Os pacientes que ouvem vozes têm o direito de recusar remédio psiquiátrico? Um movimento crescente diz que sim

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No final do ano passado, tive a oportunidade de conhecer de perto o movimento do ‘hearing voices’ (‘ouvidores de vozes’), em minha curta temporada em Massachusetts, a convite de Robert Whitaker. A experiência que tive com o Hearing Voices Network – USA -. se soma a algumas outras  que conheci de práticas em saúde mental, coordenadas e feitas por usuários e ex-usuários psiquiátricos. São experiências cujos protagonistas são usuários e ex-usuários da psiquiatria, que compartilham suas vidas de modo a sobreviver à própria psiquiatria.

Destaco os companheiros do Hearing Voices com quem tive a oportunidade de conhecer um pouco como trabalham: Marty Madge e Caroline Mazel-Carlton. Como não ouço vozes como eles, não pude participar da reunião dos ‘ouvidores de vozes’. Marty e Carol são os coordenadores. IMG_3006

O The New York Times fez uma matéria com a Caroline, onde se pode ter uma ideia do que ela e seus companheiros vem fazendo. Veja aqui.

Como introdução que contribua para que melhor conheçamos o que representa o movimento internacional dos ‘ouvidores de vozes’, tomemos como referência um artigo de que acaba de sair publicado no site da STAT, assinado por SHIRLEY S. WANG ([email protected]). 

O que deve ser sublinhado, como é sugerido no próprio artigo de Shirley, é que o movimento dos ‘ouvidores de vozes’ não pretende que a sua experiência seja transformada em uma entre outras práticas psiquiátricas dominadas pelo paradigma bio-médico. A meta dos ‘ouvidores de vozes’ é buscar des-psiquiatrizar a sua experiência de ‘ouvir vozes’.

Vejamos como isso funciona.

Ela ouvia vozes com frequência: três homens zombando, dizendo ser ela estúpida, exortando-a que se matasse.  Os psiquiatras diagnosticaram esquizofrenia. E passou a ser tratada como esquizofrênica. Hoje em dia, Rachel Waddinghan rejeita esse diagnóstico.

 

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Após décadas tomando medicamentos e saindo e voltando aos hospitais psiquiátricos, Rachel passou a se relacionar com as suas vozes de uma nova maneira. E que nova maneira é essa? Ela simplesmente não mais tenta banir as vozes usando as drogas, mas as aceita como fazendo parte dela própria. Ela agora considera as vozes como uma reflexão de seus sentimentos e experiências, sinais que a ajudam a entender quando e por quê ela se sente esmagada, oprimida – ao invés de as tomar como autoridades que a comandam a seguir algo.

Pois bem, essa abordagem dos ‘ouvidores de vozes’ integra um movimento internacional que levanta questões fundamentais sobre o que significa ser doente mental. A questão que está no centro do debate é a seguinte: os pacientes que ouvem vozes – e sofrem outros sintomas que os psiquiatras consideram graves – têm o direito de direcionar o seu tratamento, mesmo que isso implique na rejeição das terapias convencionais, tais como a medicação psiquiátrica?

Alguns psiquiatras tradicionais têm preocupações de que as pessoas que estão fora de contato com a realidade e que desprezam o tratamento possam representar um perigo para si ou para os outros.

Mas o movimento, que começou na Holanda, se espalhou rapidamente nas últimas três décadas; agora há grupos de apoio “ouvidores de vozes” nos cinco continentes, e mais de 180 grupos apenas no Reino Unido, ancorados na Rede de Ouvidores de Vozes. A ideia tem sido mais lenta em ganhar corpo nos EUA, onde é fortíssimo o modelo médico para o tratamento de doenças mentais, mas também lá o movimento vem ganhando força.

Atualmente, existem cerca de 90 grupos de apoio em todo os Estados Unidos, de acordo com a Rede de Ouvidores de Vozes dos EUA. Apenas no mês passado, os defensores da abordagem realizaram cinco sessões de treinamento para líderes de grupos de apoio. E em agosto próximo, o Congresso Mundial de Ouvidores de Vozes será realizado na Universidade de Boston, a primeira vez que a reunião acontecerá nos EUA. Os organizadores esperam cerca de 500 participantes; embora alguns tenham se preocupado em ter que solicitar vistos para os EUA, porque há a pergunta sobre o estado de saúde mental do solicitante.

Muitos no movimento dizem que não estão mentalmente doentes, porque suas alucinações não causam angústia ou interferem significativamente com a sua capacidade de se mover de forma produtiva através da vida. Eles dizem que os diagnósticos são muitas vezes subjetivos e não confiáveis. De fato, alguns dizem que ser rotulado como mentalmente doente – ou ser empurrado para seguir em medicação – causou mais problemas do que as vozes que ouvem.

Os líderes do movimento têm o cuidado de reconhecer que antipsicóticos e outros medicamentos podem funcionar para alguns pacientes. Mas eles também observam que há uma inversão de valores entre esses benefícios, que podem ser substanciais, como são os efeitos colaterais graves e muitas vezes desagradáveis, sendo exemplar o ganho de peso significativo que pode levar à diabetes. E há perguntas sobre a eficácia a longo prazo dos medicamentos psiquiátricos.

Em oficinas e grupos de apoio, os defensores do movimento tentam tranquilizar as pessoas que ficam assustadas com a experiência de ouvir vozes, porque não é incomum ouvir vozes, e que não necessariamente isso pressupõe uma espiral na psicose. Eles oferecem estratégias concretas para lidar, incluindo buscar firmar compromissos para conversar com as vozes em intervalos periódicos – e fazer uso de fones de ouvido quando estiverem conversando com as vozes, e então ir olhando para o mundo exterior como se o sujeito estivesse simplesmente falando pelo telefone. Um workshop que ocorrerá no Congresso Mundial de Ouvidores de Vozes promete dar dicas sobre como negociar realidades alternativas.

“Para nós, as vozes são um sinal, elas dizem algo a você. algo sobre a sua vida.”

Dr. Dirk Corstens

“Para nós, as vozes são um sinal, elas são algo dizendo a você coisas significativas sobre a sua vida”, disse Dr. Dirk Corstens, um psiquiatra e psicoterapeuta em Maastrich (Holanda) e um líder do movimento. “Você tem que as ouvir (as vozes).  Não obedecer, mas ouvir.” Muitos ouvidores de vozes recuperados dizem que uma vez que passaram a se engajar com as vozes, a sua saúde mental melhorou – e que também as vozes se tornaram mais agradáveis.

Desde que abandonou os seus medicamentos, por exemplo, Waddingham passou a ser capaz de ter empregos em tempo integral, como servir como gerente de projeto em uma organização de defesa de saúde mental sem fins lucrativos. E casou-se.

Agora, com 39 anos, ela mora em Faversham, Inglaterra, a cerca de 50 milhas a leste de Londres, trabalha como terapeuta e dá discursos percorrendo todo o país sobre estratégias de ouvir vozes e de recuperação. Ela também está escrevendo um livro e se candidatando a programas de PHD.

Ela ouve mais vozes do que nunca – cerca de 13 no momento, ela estima. E elas continuam a dizer-lhe para se machucar ou para machucar os outros. Waddingham reconhece que ouvir as vozes “pode ser difícil”. Ela ainda tem dias em que sente ser difícil lidar com elas e que precisa se sentar sozinha e puxar um cobertor para se agasalhar e se sentir segura. Ainda assim, ela escolhe não usar medicação – mesmo que as drogas possam reduzir o número de vozes que ouve.

“Eu não sou um caso trágico”, disse ela.

“Insólito, mas não patológico”

Muitos psiquiatras entendem que perder o contato com a realidade – por exemplo, ouvindo vozes – é um sintoma por excelência de doenças mentais graves e que as drogas são o tratamento mais eficaz para evitar que os pacientes prejudiquem a si próprios ou aos outros.

Há algumas pesquisas que apoiam essa preocupação: em um estudo seminal dos EUA, com 1.410 pessoas com esquizofrenia, aqueles que experimentaram alucinações, incluindo ouvir vozes que outros não ouvem, eram mais propensos a cometer violência grave, embora a probabilidade geral de violência fosse ainda baixa, de acordo com Jeffrey Swanson, professor de psiquiatria e ciências comportamentais na Duke University. Ele foi um coautor desse artigo, publicado em 2006 no Archives of General Psychiatry.

“Os psiquiatras são os especialistas em tratamento que podem ser úteis, então eles devem estar envolvidos … e tentar garantir que os pacientes não percam a percepção e que venham a ter sérios problemas”.

JEFFREY SWANSON, PROFESSOR DE PSIQUIATRIA

É essa a opinião dominante.

Mas Swanson também diz que há “uma grande diferença” entre pacientes que sabem que as vozes apenas estão sendo ouvidas por elas próprias e aqueles outros pacientes que não sabem.

A maioria dos psiquiatras hoje em dia quer que os pacientes “compartilhem na tomada de decisões” e elaborem um plano de tratamento personalizado, disse Swanson. “Ao mesmo tempo”, acrescentou, “os psiquiatras são os especialistas em tratamento que podem ser úteis, então eles devem ser envolvidos, monitorar o que está acontecendo e tentar garantir que os pacientes não percam a percepção e tenham problemas sérios. ”

Quão comum é ouvir vozes? Os números variam muito, mas uma revisão de 17 estudos existentes em nove países encontrou que, em média, cerca de 1 em cada 8 pessoas entrevistadas relataram uma experiência de ouvir uma voz que não era real.

“Os resultados apoiam o atual movimento que busca estar longe de modelos patológicos de experiências incomuns e para a compreensão da audição de vozes como ocorrendo em um continuum na população em geral”, escreveram os pesquisadores no estudo, publicado em 2011 no Mental Health Journal.

Charles Fernyhough, professor de psicologia da Universidade de Durham no Reino Unido, que estuda o tema, disse que uma teoria afirma que o fenômeno parece ser semelhante à auto-fala que todos fazemos. Parece que uma certa porcentagem de pessoas não experimenta seus monólogos internos como sendo algo que elas próprios produziram, levando-as a experimentar as vozes como provenientes de outra pessoa.

Ouvir vozes “é incomum, mas não é em si patológico”, disse Fernyhough.

Encontrando conforto com os amigos invisíveis

Lisa Forestell, de Somerville, Mass., sempre ouviu vozes durante o tempo que ela pode lembrar. Quando ela era muito jovem, ela pensou que todos faziam o mesmo, e falava em voz alta para ela, eram duas garotas e um menino. “Não parecia notar qualquer tipo de feedback negativo do resto do meu mundo”, disse ela.

Mas quando ela começou a escola, uma professora disse a ela que as vozes não podiam vir para a escola. Forestell “fez um pacto” com suas vozes: que elas só conversariam com ela em particular. E funcionou.

Ela ainda foi provocada. Percebeu que na mídia as pessoas que ouviam vozes eram muitas vezes retratadas como loucas ou criminosas. “O que [essas experiências] me ressaltou é que eu era “outro”. Fiquei estranha”, disse Forestell, que agora tem 51 anos. “Considerava que era uma superpotência ou uma coisa muito legal, mas realmente a mensagem que estava recebendo era que eu não era uma coisa boa. ”

Embora ela achasse suas vozes significativas e reconfortantes – um pequeno grupo de melhores amigos que ficaram na cabeça dela – ela por décadas não contou a ninguém novamente.

Somente em 2009, enquanto trabalhava para o Western Massachusetts Recovery Learning Community, querendo iniciar um grupo de ouvidores de vozes, é que ela finalmente confiou em seu supervisor. “Foi terrível”, disse Forestell.

Uma das vozes cresceu com ela –  as outras duas optaram por permanecer crianças – e todas as vezes são sons. Quando ela decidiu publicar como ouvidora de vozes, por exemplo, as vozes foram cautelosas e disseram que não queriam ser citadas. Agora elas estão incentivando-a a falar, disse Forestell.

Para Rachel Waddingham, que começou primeiramente a ouvir vozes quando tinha 18 anos, aprender a lidar com elas sem medicação mudou sua vida.

Depois que começou a frequentar a Rede de Ouvidores de Vozes há cerca de 15 anos, ela tomou uma decisão consciente de não querer se identificar como mentalmente doente. Quando ela disse a seu psiquiatra de longo prazo que queria diminuir a medicação, ela obteve resistência. “Por que você não me deixa ajudar você?”, perguntou o psiquiatra.

Mas Waddingham disse que se ela tivesse uma escolha, ela não gostaria de se livrar de suas vozes. Elas a ajudaram de várias maneiras: ela aprendeu a se concentrar, a bloquear as vozes, e é habilidosa no gerenciamento do conflito – porque as vozes podem ser “bastante duras”. Ela também acha que ela passou a ser mais generosa como pessoa, mais aberta para perspectivas dos outros e a estar mais em contato com as suas próprias ansiedades. As vozes servem como um tipo de sistema de alerta precoce para o estresse interno.

“Se eu presto atenção, eu sei antes de que algo se torne um problema”, disse ela.

13 COMENTÁRIOS

  1. SENSACIONAL, parabéns Fernando.
    Que esse movimento cresça no Brasil também. Há alguns anos atrás participei de um workshop com um psiquiatra incrível, uma visão totalmente diferente do tradicional, o tema era o “sentido na psicose”, foi uma experiência inesquecível.
    Todos os ditos “surtos , crises ou algumas ditas patologias” tem uma razão, mensagem oculta, tudo tem um porquê.
    Abafar com drogas, remedinhos milagrosos desconecta a pessoa das coisas que ela de fato deveria se conectar. Ao ler este texto, rapidamente me remeti aquele momento.
    Gratidão Fernando, parabéns a todos os corajosos que ousam propagar verdades a muito tempo escondidas.😊

  2. O mais importante é a relação de risco em que a pessoa se encontra. A capacidade de discernimento é muito sutil e faz toda diferença para que a pessoa consiga tomar decisões. Penso que as habilidades científicas podem evoluir vom uma percepção mais humana e integral do ser, servindo como norteador de seu crescimento pessoal.

  3. Genial. Sempre percebi em minha prática com usuários de psiquiatria que as vozes poderiam ser pensamentos e reflexões internas dos usuários, projetadas ou não reconhecidas como tal. Este movimento é um passo importantíssimo, e precisamos cuidar dele com atenção e força, agregando depoimentos, compartilhamentos, união e confiança, para que sejamos presentes e a indústria medicamentosa nã nos englobe.

  4. A experiência de ouvir vozes é muito subjetiva, a desorganização mental pode ocorrer com as alucinações auditivas, mas quando não há desorganização mental com elas, não há porque a pessoa passar por um tratamento psiquiátrico quando o mesmo não tem eficácia garantida com relação a eliminação das alucinações em si – ou a eliminação das mesmas diante dos efeitos colaterais não é benefica, se a pessoa tem condições de conviver com elas e mesmo exercer controle, como afirmam as pessoas na reportagem. No Brasil tem o quanto que ouvir vozes pode ser indicio de mediunidade, de contato com individuos já falecidos, ou mesmo um fenômeno paranormal – se a voz tiver uma identidade própria, uma consciencia inteligente…enfim…tudo é possível!!!

  5. Muito interessante.Acho que eu uma forma de fazer com que as pessoas não se sintam doentes ou pelo menos, que não mais façam uso de medicação e tenham auto controle sobre si mesmos apesar de ordens e comandos mas que não sigam ordens e possam viver com ido como um alerta de situações de stress e de que encarem de forma mais serena.

  6. Pela comviência que tive com uma ouvidora de vozes concordo com a discussão do direito das ouvintes pois a pessoa que conheci produziu 3 li vros ainda não publicados e aparentemente lógicos, sendo direcionados à crianças 2.a adolescentes e público em geral( este com requinte de Ágata Crhiste. Mas quem publicaria livro de uma empregada doméstica, semi.analfabeta e ainda ouvinte de vozes? Hoje aposentada, vive em Rondonia como(+-louca) ao que não concordo e frustrada por não ter conseguido a publicação. Um dia ainda a ajudarei…

  7. A insistência dos espíritas em tratar o espiritismo como religião causa um prejuízo severo às pessoas, no resto do mundo, que precisam de suas técnicas e métodos de tratamento…
    Espiritismo não é e não pode ser religião!!! É apenas a constatação da realidade da vida nesse e em outros sistemas, mundos.