Conhecimento de Estados Mentais e do Comportamento: Insights de Heidegger e Outros

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jmoncrieff-150x150Este é o terceiro de uma série de blogs apresentando uma análise filosófica do sistema moderno de saúde mental.

 

Wittgenstein esclarece que os estados mentais não são processos cerebrais privados ou universalmente idênticos ou eventos mentais. São padrões socialmente significativos e reconhecíveis de comportamentos característicos dos seres humanos. Nunca podemos entender ou conhecer esses estados olhando no cérebro ou construindo modelos ou teorias sobre quais estados mentais particulares consistem e como se relacionam um com o outro. Os estados mentais são propriedades de pessoas vivas em ‘formas de vida’ humanas, expressadas em atividades que são intencionais, interativas e cujo significado é inextrincável do seu contexto social. Não são entidades abstratas, independentes do contexto, como funções matemáticas ou elementos o são.

Muitos pensadores têm argumentado que essas propriedades significam que os estados mentais e a atividade humana não são susceptíveis aos métodos da ciência natural. O método científico, como se desenvolveu em física, química e biologia, é baseado na previsibilidade do mundo material, o que nos permite olhar para uma determinada situação e determinar suas ‘causas, olhar para adiante de um conjunto de circunstâncias e prever o que irá ocorrer.

O comportamento humano é inerentemente imprevisível, no entanto; e por isso argumenta-se que a compreensão é logicamente diferente da nossa compreensão do mundo material. [1] O comportamento humano não é causado da mesma forma que os eventos naturais, estes sim podem ser ditos como sendo causados. As pessoas fazem escolhas e fazem as coisas por razões. Essas escolhas são influenciadas e restritas, mas não determinadas, pelas circunstâncias da vida de uma pessoa, que incluem toda a história da sociedade humana que, ao longo dos séculos, estabeleceu as formas em que entendemos e respondemos aos fenômenos do mundo, incluindo cada outro. [2]. Mas a história – tanto pessoal como social – não é um evento ou entidade externa. Nossa história faz parte de quem somos e de quem nos tornamos. Faz parte da nossa individualidade. Não podemos distinguir nossa história das nossas ações, da maneira que podemos isolar causas das consequências nos sistemas físicos ou mecânicos.

A ideia de que os métodos da ciência natural possam ser transferidos para o estudo da atividade humana é comumente referida como ‘positivismo’, e os filósofos têm desafiado essa suposição desde o século XIX. Pensadores alemães, como Wilhelm Dilthey, seguindo as ideias de Hegel sobre a evolução cultural e social do pensamento humano, argumentaram que os aspectos distintivos da atividade humana exigem um tipo diferente de abordagem. Dilthey contrastou o tipo de conhecimento que é produzido pela ciência natural, que é pela explicação causal (Erklaren), da interpretação do sentido ou o entendimento, que é apropriada para o estudo do mundo humano (Verstehen).[3]

Ser e TempoSucessor intelectual de Dilthey, a mais famosa obra de Martin Heidegger é particularmente útil aqui. Em Ser e Tempo [4] Heidegger descreve como nossa atividade ordinária e cotidiana sempre envolve um certo tipo de ‘conhecimento’, que consiste em uma familiaridade com o ambiente que está ‘disponível’ para fins humanos. Consiste portanto em identificar e usar objetos relevantes e úteis para nós, como são as ferramentas e as roupas. Também envolve saber como se comportar em situações sociais, o que, por sua vez, envolve a compreensão das regras ou convenções que governam o comportamento em uma determinada sociedade. Heidegger referiu-se a esse tipo de conhecimento como ‘saber como’ (saber usar ou fazer algo) e o contrastou com o tipo de conhecimento que obtemos com uma análise científica objetiva do mundo, conhecida como ‘saber disso’ (saber a verdade de proposições ou ‘fatos’, às vezes referida como ‘conhecimento proposicional’).

Para Heidegger, a abordagem científica é uma atitude particular e incomum com relação ao mundo, na medida que é projetada para estudar o mundo ‘ocorrido’, enquanto o que existe isoladamente da atividade humana [5]. Envolve sair dele, ou se distanciar dele, estar além do nosso íntimo engajamento com o mundo ‘disponível’, para assim estudar objetos isoladamente do habitual contexto humanamente significativo em que estão incorporados. Somente quando despojamos um objeto de seu significado humano é que podemos investigar suas propriedades universais. Somente quando vemos um prego como um pedaço de ferro, por exemplo, podemos aprender como o ferro, em geral, funciona. A análise científica envolve a procura de propriedades universais que sejam independentes das situações particulares nas quais um objeto pode ser encontrado.

Heidegger enfatizou a prioridade do nosso familiar “saber como” em nosso engajamento com o mundo, que constitui o fundamento sobre o qual outros tipos de conhecimento são construídos. Ele não negou a utilidade e a validade da ciência natural para obter conhecimento e domínio sobre o mundo que nos rodeia. No entanto, para Heidegger, o método científico não pode ser aplicado de forma significativa ao estudo do mundo humano. O conhecimento dos seres humanos e de suas atividades é sempre uma forma de “saber como”. O comportamento humano não pode ser extraído do mundo familiar com seu significado humano nele imbuído e todas as suas convenções implícitas. Se queremos estudar técnicas de ensino, por exemplo, nós dependemos dos entendimentos convencionais sobre o que consiste o ensino e o que termos tais como aprendizado, teste e resultados alcançados, significam em uma cultura e configuração particulares. Ao contrário das ciências naturais, não podemos identificar ou desenvolver princípios que sejam independentes das atividades historicamente específicas que queremos estudar.

Pense também em ‘depressão’ ou tristeza descrita no meu blog anterior! A depressão não é uma coisa abstrata que pode ser medida e estudada independentemente das pessoas reais e individuais que a experimentam e do mundo social em que habitam. Você simplesmente não pode separar a ‘depressão’ de outros elementos da vida humana da maneira que é necessária para se identificar princípios universais e se obter conhecimento objetivo e conhecimento científico sobre isso.

Podemos fazer um julgamento de que alguém que não deixou sua cama ou que falou por semanas necessita de mais ajuda do que alguém que chora muito mas que continua a seguir sua vida diária, não obstante isso não é o mesmo tipo de comparação daquela entre a força de diferentes materiais ou de leituras da pressão arterial.

Tendo dito tudo isso, penso que existem algumas circunstâncias em que precisamos medir aspectos do comportamento humano de maneira “positivista“. Quando modificamos a forma como o corpo funciona através do uso de drogas ou outros meios, é melhor avaliar se obtemos o resultado pretendido.

Se recomendarmos medicamentos “antipsicóticos”, por exemplo, bem como a compreensão das alterações subjetivas e comportamentais que eles produzem, podemos querer saber se  reduzem as manifestações de psicose, se melhoram o comportamento perturbado ou o comportamento agressivo, e qual o tipo de impacto que têm sobre a qualidade de vida das pessoas, suas experiência e seu funcionamento. Da mesma forma, se reduzirmos ou tiramos as pessoas de tais produtos químicos (como o teste de Radar está visando fazer), precisamos saber como essas áreas serão afetadas. Para fazer isso, precisamos medir essas coisas de alguma forma, imperfeito como esse processo será inevitavelmente.

Não devemos esquecer, no entanto, que o propósito de qualquer intervenção que seja dada para modificar o comportamento, assim como de outras intervenções sociais (métodos de ensino, medidas de segurança rodoviária), é político, não é científico. Descobrir a melhor maneira de viver juntos é do campo da política. A ciência pode ajudar a descobrir como alcançar o que queremos alcançar, se houver diferentes opções com valor moral ou político igual, mas não pode determinar o valor que colocamos em algo.

Por conseguinte, a aplicação dos métodos da ciência natural à atividade humana às vezes é necessária, mas não pode ilustrar-nos sobre a natureza dessa atividade ou os motivos que a motivam e a sustentam. Em vez disso, as ideias devem vir das experiências próprias e da dos outros, e dos exemplos que encontramos na mídia, na literatura e em outros lugares. O aluno de Wittgenstein, Maurice O’Connor Drury (que se tornou psiquiatra), sugeriu que o conhecimento psicológico não vem de experiências psicológicas, mas da literatura, da arte e da música. São as artes que iluminam os dilemas e os desafios da vida humana. [6] Na mesma linha, Thomas Szasz recomendou, uma vez, a história curta Enfermaria 6, de Chekhov, como uma dos contas mais iluminantes sobre a natureza da loucura e as circunstâncias que podem gerá-la. [7]

Notas de rodapé:

  1. An idea expressed most clearly by Peter Winch, who applied Wittgenstein’s ideas to the study of social science. Winch, P. 2008. The Idea of a Social Science and its Relation to Philosophy, Routledge Classics edition ed. London, Routledge.
  2. As Marx famously said: ‘Men make their own history, but they do not make it as they please; they do not make it under self-selected circumstances, but under circumstances existing already, given and transmitted from the past’ Marx, K. 1852. The Eighteenth Brumaire of Louis Napoleon New York, Die Revolution.
  3. Dilthey, W. 2010. Dilthey: Selected Writings Cambridge, Cambridge University Press.
  4.  Heidegger, M. 1962. Being and Time New York, Harper & Row.
  5. American philosopher Hubert Dreyfus has written one of the most accessible commentaries on Being and TimeDreyfus, H.L. 1991. Being-in-the-World. A Commentary on Heidegger’s Being and Time, Division I. Cambridge, MA, MIT Press. Heidegger devises a whole new vocabulary to convey his ideas, which is translated in varying ways. Dreyfus translates Heidegger’s terms Zuhandenheit as ‘availableness’ and Vorhandenheit as ‘occurrentness’. Most translators use the more literal translations of being ‘ready at hand’ and ‘present at hand’.
  6.  Drury, M.O. 1973. The Danger of Words London, Routledge and Kegan Paul.
  7.  Chekhov, A. 1999. The Essential Tales of Chekhov London, Granta Books.