A criação de uma alternativa conceitual para o DSM: uma entrevista com a Dra. Lucy Johnstone

Zenobia Morrill, da MIA, entrevista Lucy Johnstone sobre a reação ao Quadro de Referências Poder, Ameaça e Sentido (P.A.S.), as influências em sua vida e suas esperanças para o futuro

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No ano passado, Lucy Johnstone, Mary Boyle e seus colegas no Reino Unido lançaram o Power Threat Meaning Framework (PTMF), que traduzimos para o Português como Poder, Ameaça e Sentido (PAS). Trata-se de conjunto de ideias que tem representado um afastamento das concepções biomédicas que animam o Manual Diagnóstico e Estatístico da Associação Psiquiátrica Americana (DSM).  Essa estrutura desloca a noção de “O que está errado com você?” – como é recomendado pelo DSM – para “O que aconteceu com você?”. Ao assim fazer, rejeita o processo médico de diagnosticar ‘transtornos’, em favor de uma resposta narrativa que conte contextos, dinâmicas de poder e sistemas. Para que o leitor tenha uma ideia, veja o vídeo de lançamento desse Modelo de referência, que foi produzido pela própria Sociedade Britânica de Psicologia, e que está com legendas em português.

No momento em que o Movimento Global de Saúde Mental está exportando o modelo biomédico ocidental pelo mundo afora, Johnstone, Boyle e a equipe do projeto PAS, que inclui aqueles que se identificam como usuários / sobreviventes, e que buscam promover uma maneira radicalmente diferente de se entender o sofrimento. As respostas ao P.A.S. variaram de críticas à gratidão.

Johnstone, uma psicóloga clínica e consultora, com larga experiência em trabalhar há muitos anos em ambientes de saúde mental para adultos, acredita que o atual sistema de saúde mental falhou, e que estamos agora no processo de testemunhar o desmoronamento do paradigma médico do sofrimento emocional. Ela acredita que precisamos de uma abordagem baseada em princípios fundamentalmente diferentes. O P.A.S. , que se baseia em uma ampla gama de evidências e exemplos de alternativas existentes, é uma tentativa de descrever como isso pode se dar. A equipe do projeto P.A.S. espera que possa ser uma contribuição para a tão necessária revolução.

Em uma recente postagem, o Mad in Brasil trouxe ao conhecimento do nosso público um artigo publicado pela Clinical Psychology Forum onde são avaliados os resultados após um ano do lançamento oficial da Abordagem do P.A.S. Nesta entrevista que agora estamos trazendo ao conhecimento do público, 18 meses após o lançamento, Lucy Johnstone reflete sobre a reação ao P.A.S. e o impacto que teve até agora. Como as ideias estão sendo usadas? Há chance de se tornar mais amplamente adotado? Lucy também descreve como suas próprias experiências de vida influenciaram o seu trabalho.

A transcrição abaixo foi editada para maior clareza. (Ao final da transcrição você pode ouvir a entrevista completa.)

Zenobia Morrill: Para começar, por que você acredita que nós necessitamos de um modelo de diagnóstico alternativo? Com outras palavras, qual é o problema com o DSM?

Lucy Johnstone: Não achamos que precisamos de um novo manual de diagnóstico, achamos que precisamos de uma nova estrutura que não seja diagnóstica. Então é isso que tentamos fornecer. Mas você e qualquer um da comunidade Mad está bem ciente, como muitas outras pessoas, de que a atual estrutura de diagnóstico está enfrentando muitos problemas.

É claro que experiências de sofrimento psíquico são muito reais. As pessoas realmente se sentem suicidas e desesperadas, ansiosas e sem esperança, ouvem vozes hostis e têm mudanças de humor e assim por diante, mas nunca foi demonstrado que essas experiências reais são melhor entendidas como sendo doenças médicas que precisam ser diagnosticadas. Há também uma grande quantidade de evidências de que as pessoas estão, em última análise, respondendo a eventos em suas vidas quando passam por essas experiências muito difíceis.

Nós claramente precisamos de algo diferente (do DSM). Agora, é claro, as pessoas têm ideias variadas sobre como esse sistema diferente deva ser; se deveria ser, de algum modo, um quadro de diagnóstico melhor e mais eficaz, ou se deveria ser algo completamente diferente. Mas é óbvio que todos os lados do debate pensam que o sistema de diagnóstico atual não está funcionando. Precisamos, pelo menos, de algo diferente e é nossa opinião que a grande diferença precisa ser um afastamento fundamental da suposição de que essas dificuldades e essas formas de sofrimento psíquico são mais bem entendidas enquanto doenças médicas.

Morrill: Como você responderia às pessoas que dizem que o DSM ou o CID são úteis, pois agrupam pessoas com sintomas semelhantes para fins de pesquisa, fornecem uma linguagem comum aos praticantes ou até ajudam a fins de reembolso e categorizam diferentes tratamentos para pessoas com sintomas semelhantes?

Johnstone:  O diagnóstico enquanto tal, o diagnóstico médico, faz essas coisas. É por isso que temos isso, para que possamos agrupar os sintomas e sugerir os melhores tratamentos ou intervenções. Eu realmente desafiaria essa linguagem, antes de tudo. A linguagem dos ‘sintomas’, das ‘doenças’ e dos ‘tratamentos’, tudo faz parte desse mesmo modelo não comprovado. Na verdade, acho que seria muito difícil sustentar que os diagnósticos psiquiátricos executam qualquer uma das funções que o diagnóstico faz no que eu chamaria de ramos legítimos da medicina.

Precisamos de fato de maneiras de agrupar diferentes tipos de experiências, para que possamos pensar sobre o melhor caminho a seguir e tudo o mais, porém o sistema de diagnóstico não faz isso. Estamos afirmando que criamos algo que faz isso melhor. Igualmente, é verdade que, no sistema atual, o diagnóstico é necessário para alguns propósitos práticos, como o acesso aos serviços públicos e benefícios, e no futuro previsível provavelmente se passará. Queremos afirmar que descobrimos que existem formas mais eficazes de fazer isso que não exigem que você assine um rótulo, o que na verdade não é válido e que é experimentado por muitas pessoas como prejudicial.

Morrill: Você acha que o DSM ajudou a formar o pensamento social e profissional sobre as dificuldades psiquiátricas que é de uma maneira prejudicial?

Johnstone: O DSM e seu equivalente europeu, o CID, certamente tiveram um profundo efeito na formação do pensamento social e profissional, e é a galinha e o ovo, não é assim? Surgiu de um certo modo de pensar sobre as coisas. Isso teve um efeito profundo. Eu certamente argumentaria, como muitas outras pessoas, que o efeito geral tem sido muito prejudicial.

Eu acho que é quase impossível subestimar a sua influência e entender quão profundamente ela está infiltrada em todos os tipos de áreas de nossas vidas. Não são apenas serviços, mas o sistema legal, o sistema de saúde pública, a tal ponto em que as pessoas estão realmente chegando já tendo se autodiagnosticado. Esse idioma está em toda parte: em campanhas, como campanhas anti-estigma, no Google, na mídia, nos programas de treinamento das pessoas. Tornou-se algo que Mary Boyle, em sua frase útil, chama de “a mentalidade do DSM”.

Há uma horrorosa quantidade de evidências, e se irá saber disso, é claro, mas pessoas como Robert Whitaker mostraram, eu acho bastante conclusivamente, que esse tipo de abordagem, juntamente com as drogas psiquiátricas que a abordagem convida, não ajuda as pessoas ou as torna melhores, em longo prazo, em média. Na verdade, os níveis de incapacidade entre os países vem ao mesmo tempo aumentando. O modelo fundamental claramente não está funcionando e precisamos claramente de algo diferente.

Morrill: Você está mostrando que esse sistema tem causado danos, não tem validade e não está funcionando. E que o quadro de referências P.A.S. oferece outra coisa. Quais são os principais objetivos do P.A.S.

Johnstone: O P.A.S. é uma tentativa absurdamente simples e ambiciosa – uma tentativa em andamento, não uma resposta completa – que esperamos que comece a delinear uma alternativa conceitual ao modelo de diagnóstico da angústia.

Nós já temos várias maneiras diferentes de abordar o sofrimento, que não são baseadas em diagnósticos, e nos debruçamos em muitas delas. Muito do que está no quadro de referências não é novo. Nós escolhemos a expressão ‘quadro de referências’deliberadamente. É uma espécie de guarda-chuva que dá suporte, centraliza e dá mais algumas evidências, credibilidade e suporte para as muitas formas não-diagnósticas de trabalho que já existem, além de sugerir novos caminhos para o futuro.

Estamos pretendendo que isso seja um passo importante, não apenas para um uso particular da linguagem, um uso particular de rótulos, mas uma maneira completa de pensar – afastar-se de toda a mentalidade do DSM. Em parte, é por isso que o documento é tão longo, denso e detalhado, porque não queríamos apenas ajustar o sistema existente. Não queríamos apenas dizer: “Bem, aqui está uma maneira extra de fazer as coisas que podem ser úteis”. Queríamos ir além disso, o que exigia que nos aprofundássemos profundamente nos princípios filosóficos e conceituais da abordagem do DSM e apresentar uma visão geral sólida de toda a pesquisa relevante.

O objetivo é mover-se, em termos simples, para longe do “O que está errado com você?” para a pergunta “O que aconteceu com você?”.  Para dizer o mais rapidamente quanto o possível, estamos evidenciando, esperamos, a ideia de que o sofrimento das pessoas seja compreensível no contexto, mas queríamos pensar sobre o contexto em sua forma mais ampla. Uma das coisas que queríamos fazer era deixar bem claro o elo entre o sofrimento psíquico pessoal e o contexto social, a desigualdade social e as injustiças sociais. Em outras palavras, colocar o poder no mapa. [A problemática] o poder não está faltando apenas no pensamento psiquiátrico, mas também está faltando muito no pensamento psicológico, e faz muita falta ao pensamento psicoterapêutico.

Junto com isso, queríamos ter um quadro de referências que apoiasse as pessoas para ajuda-las a contar suas histórias, narrativas de todos os tipos. Portanto, a resposta mais simples para “O que você faz ao em vez de diagnóstico?” é  “você ouvir as histórias das pessoas”. Essa é um quadro de referências que, esperamos, valida a ideia de que as narrativas são uma alternativa ao diagnóstico e apoie a construção ou a co -construção de narrativas particulares e analise padrões nessas narrativas.

Finalmente, a terceira coisa importante a dizer é que o quadro de referências se aplica a todos nós. Nós realmente queríamos nos afastar de toda essa ideia de que há um grupo de pessoas que são de alguma forma doentes mentais ou diferentes de alguma forma fundamental. Estamos todos sujeitos à influência negativa do poder. Todos nós sofremos de vez em quando. O quadro de referências é, na verdade, sobre todos nós.

Uma das principais coisas sobre o quadro de referências é, na verdade, dar às pessoas o conhecimento, a informação, para decidir sobre como querem descrever sua própria experiência. Essa é uma forma realmente importante de restaurar o poder das pessoas: a capacidade de criar seus próprios significados. Em última análise, criar novas narrativas que façam mais sentido.

O modelo biomédico de psiquiatria é um excelente exemplo do uso do poder ideológico, porque é uma cosmovisão que não tem nenhuma evidência para apoiá-lo, que nunca teve evidências para apoiá-lo, que opera claramente no interesse de pessoas que já são bastante poderosas – profissionais, empresas farmacêuticas, e assim por diante – claramente operando para as desvantagens de pessoas que já são menos poderosas, se não provavelmente não estariam optado pelos serviços. O modelo biomédico claramente opera impondo uma forma de significado às pessoas, que segue as linhas de: você tem uma doença mental do tipo X, Y ou Z. Se você começar a desafiar isso, você descobrirá rapidamente que o poder está em outro lugar. Você não tem permissão para contestar. Todos os tipos de consequências podem vir ao desafiar esse modelo.

Morrill: Como sua experiência pessoal e profissional influenciou a sua participação e construção do P.A.S.?

Johnstone: Eu sempre acreditei que a loucura tem significado, mas também acho que provavelmente todos nós no grupo do projeto diríamos a mesma coisa. De certa forma, o P.A.S. é a culminação de nossa experiência pessoal e profissional. Nós, todos nós, trouxemos uma gama de experiências para essa tarefa que envolveu pesquisa, prática clínica, treinamento e experiência pessoal. Em conjunto, acho que houve uma mistura rica em que todos nós, com esses aspectos de nossas experiências, fomos capazes de alimentá-la na produção do documento.

Se eu pensar sobre mim mesma, eu certamente diria que não foi por acaso que passei a trabalhar em trabalho de saúde mental e desenvolvi as visões que hoje tenho. Eu sou uma pessoa normal. Eu venho de um background de uma família de classe média típica do Reino Unido, meus pais são professores, eu tenho um irmão e uma irmã, eu fui para uma escola de uma bom padrão. . . Quero dizer, em certo sentido, nada de terrível aconteceu comigo. Em outro sentido, havia uma série coisas que que me levaram a estar sempre muito infeliz quando criança, quando adolescente, quando jovem, e passei muito tempo pensando sobre isso. Está claro para mim que havia razões para isso.

Eu venho de uma geração que foi bastante influenciada pelo chamado movimento antipsiquiátrico. Quando comecei a treinar como psicóloga, ainda havia pessoas por perto, algumas das quais eram muito inspiradoras para mim, que haviam trabalhado com Laing, por exemplo. Essas ideias ainda estavam por aí. Tudo tinha a ver comigo. O fio condutor das experiências pessoais, que o sofrimento psíquico ou a loucura têm significado, se harmonizou muito com algumas das correntes que ainda existem na cultura. Eu sempre acreditei nisso, eu sempre segui esse fio condutor.

Morrill: Como foi o processo intelectual de construir o P.A.S.?

Johnstone: Em certo sentido, o ponto de partida é a declaração do posicionamento que a Divisão de Psicologia Clínica emitiu em maio de 2013, exatamente na mesma época em que o DSM-5 foi publicado, e eu fiz parte dessa posição, assim como algumas outras pessoas que estavam no grupo. Em essência, era todo um corpo profissional que pedia o fim do modelo de doença do sofrimento, o que é bastante corajoso e desafiador ser feito.

Uma das recomendações era que, se nós fossemos pedir isso, precisaríamos saber como seria uma alternativa e nos juntarmos aos sobreviventes e outros grupos interessados em ver como isso poderia ser.

Isso evoluiu a partir disso, sem qualquer plano. Mary e eu éramos os líderes do projeto. Eu nunca estive envolvida em algo tão ambicioso antes. Eu acho que o que ajudou é que o grupo principal, todos nós nos conhecíamos há anos, se não décadas. Todos nós sabíamos de onde vínhamos e não acho que nenhum outro grupo teria conseguido executar essa tarefa com tanta facilidade. Houve um grande grau de confiança e amizade compartilhada e ideias e entendimentos divididos.

Nós começamos a nos encontrar regularmente. Começamos a consolidar algumas de nossas ideias. Começamos a atribuir diferentes aspectos do documento a diferentes pessoas para que assumissem a liderança. Começamos a atrair outros membros e pessoas para dar conselhos e consultas. Criamos um grupo consultivo de usuários de serviços e cuidadores. Cerca de três anos depois, Mary e eu percebemos que, a menos que dedicássemos um tempo realmente sólido para isso, isso nunca aconteceria. Nós essencialmente passamos dois anos sem sermos remuneradas financeiramente na frente de nossos computadores, cada uma de nós, juntando tudo, e depois o documento saiu.

Foi muito estressante em vários momentos. Acho que é justo dizer que, por cerca de dois anos, acho que senti, e sei que Mary assim se sentiu, e acho que os outros provavelmente sentiram o mesmo, esse tipo de pensamento: “Que diabos estamos fazendo aqui? Parece que estamos vagando em um deserto intelectual.” Firmemente, como acreditávamos que o modelo existente não é adequado para esse propósito, na verdade seria uma tarefa muito maior reunir algo que que se mantivesse unido do ‘colocar seu dinheiro onde sua boca já está’  [em algo seguro, já dado] – como dizemos no Reino Unido,  Por isso foi muito estressante e às vezes muito difícil, mas emergimos do outro lado com um documento em evolução e imperfeito, mas acho que nos sentimo-nos muito orgulhosos.

Morrill: O que você acha que o P.A.S. realizou? Como você deseja que seja usado, e como isso mudaria o pensamento social e profissional se ele for adotado?

Johnstone: Não tínhamos ideia de como isso iria se desenvolver e é ainda algo em evolução. Eu não sei aonde isso irá dar ou como será. Se for de fato totalmente implementado, a paisagem aparecerá bem diferente. Eu acho que é realmente difícil conceituar, porque se está trazendo algumas questões realmente fundamentais, como: “necessitamos de um sistema de saúde mental?” Nem todas as culturas e países tiveram ou têm um sistema de saúde mental. Nós precisamos mesmo de um? Essa é uma grande questão.

Em um nível mais imediato, nós deliberadamente não definimos respostas específicas sobre “Como eu poderia trabalhar de maneira diferente com essa pessoa?” Ou “Como os serviços podem parecer de maneira diferente?” Porque queríamos que isso fosse um recurso conceitual, um conjunto de ideias. Cabe às próprias pessoas pensar em como elas poderão colocá-lo em prática. Queremos colaborar, deixar que as pessoas façam o que parece ser útil, porque elas serão os especialistas em seu ambiente e em sua posição. A segunda etapa do projeto é que isso aconteça na medida em que estiver acontecendo. Esperamos receber feedback sobre isso.

Esperamos aprender como as pessoas o estão usando, o que funcionou, o que não funcionou e assim por diante. Eu acho que o que nós queríamos principalmente alcançar era algum senso de apoio para as pessoas que querem pensar e fazer as coisas de maneira diferente ou ver suas vidas de maneira diferente – algumas ideias para que eles ponham em prática para levá-las mais adiante. É assim que parece estar funcionando. Isso é ótimo. É uma jornada em andamento, então vamos ver.

Morrill: Como os objetivos centrais do P.A.S. se encaixam ou se chocam com o movimento para globalizar a saúde mental?

Johnstone:  Um dos maiores escândalos de nossa era, penso eu, não é apenas que o modelo de diagnóstico está falhando de forma abrangente na maioria dos países industrializados ocidentais nos quais foi desenvolvido, mas que ao mesmo tempo – e isso pode não ser uma coincidência – esteja sendo exportado pelo mundo todo.

Isso geralmente é visto como sendo bom, e tenho certeza de que as pessoas estão motivadas para o bem, a maioria delas, ao promoverem isso. Embora não esteja tão segura quanto às empresas farmacêuticas.  Mas acho que estamos perto demais para ver o que o escandaloso que isso é. Isso me lembra bastante como há cem anos, 80 anos atrás, o que ocorria com os missionários exportando o cristianismo, obedientemente e bem motivados.  Mas na verdade isso é em certo sentido semelhante, e diria que é até mesmo mais prejudicial. É uma forma de colonização e é insidiosa, porque trata-se de conquistar as mentes das pessoas e persuadir as pessoas de que isso é o que elas querem, essas maravilhosas novas formas científicas ocidentais de tratar as chamadas doenças. Uma das fortes mensagens do P.A.S., esperamos, é uma mensagem de respeito pelas muitas formas diferentes, culturalmente específicas e culturalmente apropriadas, de entender, expressar e tratar o sofrimento em todo o mundo.

Isso é muito diferente da perspectiva do DSM, porque a perspectiva do DSM tem um grande problema em tentar acomodar expressões de sofrimento culturalmente específicas. Porque se estas são doenças médicas, elas pareceriam mais ou menos as mesmas, não é mesmo? Diabetes, uma perna quebrada, malária, ou o que quer que seja pareceria ser mais ou menos o mesmo, onde quer que aconteça. Expressões de sofrimento psíquico podem parecer extremamente diferentes. Podem parecer extremamente diferentes ao longo do tempo, assim como entre culturas. Nos termos da Estrutura de Significado de Ameaça de Poder, isso absolutamente faz sentido porque um dos nossos principais argumentos é que, em vez de entender o sofrimento através de padrões biológicos, padrões que são emprestados dos tipos de padrões que vemos quando as coisas dão errado em nossos corpos, precisamos entender o sofrimento através de padrões organizados por significado. Eles são organizados pelo significado, não pela biologia, que é um grande salto conceitual, um dos saltos conceituais fundamentais que acho que fizemos. Precisamos estar pensando sobre como esses padrões são baseados ou organizados por significados sociais e culturais, não pela biologia e algo que deu errado com nossos corpos.

Assim que você se depara com isso, percebe, do ponto de vista do quadro de referências, é claro, expressões e experiências de sofrimento psíquico vão parecer muito diferentes culturalmente, porque são culturas diferentes com significados, normas, significados e pressupostos diferentes. Isso define o cenário para dizer, bem fantástico. Se isso funciona, é ótimo. Na verdade, ir além disso e dizer que pode haver coisas que podemos aprender com culturas não-ocidentais não industrializadas, em vez do contrário. “Vamos impor nossas visões ‘modernas’”.

Morrill: Que críticas você recebeu e como a psiquiatria respondeu ao P.A.S.?

Johnstone: Bem, os psiquiatras variam. Tem sido interessante porque há um grupo de psiquiatras no Reino Unido chamado Rede de Psiquiatria Crítica, que são críticos muito diretos do modo como a psiquiatria funciona. Fui convidada para falar em sua conferência anual este ano. Eles foram muito solidários, muito interessados, muito acolhedores.

Outros psiquiatras, é claro, viram isso de maneira diferente e, como esperado, têm, bem, gosto de pensar que a linha usual de defesa vai ignorar, atacar, assimilar.

Qualquer abordagem que desafie o status quo que você tende a ver: ignorar, vamos fingir que ninguém disse isso, atacar, vamos rasgar isso, assimilar– de certa forma, a fase mais perigosa, porque é como “Vamos pegar alguns pedaços e partes disso, mas vamos ignorar a mensagem fundamental ” e todo o road showcontinua como antes. Teremos psiquiatria como antes, mas teremos um grupo de ouvidores de vozes por meia hora uma vez por semana enfermaria, onde damos às pessoas algumas estratégias de enfrentamento e, ao mesmo tempo, tudo continuará como antes. Embora, curiosamente, pareçamos ter ido direto para a fase de ataque com o quadro de referências. Eu não sei o que isso significa, mas eu quero dizer que é realmente muito maior do que, como às vezes é inadequadamente dito, psiquiatria versus psicologia. Trata-se de uma forma de pensar que está profundamente enraizada em todas as nossas mentes, em todos os profissionais de qualquer formação.

Acho que é importante ouvir tudo que volta para você, mas algumas coisas me parecem bastante estranhas. Por exemplo, uma das grandes críticas que temos recebido é que “Seu quadro de referências carece de evidências”. Bem, o modelo de diagnóstico não é evidenciado, com certeza. Na verdade, temos 70 páginas de referências e uma visão geral das evidências. Algumas das críticas menos construtivas são: “Você é antipsiquiatria”, que, no Reino Unido, é uma forma generalizada de desacreditar você.

O sistema não vai mudar facilmente, e por sistema quero dizer todos os profissionais que estão envolvidos nele. Mas, como eu disse, não é principalmente para onde estamos mirando. Acho que chegou a hora, tanto quanto podemos, de nos afastarmos de todas essas coisas e promovermos boas práticas e práticas diferentes onde pudermos e onde houver pessoas dispostas a ouvir e experimentar coisas novas.

Morrill: Houve uma crítica ao envolvimento dos usuários e sobrevivente no projeto P.A.S. Você pode discutir essas críticas, assim como suas respostas a elas?
Johnstone: Temos tido comentários realmente, realmente emocionantes, vindos de pessoas específicas que disseram: “Eu vejo minhas dificuldades de uma maneira muito diferente, não preciso me sentir tão diferente, nem culpado ou envergonhado”, e assim por diante. E tivemos algumas críticas muito justas, particularmente que não é muito fácil lê-lo na maior parte da sua forma atual. Eu acho isso justo. Acho que queremos pensar em formas mais acessíveis e estamos fazendo isso.

Há pessoas que dizem: “Não parece realmente se encaixar ou descrever-me”. Isso é absolutamente bom. E há pessoas que estão felizes com o modelo de diagnóstico que se encaixa e se adequa a elas, e isso é absolutamente bom também, porque não é nosso objetivo, nem está ao nosso alcance, impor esse quadro de referências às pessoas. É para as pessoas pegarem se quiserem.

Nós tivemos algumas críticas bastante iradas que eu acho que são baseadas em mal-entendidos e eu não posso culpar ninguém por não ler todo o documento – é longo – mas o risco é você pegar ideias que não são realmente o que dissemos . Um dos comentários regulares que recebemos é: “Eu preciso do meu diagnóstico para o acesso ao bem-estar e ao serviço, e você quer tirar o meu diagnóstico.” E também, “O sistema vai dar pulos com isso e dizer ‘oh, essas pessoas não são doentes, não precisamos dar-lhes apoio’ ”, e assim por diante. Na verdade, nós dissemos claramente, em vários pontos do documento, que a primeira prioridade deve ser proteger o acesso das pessoas a benefícios e serviços, e assim por diante.  Este é um documento para discussão. Não é um plano para serviços ou para agências de benefícios, é uma maneira de discutir ideias.

Eu ainda sustentaria que o atual sistema de benefícios não está funcionando agora e as mesmas pessoas que estão, compreensivelmente, preocupadas com “Isso tornará a vida ainda mais difícil?” Eu acho que seria a primeira a admitir que o sistema é terrível no Reino Unido, e não apenas no Reino Unido. Muitas vezes, o diagnóstico é usado para excluir e incluir pessoas, e a maioria das pessoas está realmente sofrendo e tem que passar por um processo humilhante de se descrever em seu pior dia e aceitar um rótulo que possa não ser o mais feliz para ter o mínimo para viver. Este sistema realmente precisa mudar. Precisa mudar de uma maneira que não coloque as pessoas em risco. Mas acho que temos que ter essas discussões.

Há outras pessoas que eu acho que entenderam ou entenderam mal e estão a dizer: “Nós iremos dar a volta pelo país, arrancando o diagnóstico das pessoas e dizendo: ‘você não tem permissão para usar essa linguagem’.” Eu disse claramente que as pessoas têm que ter o direito de descrever suas experiências de uma maneira que faça mais sentido para elas, mas raramente é oferecida a essas pessoas essa escolha. Essa escolha é raramente oferecida às pessoas.

Morrill: Para onde vamos daqui? O mundo da psiquiatria ainda parece ser principalmente governado pelo DSM. O P.A.S. seria como uma causa perdida, se for esse o caso?

Johnstone: Não parece uma causa perdida porque, na minha opinião, estamos realmente testemunhando o desmoronamento de todo um paradigma. Com ou sem o P.A.S., os dias do paradigma de diagnóstico estão contados. Se você ler o material de Thomas Kuhn, a ‘Estrutura das Revoluções Científicas’, estamos vendo todos os sinais da queda de um paradigma. Estamos vendo contradições maciças dentro do paradigma, tentativas desesperadas de reforçá-lo, uma montanha de evidências que não são corretas, ou que outras formas são um caminho melhor para se seguir.

Uma das coisas que Thomas Kuhn diz é que todas essas coisas podem acontecer e, no entanto, o paradigma não mudará fundamentalmente a menos que ou até que haja outro lugar para onde ir. Bem, eu acho que há realmente um número de lugares para ir, e eu acho que a perspectiva informada pelo trauma, que nós desenhamos em grande parte no quadro de referências, é um deles, mas eu acho o quadro em si, espero eu, também possa ser visto como suporte adicional para esse tipo de abordagem, e como um lugar para se ir de fato. Se se tornar uma pequena parte desse inevitável processo, e eu acho que é inevitável, então ficaremos satisfeitos e orgulhosos.

Morrill: Isso é animador de ouvir.

Johnstone: Como você vê, eu sou totalmente otimista.

Morrill: Algo mais a acrescentar?

Johnstone: Eu penso que não. Eu gostaria de encorajar as pessoas a ler esses links que você irá colocar mais adiante para que conheçam algo mais. Faça o que quiserem desse material.

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Ouçam o audio aqui

Mais informações à respeito do Quadro de Referências Poder, Ameaças e Sentido:

The British Psychological Society: Introducing the Power Threat Meaning Framework (legendado)

Dra. Lucy Johnstone: interview to MIA radio.

A proposta discutida em Nova Zelândia e Austrália (parte I)

Reflections on responses to the power threat meaning framework one year on. 

 

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