófica quanto empírica. Vou abordar ambas as áreas em blogs futuros, olhando em particular o trabalho de Thomas Szasz, mas primeiro eu quero expor o que eu não gosto com a ideia de que os transtornos mentais são doenças ‘como qualquer outra’.

Se a doença mental é uma doença cerebral, então o comportamento que é manifestado é irrelevante e sem interesse. Isso não teria nada a ver com o ser humano enquanto tal. Não haveria nada a aprender com isso, e nós poderíamos simplesmente eliminar o comportamento intruso na medida do possível. Por conseguinte, de acordo com essa forma de pensar temos uma obrigação de libertar a pessoa ‘normal’ que está enterrada em algum lugar por trás da doença. Os comportamentos e experiências (ou sintomas) não têm nada a ver com essa pessoa como uma pessoa, eles são apenas uma parte aberrante de seu corpo físico.  Erradicando a condição sem deixar rastro, nada seria perdido, não se incorrendo em nenhum custo inerente a esse procedimento.

O que me atraiu para a psiquiatria (e acredito que a muitos outros) não é que os sintomas da doença mental são curiosidades bizarras decorrentes de irregularidades cerebrais. Se fosse esse o caso, eu poderia ter estudado e me formado em neurologia. O que de fato me atraiu à psiquiatria, e o que ainda me interessa, é a intuição de que o transtorno mental tem algo de profundo para nos ensinar sobre a natureza do ser humano. E não se consegue isso refletindo anormalidades cerebrais, mas sim por o que consistem as manifestações extremas, bizarras, geralmente disfuncionais e às vezes insondáveis, para o ser humano enquanto tal.

O título da palestra também pretende enfatizar que os distúrbios mentais precisam ser entendidos da mesma forma que entendemos outros tipos de comportamento humano. Não há uma distinção categórica entre comportamento normal e emoções e o que poderíamos chamar de transtorno mental. Isto não é o mesmo que dizer que todo o transtorno mental está em um continuum com a normalidade. Depressão e ansiedade podem ser familiares a todos nós até certo ponto, mas apesar da pesquisa dizer que todos nós ouvimos vozes, eu acho que as experiências psicóticas autênticas são raras, e a maioria das pessoas provavelmente só obtêm um vislumbre do que tais experiências podem ser quando elas estão muito cansadas ou tomaram certas drogas que alteram a mente. Portanto, eu não acho que faça sentido sugerir que a psicose está em um contínuo com a experiência normal. No entanto, não é tampouco uma coisa do tipo diferente. Como Luc Ciompi, o fundador do projeto suíço Soteria comentou (citado no livro de Jenner e colegas), estados psicóticos, como é o que às vezes é chamado de “esquizofrenia”, são melhor pensados enquanto um processo de vida do que enquanto uma doença.

Como outro psiquiatra suíço disse, Manfred Bleuler (também citado em Jenner et al.), as pessoas com ‘esquizofrenia ‘ se “debatem contra as mesmas dificuldades que todos nós lutamos em nossas nossas vidas “.

Para tentar entender esses estados extremos e incomuns de ser, o que precisamos não são métodos especializados da ciência natural. Ao contrário, são os modos pelos quais entendemos o comportamento comum e cotidiano que podem ajudar (se for possível) a revelar a natureza e o significado da loucura. A loucura é uma maneira incomum de ser humano, mas, não obstante, uma maneira de ser humano!

Eu entendo que isso possa não ser uma ideia nova para os leitores do Mad in Brasil, mas é por isso que eu queria compartilhar isso aqui – Estou interessada em suas respostas.

(trad. Fernando Freitas)