Allen Frances e o “excesso de diagnóstico” de crianças

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PhilipHickeyEm 31 de outubro de 2016, o eminente psiquiatra Allen Frances, MD, arquiteto do DSM-IV, publicou um artigo em seu blog Psychology Today, Saving Normal (Psicologia Hoje, Salvando Normal). O artigo é intitulado DSM-5 Diagnósticos em Crianças Devem Sempre Ser Escritos à Lápis. (A peça também apareceu no Huffington Post blog na mesma data.) O subtítulo é “A rotulagem inadequada de crianças e adolescentes é frequente e pode persegui-las ao longo de suas vidas.”

Como em muitos dos artigos recentes do Dr. Frances, a maior parte do texto é escrita por uma outra pessoa, e o Dr. Frances fornece uma introdução e um resumo / conclusão. Nesse caso, o núcleo do artigo foi escrito por Juan Vasen e Gisela Untoiglich do Fórum Infâncias http://foruminfancias.com.ar – uma organização argentina de profissionais de saúde mental dedicada ao “diagnóstico e tratamento adequados de crianças e adolescentes”.

O material escrito pelos Drs. Vasen e Untoiglich basicamente soa bem, como por exemplo, “As crianças e os adolescentes variam muito no modo como se desenvolvem e na cronologia dos seus marcos de desenvolvimento. A individualidade e a imaturidade não devem ser confundidas com doença “. Mas também no artigo vem a sugestão de que o TDAH é uma entidade de doença real e que possa ser identificada com uma avaliação cuidadosa e criteriosa.

“Diagnóstico preciso em crianças e adolescentes leva muito tempo em cada sessão e,        muitas vezes, muitas sessões ao longo de um número de meses.”

Dr. Frances abre o artigo lamentando o que ele descreve como as “três mais nocivas modas no diagnóstico psiquiátrico desses últimos 20 anos.” E que são:

“As taxas de Transtorno do Déficit de Atenção triplicaram, e as taxas de Autismo e Transtorno Bipolar da infância multiplicaram incrivelmente 40 vezes”.

Frances continua a escrever que “Poderosos fatores externos contribuíram grandemente para este massivo mal diagnóstico de crianças.” Retirado do contexto geral é claro que o que o Dr. Frances chama de “massivo mal diagnóstico ” não é inerente aos espúrios diagnósticos psiquiátricos, mas sim ao que ele chama de uso excessivo desses rótulos.

Ele então retoma ao seu alvo principal que é a indústria farmacêutia:

“Para o TDAH e o Transtorno Bipolar na infância ADHD, as empresas farmacêuticas de forma enganosa e agressiva venderam doenças para comercializar suas pílulas caras e rentáveis. Sua estratégia de marketing foi baseada no pressuposto cínico de que começar uma criança cedo com pílulas poderá torna-la um cliente para o restante da vida”.

Dr. Frances frequentemente culpa a indústria farmacêutica, ignorando o papel que desempenharam, a psiquiatria e ele próprio, na proliferação dos assim chamados diagnósticos psiquiátricos e no afrouxamento progressivo dos critérios para esses diagnósticos. Eu expliquei em um post anterior como os critérios para o TDAH foram marcadamente afrouxados no próprio DSM-IV do Dr. Frances.

A aplicação generalizada do “diagnóstico bipolar” às crianças foi a criação do psiquiatra de Harvard Joseph Biederman, MD, mas alguns dos fundamentos para isso já tinham sido estabelecidos no DSM-IV.

A edição anterior do manual (DSM-III-R) declarou que a idade de início dos episódios maníacos

“… é no início dos 20 anos de idade. No entanto, alguns estudos indicam que um número considerável de novos casos aparece após os 50 anos. “(p 216)

A declaração correspondente no DSM-IV diz:

“A idade média no início de um primeiro episódio maníaco é no começo dos 20 anos, mas alguns casos começam na adolescência e outros começam após 50 anos.” [Ênfase adicionada]

Assim, foi o próprio DSM-IV do Dr. Frances que primeiro legitimou a noção de que este chamado diagnóstico poderia ser aplicado às crianças.

Certamente que a indústria farmacêutica desempenhou seu papel, mas a psiquiatria foi uma mão na luva graças ao seu generoso benfeitor, como tem sido desde os anos 60 e 70.

. . . . .

“A explosão do autismo resultou da combinação de duas coisas: a introdução no DSM-IV de uma forma muito mais branda (Asperger), e a ligação demasiado estreita entre o diagnóstico e a elegibilidade de serviços escolares a receberem suporte financeiro. Quer dizer, os diagnósticos de DSM desenvolvidos para fins clínicos são referências inadequadas para a alocação de recursos educacionais. As decisões educacionais devem basear-se na necessidade educacional da criança, avaliada pelos educadores, usando ferramentas educacionais”.

A referência ao transtorno de Asperger é provavelmente exata, e representa uma admissão honesta por parte do Dr. Frances, mas a declaração:

“Os diagnósticos de DSM desenvolvidos para fins clínicos não são meios adequados para a alocação de recursos educacionais. As decisões educacionais devem basear-se na necessidade educacional da criança, avaliada pelos educadores, usando ferramentas educacionais “.

é extremamente enganosa.

A questão aqui é que, em geral, as escolas públicas são obrigadas por lei federal (nos Estados Unidos) a acolher crianças com deficiência. Também é necessário que essas crianças sejam ensinadas, não em ambientes de educação especial, mas sim em salas de aula regulares, sempre que possível.

A deficiência é obviamente um conceito complexo e difícil de definir. Mas, para fins práticos, a Social Security Administration (SSA) tem dois critérios gerais. Em primeiro lugar, a criança deve ter uma doença confirmada; e em segundo lugar, ela deve ter confirmadas as limitações funcionais relacionadas à doença. Tanto o distúrbio autista quanto o transtorno de déficit de atenção e hiperatividade foram aceitos pela SSA como doenças a terem cobertura. Evidência de limitações funcionais geralmente é obtida a partir de provedores de tratamento da criança, complementada quando necessário por relatórios de consultores externos. Assim – e este é o ponto crítico – “diagnósticos do DSM” não estão sendo usados como referência para a alocação de recursos educacionais. Em vez disso, eles estão sendo usados como a primeira fase na determinação de incapacidade (i.e., a presença de doença). E é a determinação da inaptidão que conduz às decisões educacionais, e, em alguns casos, canaliza fundos adicionais à escola.

Assim quando o Dr. Frances lamenta o uso de “diagnósticos do DSM” para determinar a presença de “doença” psiquiátrica, parece que está a virar a face para outro lado, justamente quando ele rotineiramente afirma a validade e a utilidade desses “diagnósticos” precisamente para esses propósitos. O ponto é este: uma vez que o APA (Associação Psiquiátrica Americana) inventou a doença de TDAH, a porta foi aberta para que essa doença viesse a se tornar incapacidade-elegibilidade (quer dizer, por ser incapaz ter direito a determinadas vantagens).

E, incidentalmente, o enredo engrossa. Em 1985, a SSA contratou a APA para que fosse feito um grande estudo sobre as normas e diretrizes para a avaliação da deficiência mental. O estudo durou dois anos. A APA fez algumas pequenas recomendações, mas “Todas as recomendações foram feitas com base na premissa de que devesse ser preservado o constructo básico da SSA para as normas médicas e as orientações para a avaliação de alegações baseadas em deficiência mental.” [a ênfase em itálico está no original]. Por conseguinte, seja qual for a crítica que o Dr. Frances tenha do sistema atual, ele precisa, sugiro, reconhecer a parte que a sua própria profissão desempenhou na criação desse estado de coisas.

Mas o enredo engrossa ainda mais. A maior parte dos detalhes envolvidos na educação de crianças com deficiência estão estabelecidos na Lei de Educação de Pessoas com Deficiência (IDEA), de 1990. Quando este projeto estava sendo elaborado, havia uma controvérsia considerável sobre se o TDAH deveria ser incluído como uma “doença coberta”. “A oposição veio de organizações de professores e da NAACP. O ato original (1990) não incluiu o TDAH. No entanto, em 1991, o Departamento de Educação emitiu uma nota esclarecedora afirmando que “TDAH” é uma deficiência coberta pela IDEA. Esta alteração foi o resultado de um intenso lobby feito pelo CHADD[*] e outros. E a psiquiatria organizada tem sido um defensor de longa data da CHADD. No momento atual, há um documento para download intitulado ADHD: Parents Medication Guide no site da APA. 

CHADD é mencionada cinco vezes e é recomendada como uma fonte de informação. O documento foi preparado pela Academia Americana de Psiquiatria da Criança e do Adolescente e pela APA.

“EXCESSO DE DIAGNÓSTICO”

Dr. Frances continua:

“É muito tempo passado para domar o selvagem excesso do DSM em diagnosticar crianças.”

Em seguida, após o material escrito pelos Drs. Vasen e Untoiglich:

“Muito obrigado, Juan e Giselle, por advertir de forma poética os clínicos para que sejam conservadores, cuidadosos ou criativos, ao diagnosticarem crianças. O diagnóstico maldado tem consequências graves e, muitas vezes, de longa duração, sobre como a criança se vê, como a família vê a criança e sobre o uso indevido da medicação. O diagnóstico nunca deve ser dado de forma leviana. “

E

“Um diagnóstico correto em crianças é realmente difícil e consome tempo. Um diagnóstico maldado em crianças é realmente fácil e pode ser feito em 10 minutos. Um diagnóstico correto em crianças leva a intervenções úteis que podem melhorar muito a vida futura. O diagnóstico incorreto em crianças geralmente leva à medicação prejudicial e leva ao estigma. “

 E

” O que está em jogo não é pouco e os danos às vezes permanentes. A melhor maneira de proteger nossos filhos é respeitar sua diferença e aceitar a incerteza. Eu realmente amo a ideia de escrever diagnósticos psiquiátricos a lápis.”

Essa noção de diagnóstico conservador, cuidadoso e preciso é um tema comum na escrita do Dr. Frances, mas na verdade, é uma exortação vazia, porque os critérios são inerentemente vagos e mal definidos.

Consideremos o primeiro critério na lista da APA:

1 (a) “com frequência não dá atenção aos detalhes ou comete erros negligentes nas tarefas escolares, no trabalho ou em outras atividades” (DSM-IV, p 83)

A redação do DSM-5 é quase que idêntica, mas acrescenta dois exemplos: (p. e., “negligencia ou perde detalhes”, “o trabalho é impreciso”).

Para ilustrar o problema, vamos imaginar uma conversa entre dois psiquiatras experientes, Dr. I. Druggem e Dr. Ak Curate.

Dr. Curate: Você está diagnosticando muitas crianças com TDAH.

Dr. Druggem: Não, não estou. Eu sempre me certifico de que satisfaçam o número necessário de itens do critério.

Dr. Curate: Mas você está interpretando os critérios demasiado frouxamente.

Dr. Druggem: Você está interpretando-os muito rigidamente.

Dr. Curate: Bem, considere aquele garoto de seis anos que você diagnosticou na semana passada. Em que critérios ele se encaixou?

Dr. Druggem: Os critérios de ausência de atenção a, b, c, d, e. Ele também se encaixou em quatro dos critérios de hiperatividade-impulsividade.

Dr. Curate: Então ele cumpriu o critério 1 (a) – “muitas vezes não dá atenção aos detalhes ou comete erros descuidados nas tarefas escolares, no trabalho ou em outras atividades”?

Dr. Druggem: Sim, é isso aí.

Dr. Curate: Como você sabe?

Dr. Druggem: Porque eu fiz com que a sua professora preenchesse a lista com os critérios, e então ela verificou esse item.

Dr. Curate: Então a professora disse que ele se encaixa neste critério. Ela disse quantas vezes é frequente?

Dr. Druggem: Não, claro que não.

Dr. Curate: Quantas vezes é frequente?

Dr. Druggem: Não sei; suponho que duas ou três vezes por dia.

Dr. Curate: Eu acho que seria perfeitamente normal para um garoto de seis anos fazer erros descuidados ou se distrair dez ou mesmo quinze vezes por dia.

Dr. Druggem: De jeito nenhum.

Dr. Curate: Sim.

E o ponto crítico aqui é que não há nada no DSM, ou mesmo em qualquer diretriz psiquiátrica, que possa resolver esse desacordo. Não há como dizer qual psiquiatra está correto. E o problema é agravado quando reconhecemos que dificuldades de definição similares surgem quando perguntamos o que constitui uma atenção cuidadosa versus não tão cuidadosa; ou erros por desatenção versus outros tipos de erros. E quando reconhecemos que as mesmas dificuldades surgem com todos os critérios, é claro que o termo “diagnóstico preciso, criterioso, do TDAH” é um absurdo lógico. Se alguém inventa doenças sem patologia identificável, para serem diagnosticadas com base em listas de verificação inerentemente vagas, o conceito de prevalência verdadeira não tem sentido.

Assim, o que a psiquiatria criou é um algoritmo solto que pode ser expandido e contraído à vontade, sem que nenhuma culpa ou censura seja atribuída ao psiquiatra “diagnosticador”. Mas é ainda pior do que isso, porque este arbitrariamente flexível “diagnóstico” está sendo conduzido em um contexto onde há grandes incentivos para se fazer o “diagnóstico”, e penalidades consideráveis para a diminuição do “diagnosticar”.

Primeiramente são as empresas farmacêuticas cujos lucros estão correlacionados com o número de crianças “diagnosticadas”. Em segundo lugar, os pais que não sabem como disciplinar ou treinar seus filhos de forma eficaz. Em terceiro lugar, o “diagnóstico” pode dar direito à criança (ou melhor aos seus pais) a uma renda por incapacidade. Em quarto lugar, a escola pode ser elegível para financiamento adicional. Em quinto lugar, os psiquiatras têm uma boa chance de adquirir um cliente a longo prazo.

Então todo mundo ganha – exceto, é claro, a criança, que perde, especialmente no longo prazo. Este é o monstro que a psiquiatria criou. E o Dr. Frances desempenhou um papel fundamental.

O problema não é o excesso de diagnóstico. O problema é a medicalização espúria de problemas que não são de natureza médica. E essa foi a contribuição da psiquiatria para a grande fraude psiquiátrica-farmacológica, na qual eles entraram com os olhos bem abertos. O negócio era simples. Nós (psiquiatras) inventamos e legitimamos as doenças, e escrevemos as prescrições; vocês (indústria farmacêutica) enviam-nos muito dinheiro, validações e negócios. E Dr. Frances é muito bem informado sobre este assunto. Em 1995, ele e seus parceiros John Docherty, MD e David Kahn, MD, escreveram:

“Estamos também empenhados em ajudar Janssen a ter sucesso em seus esforços para aumentar sua participação de mercado e a ter visibilidade nas comunidades de acionistas, fornecedores e consumidores”.

Esta foi uma referência ao The Expert Consensus Guideline Series: Treatment of Schizophrenia produzido pelos Drs. Frances, Docherty e Kahn (The Journal of Clinical Psychiatry, 1996, Vol. 57, Suplemento 12B), com uma generosa doação de Johnson & Johnson (proprietários de Janssen). A citação é de um relatório de testemunha enquanto perito feita por David Rothman, PhD, professor de Medicina Social na Columbia University College of Physicians and Surgeons, p 15-16. Toda a questão foi abordada em grande profundidade por Paula Caplan, PhD, aqui (Mad in America), e pelo que eu sei, o Dr. Frances nunca reconheceu publicamente qualquer irregularidade ou emitiu quaisquer desculpas com relação ao assunto.

FINALMENTE

Dr. Frances foi uma peça-chave na promoção da fraude psiquiátrica. Como arquiteto do DSM-IV, ele teve a oportunidade de reverter a tendência iniciada por Robert Spitzer, MD, com DSM-III, mas em vez disso, o Dr. Frances não só permaneceu na trajetória de proliferação / expansionista, mas na verdade acelerou o seu ritmo. Sua atual preocupação com o diagnóstico mal feito e excessivo de crianças não é convincente.

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 TDAH não é algo que uma criança tem. É algo que uma criança faz.

[*] CHADD (Children and Adults with Attention-Deficit/Hyperactivity Disorder), é uma poderosíssima organização da sociedade civil que representa Crianças e Adultos com Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade.  Seu site é http://www.chadd.org. (Nota dos Editores de Mad in Brasil.)

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