Manual de Psiquiatria Crítica, Capítulo 7: Psicose (Parte dois)

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Human skull on multicolored of drug and capsule is on the black background. Close up. We are against drugs (anti drugs), cure in container for health.Heap of green blue white round capsule pills

 

Nota do editor: Nos próximos meses, a Mad in Brasil publicará uma versão serializada do livro de Peter Gøtzsche, Manual de Psiquiatria Crítica. Neste blog, ele discute as evidências de que as pílulas para psicose aumentam substancialmente a mortalidade.A cada quinze dias, uma nova seção do livro será publicada e todos os capítulos estão arquivados aqui

 

Pílulas para psicose aumentam substancialmente a mortalidade

Os psiquiatras apresentaram muitos argumentos sobre a importância do uso de pílulas para a psicose, mas todos eram insustentáveis. Um deles era que os pacientes com esquizofrenia vivem de 15 a 20 anos a menos do que outros cidadãos,[18:288] e entre as causas mencionadas estão o suicídio, acidentes, doenças cardiovasculares, síndrome metabólica, estilo de vida, subtratamento de doenças somáticas e danos causados por drogas.[16:628] O tratamento com pílulas para a psicose não foi mencionado.[17:308]

Um manual observou que a mortalidade aumenta se a psicose aparecer precocemente na vida,[19:239] mas não ocorreu aos autores que quanto mais longa a duração da psicose maior o tratamento com pílulas para a psicose e, portanto, também maior a mortalidade, pois as drogas aumentam a mortalidade.

Dois manuais didáticos levantaram a alegação altamente implausível de que as pílulas para a psicose reduzem a mortalidade nos transtornos psicóticos.[16:222,18:101,18:236] Elas não reduzem; elas aumentam substancialmente a mortalidade.

 

Não é possível utilizar ensaios controlados por placebo em esquizofrenia para estimar o efeito das pílulas para a psicose na mortalidade, porque o desenho de retirada da droga aumenta a mortalidade no grupo do placebo. A taxa de suicídio nesses ensaios antiéticos era de 2-5 vezes maior do que a norma.[1:269,161] Um em cada 145 pacientes que participaram dos ensaios para risperidona, olanzapina, quetiapina e sertindol morreu, mas nenhuma dessas mortes foi mencionada na literatura científica, e a FDA não exigiu que fossem mencionadas.

Quando decidi descobrir o quão letais são as pílulas para a psicose, concentrei-me em pacientes com demência, assumindo que poucos deles estariam em tratamento antes da randomização. Uma meta-análise de ensaios controlados por placebo com 5.000 pacientes mostrou que, após apenas 10 semanas, 3,5% haviam morrido enquanto recebiam olanzapina, risperidona, quetiapina ou aripiprazol, e 2,3% haviam morrido com o placebo.[162] Assim, para cada 100 pessoas tratadas por 10 semanas, um paciente foi morto com pílula para a psicose. Essa é uma taxa de mortalidade extremamente alta para qualquer droga.

Como metade dos suicídios e outras mortes estão ausentes, em média, nos ensaios clínicos de drogas psiquiátricas publicados,[125] eu verifiquei os dados correspondentes da FDA com base nas mesmas drogas e ensaios. Como esperado, algumas mortes foram omitidas das publicações, e as taxas de mortalidade eram agora de 4,5% versus 2,6%, o que significa que as pílulas para a psicose matam dois pacientes em cem em apenas dez semanas,[163] ou o dobro do que indicam os relatórios dos ensaios publicados.

Também encontrei um estudo finlandês com 70.718 residentes na comunidade recém-diagnosticados com doença de Alzheimer, que relatou que as pílulas para a psicose matam 4-5 pessoas a mais a cada cem por ano em comparação com pacientes não tratados.[164] Se os pacientes recebessem mais de uma droga, o risco de morte aumentava em 57%. Como este não foi um ensaio randomizado, os resultados não são totalmente confiáveis, mas são plausíveis, visto os dados dos ensaios randomizados. Assim, as drogas podem matar quatro vezes mais pacientes do que os relatórios publicados indicam, ou até mais, se estendermos o período de observação para além de um ano.

Um manual didático observou que as pílulas para a psicose podem aumentar a mortalidade em pacientes com doença de Alzheimer.[18:49] Isso é uma diminuição do problema. Essas drogas não apenas podem aumentar a mortalidade, elas aumentam a mortalidade e em grande medida, algo sobre o qual o manual didático nada disse.

Esse fenômeno é observado em todos os lugares, em manuais didáticos, artigos científicos, em sites, em palestras e em entrevistas na mídia. Há uma enorme assimetria na forma como os psiquiatras descrevem os benefícios e os danos. Raramente há ressalvas quando os benefícios das drogas são comentados, e seus efeitos são muito exagerados, o que exemplificarei ao longo deste livro.

Outro manual didático foi ainda pior. Observou que meta-análises em grandes conjuntos de dados de pacientes sugeriam uma pequena mortalidade excessiva em pacientes com demência tratados com pílulas para a psicose em comparação com o placebo, mas que era incerto o que causava essa mortalidade excessiva.[17:243]

Isso beira a fraude. Não houve referência, mas as meta-análises não apenas sugeriram, mas comprovaram a mortalidade excessiva; não foi pequena, mas enorme; e a FDA explicou o que a causa: a maioria das mortes em pacientes dementes foi por causas cardiovasculares (por exemplo, insuficiência cardíaca, morte súbita) ou infecciosas (por exemplo, pneumonia).[163]

A pergunta importante então é: Podemos extrapolar esses resultados para jovens com esquizofrenia?

Não temos outra escolha. Na assistência à saúde baseada em evidências, fundamentamos nossas decisões na melhor evidência disponível. Isso significa a evidência mais confiável, que são os dados apresentados logo acima, duas mortes por cem pessoas tratadas por dez semanas. Assim, na ausência de outras evidências confiáveis, precisaremos assumir que as pílulas para a psicose também são altamente letais para jovens.

Jovens que fazem uso de pílulas para a psicose também frequentemente morrem de causas cardiovasculares e subitamente,[8:40] e esperaríamos que alguns deles morressem de pneumonia. Pílulas para a psicose e internação compulsória em uma ala fechada tornam as pessoas inativas, e quando ficam deitadas em suas camas, o risco de pneumonia e embolia pulmonar de uma trombose venosa aumenta, o que pode passar despercebido antes que seja tarde demais. Pílulas para a psicose também matam pacientes devido a ganhos de peso enormes, hipertensão e diabetes.

Considerando que essas drogas não têm um efeito clinicamente relevante na psicose e que os benzodiazepínicos são muito menos perigosos e parecem funcionar melhor para pacientes agudamente perturbados,[165] a conclusão deve ser que as pílulas para a psicose não devem ser usados para ninguém. Eles deveriam ser retirados do mercado.

Os psiquiatras não culpam suas drogas ou a si mesmos pela vida consideravelmente mais curta dos pacientes com esquizofrenia, mas sim os pacientes. É verdade que os pacientes têm estilos de vida pouco saudáveis e podem abusar de substâncias, especialmente tabaco. Mas também é verdade que parte disso é uma consequência das drogas que recebem e da maneira como são tratados. Alguns pacientes dizem que fumam porque isso contrabalanceia alguns dos danos das pílulas para a psicose, o que está correto, pois o tabaco aumenta a dopamina enquanto as pílulas a diminuem. E quando as pessoas ficam trancadas por semanas ou meses a fio e não têm nada para fazer, é estranho que elas fumem? Ou bebam? Ou comam demais? Ou se matem? Eu não acho.

Quando tentei descobrir por que jovens com esquizofrenia morrem, deparei-me com uma barreira, cuidadosamente guardada pela guilda psiquiátrica. É um dos segredos mais bem guardados que os psiquiatras matam muitos de seus pacientes, também os jovens, com pílulas para a psicose. Descrevi minhas experiências com essa barreira em 2017, ‘A Psiquiatria Ignora um Elefante na Sala,'[166] mas eventos subsequentes foram ainda piores. Este é um resumo de um relato mais abrangente.[8:40]

Estudos de coorte extensos em pessoas com um primeiro episódio psicótico oferecem uma oportunidade única para descobrir por que as pessoas morrem. No entanto, há pouca informação nesses estudos, ou nenhuma informação, sobre as causas da morte. Em 2012, Wenche ten Velden Hegelstad e 16 colegas publicaram dados de acompanhamento de 10 anos para 281 pacientes com um primeiro episódio psicótico (o estudo TIPS). Embora a idade média de entrada no estudo fosse apenas 29 anos, 31 pacientes (12%) morreram em menos de 10 anos.[167] Mas o artigo detalhado dos autores era todo sobre recuperação e pontuações de sintomas. Eles não mostraram nenhum interesse em todas essas mortes.

Escrevi três vezes para Hegelstad, mas não obtive os dados ausentes. Na terceira vez, ela respondeu que seriam publicados em breve, mas o novo artigo não apresentava os dados que eu havia solicitado.[168] Dois meses depois, Robert Whitaker e eu escrevemos ao editor da revista World Psychiatry, o professor Mario Maj, pedindo sua ajuda. Ele também não quis nos ajudar a descobrir por que os jovens morreram tão rapidamente.

Escrevemos novamente, explicando que pessoas com as quais conversei em vários países sobre mortes em jovens com esquizofrenia – psiquiatras, especialistas forenses e pacientes – todos concordaram que precisamos desesperadamente do tipo de informação que pedimos a Maj para garantir que fosse conhecida. Pedimos a ele que fizesse isso como seu dever ético, tanto como editor de revista quanto como médico em vez de nos dizer que não tinha espaço para nossa carta sobre isso em sua revista. Não tivemos mais notícias de Maj.

Ao contrário dos autores do estudo TIPS, a professora de psiquiatria dinamarquesa Merete Nordentoft foi proativa quando perguntei sobre as causas de morte de 33 pacientes após 10 anos de acompanhamento no estudo OPUS, também de pacientes com um primeiro episódio psicótico.[169] Eu mencionei especificamente que suicídios, acidentes e mortes súbitas poderiam estar relacionados as pílulas.

Nordentoft enviou uma lista das mortes e explicou que a razão pela qual as mortes cardíacas não estavam na lista era provavelmente porque os pacientes haviam morrido tão jovens. Mas nos atestados de óbito, ela viu alguns pacientes que haviam morrido subitamente, um deles enquanto estava sentado em uma cadeira, o que chamamos de mortes cardíacas.

É assim que deveria ser. A transparência é necessária se quisermos reduzir as muitas mortes que ocorrem em pacientes jovens de saúde mental, mas muito poucos psiquiatras são tão abertos quanto Nordentoft.

Para ver a lista de todas as referências citadas, clique aqui.

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Mad in Brasil (Texto original do site Mad in America ) hospeda blogs de um grupo diversificado de escritores. Essas postagens são projetadas para servir como um fórum público para uma discussão – em termos gerais – da psiquiatria e seus tratamentos. As opiniões expressas são próprias dos escritores.


Tradução de Leticia Paladino : Graduada em Psicologia pela UERJ, doutoranda em Saúde Pública pela ENSP/Fiocruz, mestre em Saúde Pública pela ENSP/Fiocruz e especialista em Saúde Mental e Atenção Psicossocial pela ENSP/Fiocruz.  Pesquisadora e Colaboradora do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial (LAPS/ENSP/Fiocruz).


 

Um Cérebro para nos Emancipar

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As perguntas sobre “O que compõe a natureza humana?” ou “Que tipo de seres somos?” foram respondidas ao longo da história por diversas narrativas, as quais determinaram, e determinam ainda hoje, nosso comportamento individual e coletivo, desde a política econômica até como educamos nossos filhos. Estas narrativas sobre nossa natureza são reflexos das diferentes formas de vida, suas culturas e cosmovisões. No caso particular da sociedade moderna, o lugar privilegiado a partir do qual são respondidas essas perguntas é a ciência moderna. Ao interior desta, disciplinas das ciências sociais, humanas e biológicas, disputam para colocar sua narrativa no topo desse lugar de privilégio epistêmico. Nas últimas décadas, surge um novo ator nesta disputa, o cérebro, e a disciplina que o estuda, a neurociência.

Apoiada em novas tecnologias de genética, computação e neuroimagem, a neurociência se apresenta como chave para entender os processos que tornam possível o humano e a humanidade. Produto de sua interação com outras disciplinas científicas, a neurociência apresenta várias abordagens metodológicas e níveis de análise, do molecular ao social e cultural. O cérebro como objeto de estudo, agora aparece como horizonte para responder perguntas sobre a natureza humana dentro do regime de verdade da ciência moderna.

Antes da neurociência, outros paradigmas e disciplinas cientificas foram os que dominaram esta narrativa, influenciando o jeito como nós pensávamos como humanos. O jeito como o conhecimento cientifico intervém na nossa construção como atores sociais e políticos é composta por fragmentos destas narrativas e o contexto aonde estão inseridas. Em palavras do filosofo da ciência Ian Hacking, a ciência teria a capacidade para “criar tipos de seres humanos”, os quais explicam-se a sim mesmos ao interior destas narrativas. O conhecimento sobre o humano determina a subjetividade deste, indo do epistemológico para o ontológico. O que um ser humano pode ou não pode fazer depende do conhecimento sobre as potencialidades que o constroem.

A seguinte pergunta seria: Qual é o papel da neurociência nesta “criação de seres humanos”? Como as teorias neuroquímicas dos transtornos psiquiátricos afetam a subjetividade dos pacientes? A retórica subjetivadora começa pelo ideal de que “nós somos nosso cérebro”, e isto, segundo os pesquisados Francisco Ortega e Fernando Vidal, provocaria em quem incorpora simbolicamente este conhecimento o nascimento de um “eu cerebralizado”.

Por uma parte, o sujeito que incorpora a narrativa neurocientífica também é atravessado por outras narrativas, não necessariamente cientificas, que também aspiram a explicar sua experiência como humano. Por outra parte, os conceitos produzidos pela neurociência têm origens e trajetórias diversas, contribuindo de maneira diferente ao fenômeno da criação de sujeitos. Aqui, colocaremos o foco e situaremos um destes conceitos, o de plasticidade, com o fim de reorientá-lo para um fim emancipatório.

A plasticidade é a capacidade do sistema nervoso para se modificar funcional e estruturalmente em resposta à estímulos. Esta capacidade de adaptação é chave no desenvolvimento, numa lesão, na aprendizagem ou na consolidação da memória. Biologicamente, os mecanismos por trás do conceito de plasticidade seriam a reorganização das sinapses ou conexões neurais, a criação de novos neurônios e processos moleculares de depressão e potenciação sináptica. Este conceito, transversal a toda a neurociência, é o ponto de partida da filosofa francesa Catherine Malabou, no livro “O que devemos fazer com o nosso cérebro?”[1]. Malabou vê na plasticidade a possibilidade de uma dimensão histórica do nosso cérebro. Frente a ideia, já abandonada, de um cérebro geneticamente determinado e rígido a plasticidade oferece a possibilidade de um cérebro com história.

A autora convida-nos a tomar consciência desta historicidade para instrumentalizá-la apoiando-se em sua semântica. Em primeiro lugar, nosso cérebro é plástico porque recebe uma forma (como uma sacola plástica), porém, também tem a capacidade de dar forma (como nas artes ou cirurgia plástica). Por último, a plasticidade também teria a capacidade de aniquilar ou destruir qualquer forma (explosivos plásticos)[2]. Temos um cérebro que não só cria e recebe, como também destrói e desafia qualquer forma ou modelo. Malabou coloca como, no capitalismo, esta potencialidade que a plasticidade invoca é substituída, na pratica, por uma flexibilidade. Enquanto a plasticidade permite uma adaptação e adequação ao meio ao mesmo tempo que nós mesmos transformamos esse meio, o que experimentamos no capitalismo é uma flexibilidade pela qual nos adaptamos a um meio imutável e previamente definido.

Se a ideia de plasticidade é sequestrada pelo capitalismo na sua face mais radical, o neoliberalismo, deveríamos então nos reapropriar dessa categoria e exteriorizá-la para que o nosso cérebro plástico dê forma a uma realidade digna, ao contrário do que acontece no capitalismo, aonde é uma realidade miserável a que dá forma ao nosso cérebro flexível. Malabou demonstra que é possível pegar um conceito neurocientífico e reorientá-lo estrategicamente. Não poderíamos fazer isto com outros conceitos neurocientíficos? Não poderíamos fazer isto com toda a disciplina, chave na compreensão da natureza humana? É possível imaginar outro jeito de entender o nosso cérebro e nossa humanidade a partir de valores como a cooperação, interdependência e solidariedade. Não seria nosso cérebro plástico capaz disso?

A modernidade capitalista, além de relações de poder, cria o tipo de ser humano que acredita que estas relações de poder são naturais e imutáveis. A construção deste ser humano é conduzida pelo conhecimento que ele tem sobre ele mesmo. Para reverter isto, será necessária uma revisão crítica do conhecimento humano que guia nosso ser e estar no mundo. A procura pelo conhecimento universal e objetivo gera um tipo de humano concreto, idealizado e limitado, além do qual são produzidas ausências e injustiças, pois o que não é pensado não existe. A neurociência e a ideia de que “somos o nosso cérebro” também sofrem estas limitações e na sua incapacidade para abranger com a sua teoria todas as formas de vida do planeta, as oculta e margina. Precisamos desvendar as dimensões sociais e políticas do marco conceitual das ciências naturais, algo fundamental para estruturar a luta contra as injustiças cognitivas. Na procura de uma descolonização epistêmica e cognitiva, devemos descolonizar o conhecimento sobre o cérebro que define nossa humanidade, dando lugar a outras formas de conhecer e outras formas de humanidades além do modelo eurocêntrico, moderno e capitalista.

O que é então que devemos fazer com o nosso cérebro? Como podemos criar uma nova forma de entendê-lo que seja libertadora? Precisamos, não só de uma nova ideia do cérebro que nos permita superar as opressões capitalistas, coloniais e patriarcais, como também uma epistemologia que permita construir este novo cérebro. A justiça cognitiva passa pela crítica de como é articulada a relação entre cognição e cérebro. O conhecimento que articula esta relação é moderno e capitalista, portanto, orienta nosso cérebro a aceitar com flexibilidade as relações de poder que nos subjugam. Precisamos de uma neurociência em diálogo com outros saberes e afastada das hierarquias epistêmicas da ciência moderna e seu regime de verdade. Nesta linha, recorremos à proposta do sociólogo Boaventura de Sousa Santos das Epistemologias do Sul, dado que precisamos uma crítica e diálogo desde posições externas a própria ciência moderna. Neste processo, podemos reapropriarmos de forma estratégica de conceitos neurocientíficos, com o fim de reorientá-los e dotá-los de um novo sentido contra hegemônico, tendo cautela para não nos manter presos ao interior do marco categorial moderno. A proposta de Malabou com o conceito de plasticidade poderia ser a primeira de muitas reapropriações contra hegemônicas possíveis que nos ajudem a construir uma nova neurociência e uma nova ideia do cérebro humano que seja emancipatória.

 

[1] O título original é “What should we do with our brains?” e não foi traduzido ao português ainda.

[2] Em francês, as palavras ‘plastiquage’ e ‘plastiquer’ denominam substâncias explosivas formadas por nitroglicerina e nitrocelulose.


Tradução de Thamyres T. Choji: é estudante de doutorado na Universidade de Cádiz (Espanha) e participa do grupo de pesquisa & quot: Intelligent Social Knowledge-Based Systems&quot (IntellSOK). Ela possui uma formação multidisciplinar em engenharia química e ciência da computação, hoje seu foco está centrado em estudar a interseção entre a tecnologia e seu impacto na sociedade utilizando análise de redes e bibliometria. Email: [email protected] / Twitter: @ThamyChoji


 

A medicalização das emoções: “é normal ou é transtorno?”, eis a questão do século

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No dia 30 de outubro de 2023, o jornal Estadão publicou uma matéria relatando como as pessoas, e principalmente os jovens, procuram as soluções para sanar as suas tristezas e angustias através da medicação.

A matéria aponta que para cada tristeza ou angústia que o adolescente apresenta, a solução parece estar em uma pílula. Talvez pela falta de habilidade em lidar com as emoções ou dificuldade em discernir entre uma tristeza temporária e uma condição patológica, muitos pais têm recorrido aos consultórios médicos em busca de soluções rápidas para aliviar os conflitos internos de seus filhos.

Como destaque a reportagem ainda aponta o crescimento da patologização e medicalização da vida, sendo reproduzido assim, com estereótipo artificial e “maquiado” que a medicalização é vista como a solução dos problemas.

“A medicalização dos sentimentos, das emoções, tem sido um dos grandes desafios da vida moderna. Quando a gente coloca rótulos de transtornos mentais em fatores biológicos ou situacionais que nem sempre precisam de ajuda profissional, perdemos a chance de deixar que os filhos entendam suas próprias subjetividades para lidarem com seus problemas de um jeito mais tranquilo e natural.”

Em contrapartida a reportagem destaca a importante do suporte emocional que o jovem necessita, suporte esse que está longe de ser um suporte que medicaliza todo e qualquer sentimento. Até onde se sabe os adolescentes e jovens precisam revisitar os sentimentos, tentando entender o que eles significam, o que eles provocam e como podem lidar com as sensações que são despertadas.

Um estudo publicado em 2020 na revista científica Pediatrics trouxe à tona uma descoberta preocupante: mais de 40,7% dos pacientes entre 2 e 24 anos que receberam prescrições para tratar o Transtorno do Déficit de Atenção/Hiperatividade (TDAH) também receberam antidepressivos, resultando em mais de 50 tipos distintos de medicamentos psicotrópicos usados em conjunto.

Segundo o Conselho Federal de Farmácia, o Brasil viu um aumento notável de cerca de 58% nas vendas desses medicamentos entre 2017 e 2021. No Reino Unido, o censo demográfico mais recente de 2021 revela que 14,7% dos jovens de 18 anos fazem uso de algum antidepressivo. Já nos Estados Unidos, de acordo com dados do Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC), esse índice é de 13%.

Conforme a própria reportagem aponta, existe uma tentativa por parte das industrias e laboratórios farmacêuticos em transformar o ser humano em uma fonte constante de felicidade. Exemplo como o documentário Painkiller que aborda a dependência de medicamentos, que retrata a epidemia de opioides, ou até mesmo o livro “A Verdade sobre os Laboratórios Farmacêuticos” da Médica Marcia Angell.

“É preciso ter coragem de permitir que os jovens vivenciem emoções como tristeza, a perda, a frustração, pois a diversidade emocional é uma parte fundamental na jornada de qualquer pessoa. E é ela quem vai garantir o desenvolvimento de habilidades e capacidades para que este ser seja capaz de superar momentos não tão bons na vida.”

A matéria ainda destaca que a cura nem sempre está nos medicamentos, mas sim na liberdade de discutir com serenidade sobre suas emoções, lembrando assim que a vida não segue uma trajetória linear.

 

O que as Comunidades Terapêuticas no Brasil revelam sobre o processo de luta por direitos à saúde mental em uma perspectiva antimanicomial?

Tortura, violência, subtração de direitos humanos fundamentais. Estas expressões são comumente relacionadas à realidade vivida por sujeitos inseridos nas pretensas propostas de cuidado ofertadas pelas instituições denominadas Comunidades Terapêuticas no Brasil.

Orientadas pelo discurso de oferecer acolhimento em regime residencial temporário destinado a pessoas em consumo prejudicial de substancia psicoativa, a partir de uma suposta desassistência originada pela insuficiência das políticas públicas de saúde enfraquecidas pelo subfinanciamento oriundo da política de austeridade fiscal no Brasil, detêm a maior parte dos investimentos públicos destinados aos cuidados desta população e atualmente compõem a Rede de Atenção Psicossocial.

Os Conselhos Federais de Psicologia e Assistência Social, juntamente com o Ministério Público Federal e o Mecanismo de Combate a Tortura fizeram no ano de 2018 uma série de inspeções nestas instituições que resultaram no Relatório da Inspeção Nacional em Comunidades Terapêuticas. A partir de então tornaram-se evidenciadas severas críticas de trabalhadores, atores sociais e da comunidade acadêmica e, embora sejam alvo de recorrentes denúncias, a baixa ou nenhuma efetividade destas ações pode ser observada. Desta forma, o que o silêncio diante destas denúncias pode vir a nos dizer?

As garantias de melhores condições de saúde e de proteção de direitos fundamentais aos sujeitos em sofrimento psicossocial relacionados ou não ao consumo de substâncias psicoativas faz parte de um campo de luta e reforma de um paradigma de cuidado que atravessa saberes e práticas no âmbito da saúde pública, saúde coletiva e da saúde mental. No território brasileiro, a consagração destes movimentos é correlato ao processo de redemocratização e da contemplação dos direitos em saúde como direitos fundamentais assegurado pela constituição e 1988. Sob influência dos demais processos de reforma ao redor do mundo que passam a combater ferramentas de segregação e isolamento social de pessoas indesejadas pela sociedade a partir da sustentação do princípio da dignidade humana, a história das politicas publicas de saúde mental no Brasil desenovela o agora.

Na contemporaneidade, este movimento é deflagrado como resposta às atrocidades cometidas ao longo da Segunda Guerra Mundial. A discussão acerca do movimento de internacionalização dos direitos humanos consagrada com a Declaração Universal do Direitos Humanos de 1948 começa a delinear importantes tratados de proteção dos direitos humanos com o chamado Direito Internacional dos Direitos Humanos, propondo em um alcance global (Organização das Nações Unidas – ONU) e em um alcance regional (sistemas europeu, interamericano e africano) uma composição de um universo instrumental com a finalidade de proporcionar maior efetividade na proteção e promoção dos direitos humanos.

Neste mesmo contexto histórico, movimentos que propunham mudança aos modelos de cuidado em saúde destinados sobretudo àqueles em sofrimento psíquico, começaram a emergir em países europeus e logo deixaram de ser movimentos locais e passaram a compor intenções mudanças paradigmáticas. Dentre os processos de reforma dos cuidados em saúde, o movimento da Comunidade Terapêutica no território Inglês, liderado pelo médico militar Maxwell Jones, deixou de ser um modelo local de cuidado e passou a ser uma política de Estado, servindo de inspiração para muitos outros processos de reforma como, por exemplo, o norte americano e o brasileiro.

O Brasil começa a se inserir no cenário de proteção internacional dos direitos humanos apenas com o processo de democratização iniciado em 1985, consagrando os princípios da prevalência dos direitos humanos e da dignidade humana a partir da Constituição de 1988. A responsabilidade internacional do Estado por violação de direitos humanos reafirma a judicialidade de um conjunto de normas voltadas para a proteção do indivíduo e para a afirmação da dignidade humana. Assim, a Corte Interamericana de Direitos Humanos passa a julgar casos de violação de direitos humanos e, tais julgamentos, começam a promover mudanças institucionais no âmbito dos sistemas de justiça nacionais, dando relevo ao monitoramento, a implementação efetiva das decisões e as recomendações direcionadas aos sistemas e mecanismos internacionais e regionais de direitos humanos.

A partir do ponto que se objetiva a obrigatoriedade do Estado na proteção dos direitos humanos, consagrando o indivíduo como principal preocupação desta responsabilidade, a inobservância por parte do Estado de suas obrigações de forma direta ou por sujeitos com o apoio do poder público prevê consequências jurídicas e responsabilização pela violação destes direitos e consequente reparação dos danos causados. Um exemplo da implementação destas recomendações expressas e de seus desdobramentos e repercussão das políticas públicas de um país através de sentenças condenatórias se dá no julgamento da Corte Interamericana de Direitos Humanos em decorrência da morte de Damião Ximenes Lopes, mantido sob tortura em uma clínica psiquiátrica em Sobral, no Ceará.

A primeira condenação do Estado brasileiro a ofensas de obrigações internacionalmente assumidas foi referente a prática de sujeição presente na realidade das instituições que oferecem uma proposta de cuidado sob a orientação do paradigma psiquiátrico tradicional a indivíduos em sofrimento psicossocial acrescido ou não ao uso de substancias psicoativas. O caso possui reflexos até os dias atuais referenciando decisões do Conselho Nacional de Justiça na instituição da Política Antimanicomial do Poder Judiciário no âmbito do processo penal e da execução de medidas de segurança em consonância com a Convenção Internacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência e com a Lei nº 10.216/0.

Embora o caso seja considerado encerrado, a partir da resolução do Conselho Nacional de Justiça nº 487/2023, que em seu artigo 2º considera a Rede de Atenção Psicossocial uma ferramenta para assegurar a singularidade, autonomia e dignidade humana em proscrição à prática de tratamentos cruéis, desumanos e degradantes, a inclusão das instituições intituladas Comunidades Terapêuticas nesta rede de cuidados contraria os pressupostos de tal decisão.

As Comunidades Terapêuticas representam atualmente, no cenário brasileiro, a manutenção de lógicas manicomiais, em total desacordo com a utilização original do termo estabelecido por Jones nos idos de 1940. Configuram hoje um dispositivo que consolida, mesmo contrariando pactos internacionais de proteção da dignidade humana, um modelo de tratamento asilar, punitivo e fundamentado na correção moral, favorecendo políticas que elegem estas instituições como equipamento prioritário na atual política de drogas, tendo apoio da pasta do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome.

Embora existam avanços no âmbito dos Direitos Humanos, da Saúde Mental, Atenção Psicossocial, Álcool e Outras Drogas em consonância com políticas antimanicomiais, com propostas que favoreçam uma recomposição das condições sociais, políticas, econômicas, culturais e discursivas dos sujeitos vulnerabilizados e suscetíveis a tais violências, o silencio diante das denúncias às violências praticadas no interior das instituições intituladas Comunidades Terapêuticas desnuda, aos berros, a perpetuação do apoio por parte do Estado brasileiro às práticas combatidas através de pactos internacionais de proteção de direitos humanos fundamentais.

Um Olhar Crítico sobre a Patologização do Sofrimento Psíquico

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Saiu no dia 16 de novembro de 2023, matéria com Paulo Amarante e Robert Whitaker no blog do Centro de Estudos Estratégicos (CEE/Fiocruz).

Paulo Amarante, militante histórico do movimento da reforma psiquiátrica brasileira e professor e pesquisador da Fiocruz, critica o uso cada vez maior de remédios psiquiátricos, assim como do crescente aumento de diagnósticos psiquiátricos. Paulo chama a atenção para o fato de que a experiência psíquica deve ser abordada em toda a sua complexidade. É preciso discutir outras formas de tratamento e de relação das pessoas com a sociedade, apontando caminhos inovadores.

“Remédio tarja preta não dá pra ser consumido como se fosse bala.”

— Paulo Amarante

Robert Whitaker, jornalista e escritor, criador da rede Mad in the World, ressaltou o papel da indústria farmacêutica no marketing das drogas psiquiátricas, visando dar a credibilidade que a psiquiatria vinha perdendo. Robert, também destaca o papel do Brasil na luta contra a medicalização e patologização do sofrimento, levada à frente com suporte de instituições como a Fiocruz.

“O país em que a rebelião contra o modelo medicalizado está mais forte é o Brasil, e o que acontece aqui é muito importante para ampliar a luta contra essa filosofia danosa que nos foi imposta.”

— Robert Whitaker

Veja a matéria completa aqui → “Paulo Amarante e Robert Whitaker: um olhar crítico sobre a patologização do sofrimento psíquico.”

Manual de Psiquiatria Crítica, Capítulo 7: Psicose (Parte um)

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Pill Bottle and Prescription, concept for Healthcare And Medicine

Nota do editor: Nos próximos meses, a Mad in Brasil publicará uma versão serializada do livro de Peter Gøtzsche, Manual de Psiquiatria Crítica. Neste blog, ele discute a falta de eficácia e a pouca base de evidências para as drogas utilizadas no tratamento da psicose.A cada quinze dias, uma nova seção do livro será publicada e todos os capítulos estão arquivados aqui

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As drogas antipsicóticas são o exemplo emblemático da psiquiatria e são altamente elogiadas nos manuais didáticos. Nos dizem que antes de sua chegada, muitos pacientes precisavam passar o resto de suas vidas em hospitais e outras instituições;[16:222] que a descoberta dos comprimidos na década de 1950 significou que muitos pacientes psicóticos claramente melhoraram sua qualidade de vida, possibilitando sua alta das instituições e reintegração na sociedade;[20:416] que pacientes que antes eram atormentados por suas doenças e eram agressivos agora podiam viver sozinhos ou em lares abrigados;[18:307] que os comprimidos para a psicose resultaram em uma diminuição no número de leitos hospitalares.[16:616]

Nos dizem que a clorpromazina foi uma revolução no tratamento dos transtornos psicóticos [16:560] e contribuiu em particular para o esvaziamento dos hospitais psiquiátricos;[18:307] e — antes da clorpromazina, do lítio, dos comprimidos para depressão e dos benzodiazepínicos — os pacientes gravemente doentes passavam a maior parte de suas vidas em instituições isoladas, atrás de portas trancadas, com janelas gradeadas, e a força física era utilizada — mas o desenvolvimento de drogas psiquiátricas na década de 1950 revolucionou o tratamento.[17:644]

 

Pote de remédios e prescrição, conceito para saúde mental e medicina

 

Os psiquiatras propagam essa narrativa em todo o mundo para obter apoio para a sua especialidade, mas tudo o que foi mencionado acima está errado. Não há referências para as alegações absurdas, mas foi documentado que os comprimidos não tiveram nada a ver com o esvaziamento dos asilos. Além disso, é impossível para drogas que — de acordo com a escala padrão para avaliar o efeito na psicose — não tenham efeitos clinicamente relevantes (veja logo abaixo), produzir resultados tão dramáticos.

Visto que o “esvaziamento dos asilos” é o argumento central para a suposta revolução no tratamento psiquiátrico que começou com a clorpromazina em 1954, explicarei por que ele está errado. A confusão decorre, em particular, de estudos falhos realizados em Nova York. Os autores observaram que as populações nos asilos diminuíram após 1954 e atribuíram isso ao tratamento com as drogas. Estudos mais rigorosos foram realizados em Michigan e Califórnia por outros autores, que compararam pacientes tratados e não tratados. Eles constataram que o uso das drogas não aumentaram as taxas de alta.

Em 1985, um estudo desmascarou completamente o mito com um estudo que abrangeu todos os estados dos EUA e comparou duas tendências de nove anos nas taxas de alta, de 1946 a 1954 e de 1955 a 1963. A mudança percentual média nas taxas de alta foi de 172 antes da clorpromazina, um pouco maior do que com a clorpromazina, que foi de 164.

Também não existem estudos em outros países que apoiem esse mito. Na Inglaterra, as populações de pacientes internados começaram a diminuir antes da introdução das drogas; na França, as populações de pacientes internados aumentaram por 20 anos após a introdução das drogas; e na Noruega, o número de pacientes internados não mudou com a introdução das drogas.

A Comissão Conjunta sobre Saúde Mental e Doença Mental, encomendada pelo Congresso dos EUA, escreveu em 1961 que “As drogas revolucionaram o tratamento de pacientes psicóticos em hospitais mentais americanos”, citando os enganosos estudos de Nova York e evitando mencionar o estudo mais bem elaborado de Michigan, mesmo que estivesse disponível. Foi politicamente conveniente enganar a população dessa maneira, pintando uma imagem falsa de um enorme progresso na psiquiatria.

As pílulas para a psicose não têm efeitos clinicamente relevantes na psicose

Um manual didático observou que a evidência mais forte em psicofarmacologia é para o efeito das pílulas para a psicose na fase aguda da esquizofrenia e na prevenção de recaídas, pois reduzem significativamente o risco de recaída.[16:560] Alegou-se que as pílulas melhoram o prognóstico e a sobrevivência na maioria dos pacientes,[16:222] e que é essencial saber quais processos biológicos no cérebro as pílulas influenciam para oferecer o tratamento médico mais ideal.[16:216]

Tudo isso está errado. Robert Whitaker escreveu uma vez para mim que requer uma ginástica mental extraordinária por parte dos psiquiatras para concluir que essas drogas, que causam obesidade, disfunção metabólica, diabetes, discinesia tardia, arritmias cardíacas letais, e assim por diante, protegem contra a morte. Elas não protegem; elas matam muitas pessoas,[7:307] o que explicarei abaixo.

É impossível oferecer um tratamento melhor ao conhecer mais sobre os processos biológicos cerebrais quando as drogas não têm efeitos clinicamente relevantes na psicose, exceto tranquilizar os pacientes, o que é um efeito não específico.

Praticamente todos os ensaios de drogas para a psicose controlados por placebo são seriamente enviesados pelos efeitos de abstinência abrupta causado no grupo do placebo, que ocorrem quando a droga para a psicose que o paciente já está tomando é retirado antes da randomização. Esses danos iatrogênicos geralmente são evitados no grupo tratado ativamente. A razão pela qual a Janssen pôde afirmar que seu sucesso de vendas, a risperidona, não causava mais danos extrapiramidais (musculares) do que o placebo foi a retirada abrupta da droga para a psicose anterior, que infligiu esses efeitos no grupo do placebo a tal ponto que um em cada seis pacientes os teve.[1:276] As empresas precisavam demonstrar que suas drogas reduziram os sintomas psicóticos e tornaram alguns dos pacientes do grupo do placebo psicóticos ao retirar suas pílulas para psicose abruptamente.[4:45,31,149]

Só encontrei dois ensaios nos quais nenhum dos pacientes havia recebido uma droga para a psicose anteriormente. Um era da China e parecia ser fraudulento.[150] Esse estudo comparou a olanzapina com o placebo em pacientes com esquizofrenia de primeiro episódio.[151] Os pacientes precisavam ter uma pontuação na Escala de Síndrome Positiva e Negativa (PANSS) de pelo menos 60 para serem incluídos. No entanto, a pontuação antes do tratamento era apenas cerca de 9, embora, por definição, deva ser pelo menos 30 (a pontuação mais baixa é 1 e há 30 itens). A pontuação aumentou para 71.3 no grupo da olanzapina e para 29.4 no grupo do placebo. Os autores relataram que a olanzapina foi eficaz, embora os pacientes no grupo do placebo tenham se saído muito melhor. Além disso, uma diferença de 42 na PANSS é implausivelmente grande. Nos testes controlados por placebo apresentados à Food and Drug Administration (FDA) dos EUA para drogas mais recentes para psicose, incluindo a olanzapina, a diferença foi de apenas 6.[152]

O único ensaio que não parece ser fraudulento e não foi prejudicado por efeitos de abstinência foi publicado em 2020, 70 anos após a descoberta da primeira droga para a psicose, a clorpromazina.[153] No estudo foi randomizado 90 pacientes com um primeiro episódio psicótico (FEP) com uma duração de psicose não tratada de menos de seis meses para risperidona, paliperidona ou placebo.

Os autores de uma revisão Cochrane de 2011 sobre pílulas para a psicose em episódios iniciais de esquizofrenia destacaram que as evidências disponíveis não mostram que as drogas sejam eficazes.[154] Esta é uma das poucas revisões Cochrane de drogas psiquiátricas que podem ser confiáveis. Além do problema de abstinência abrupta, as revisões Cochrane em esquizofrenia incluem ensaios em uma meta-análise onde metade dos dados está ausente.

Esta revisão Cochrane observou que o dobro de pacientes usando clorpromazina em comparação com o placebo foi readmitido dentro de três anos, um risco relativo de 2,3 (1,3 a 4,0). Também houve menos readmissões no grupo do placebo no acompanhamento de um ano no famoso ensaio financiado pelo Instituto Nacional de Saúde Mental dos EUA (NIMH), publicado em 1964, mas a diferença não foi quantificada e os dados originais parecem ter sido perdidos.[154] Esses dados contradizem completamente a narrativa psiquiátrica de que as pílulas para a psicose esvaziaram os asilos.

Em ensaios que deveriam ser duplo-cegos, mas que na prática não são, os pesquisadores podem relatar efeitos positivos que só existem em sua imaginação. Isso ocorreu no estudo NIMH de 1964, que ainda é amplamente citado como evidência de que as pílulas para a psicose são eficazes.

344 pacientes recém-admitidos com esquizofrenia foram randomizados para fenotiazinas como clorpromazina ou placebo.[155] Os pesquisadores relataram, sem fornecer nenhum dado numérico, que as drogas reduziram a apatia e tornaram os movimentos menos retardados, o oposto exato do que essas drogas fazem com as pessoas, o que os psiquiatras tinham admitido uma década antes.5:49,5:61

Os pesquisadores afirmaram um enorme benefício para a participação social (tamanho do efeito de 1,02) e que as drogas tornam os pacientes menos indiferentes ao ambiente (tamanho do efeito de 0,50). As drogas fazem o oposto. Os autores também afirmaram, sem dados, que 75% versus 23% apresentaram melhora acentuada ou moderada e sugeriram que as drogas não deveriam mais ser chamadas de tranquilizantes, mas de medicamentos antiesquizofrênicos.

Seu estudo contribuiu para moldar as crenças errôneas de que a esquizofrenia pode ser curada com medicamentos e que as pílulas para a psicose devem ser tomadas indefinidamente.[1]

A verdade é que as pílulas para a psicose não têm efeitos clinicamente relevantes na psicose. Apesar das distorções significativas — abstinência abrupta, falta de cegamento e financiamento da indústria que muitas vezes envolve a manipulação dos dados até que revelarem o que é desejado[6,7] — os resultados publicados têm sido muito fracos.[4] O efeito menos clinicamente relevante corresponde a cerca de 15 pontos na escala PANSS[156] comumente usada nos ensaios. No entanto, o que foi relatado nos ensaios controlados por placebo de drogas recentes submetidas à FDA foi apenas de 6 pontos, ou 3% da pontuação máxima de 210 nesta escala.[152]

Um manual didático alegou que os efeitos no sistema de dopamina podem restaurar a homeostase na transmissão de sinais cerebrais.[18:97] Isso pressupõe que existe um defeito no sistema de dopamina desde o início, o que nunca foi documentado e é improvável (consulte o Capítulo 4). Também nos dizem que a resposta ao tratamento está relacionada à atividade da dopamina.[16:220] Isso não é possível para drogas que não funcionam.

Havia histórias de casos em um dos manuais didáticos e todas eram positivas em relação as drogas usadas, mas a maioria delas era enganosa. Aqui estão alguns exemplos.

Um paciente melhorou em algumas semanas com uma pílula para a psicose e não ouviu mais vozes nem se sentiu perseguido.[18:87] As pílulas não têm tais efeitos.

Um paciente melhorou muito com uma pílula para a psicose e teve recaídas quando não quis continuar com a droga.[18:89] É altamente provável que os psiquiatras tenham confundido os sintomas de abstinência com recaída. E não há evidências confiáveis de que as pílulas possam prevenir recaídas (veja abaixo).

Um paciente recebeu uma pequena dose de uma pílula para a psicose e apoio, e melhorou.[18:89] Era mais provável que o apoio tenha ajudado o paciente, ou o paciente teria melhorado de qualquer maneira, sem tratamento ou apoio.

Uma dose aumentada de uma pílula para a psicose afetou o tempo até a recaída.[18:105] Essas pílulas não têm aumento no efeito com a dose aumentada.[157]

Seria uma experiência esclarecedora se os psiquiatras experimentassem uma pílula para a psicose em si mesmos. Dois médicos descreveram como uma única dose de haloperidol os deixou debilitados.[158] Eles experimentaram uma acentuada lentidão de pensamento e movimento, uma inquietação interna profunda, uma paralisia da vontade e uma falta de energia física e psíquica, sendo incapazes de ler ou trabalhar.

David Healy encontrou o mesmo em 20 funcionários de seu hospital que receberam droperidol.[4:116] Todos se sentiram ansiosos, inquietos, desinteressados e desmotivados para fazer qualquer coisa; um voluntário achou muito complicado até mesmo obter um sanduíche de uma máquina de lanches. Alguns se sentiram irritáveis e beligerantes e muitos foram incapazes de reconhecer o estado mental alterado em que estavam e de avaliar seu próprio comportamento. Peter Breggin chama isso de “encantamento medicamentoso”.[135,159]

Os efeitos subjetivos predominantes relatados por pacientes na Internet ao tomar drogas para a psicose são sedação, comprometimento cognitivo e achatamento ou indiferença emocional.[160] Também sabemos pelas linhas de ajuda telefônica que o que as pessoas medicadas mais sentem falta é de si mesmas.[1:179]

As pílulas para a psicose foram aclamadas como um grande avanço, mas isso ocorreu porque mantinham os pacientes dóceis e quietos, o que era muito popular entre a equipe nas enfermarias psiquiátricas.[148] Foi um grande conflito de interesses que a mesma equipe avaliasse se os pacientes tinham melhorado ou não, e esse conflito de interesses ainda nubla a prática e a pesquisa psiquiátrica até hoje.

Para ver a lista de todas as referências citadas, clique aqui.

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Mad in Brasil (Texto original do site Mad in America ) hospeda blogs de um grupo diversificado de escritores. Essas postagens são projetadas para servir como um fórum público para uma discussão – em termos gerais – da psiquiatria e seus tratamentos. As opiniões expressas são próprias dos escritores.


Leticia Paladino : Graduada em Psicologia pela UERJ, doutoranda em Saúde Pública pela ENSP/Fiocruz, mestre em Saúde Pública pela ENSP/Fiocruz e especialista em Saúde Mental e Atenção Psicossocial pela ENSP/Fiocruz.  Pesquisadora e Colaboradora do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial (LAPS/ENSP/Fiocruz).


 

Enloucast Podcast #1 – Entrevista com Paulo Amarante

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Olá, está começando o Enloucast, uma produção do CEEPodcast, do Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz, do LAPS, o Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial da Fiocruz e do site Mad in Brasil. Com Camila Motta e Jéssica Marques.
Camila Motta: Olá, ouvintes, eu sou Camilla Motta.
Jéssica Marques: Eu sou Jéssica Marques.
Camila Motta: E está começando Enloucast…
Jéssica Marques: O podcast fora da caixinha!
O nosso convidado é sanitarista, médico psiquiatra, um dos pioneiros na luta antimanicomial no Brasil, é presidente de honra da Associação Brasileira de Saúde Mental,a ABRASME, e pesquisador sênior do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial da Fiocruz, o LAPS, e do Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz, o CEE. É também um dos fundadores do site do Mad in Brasil e criador do Seminário Internacional “A Epidemia das Drogas Psiquiátricas”, que já vai para a sua 7º edição. Com vocês, Paulo Amarante.
Camila Motta: Seja bem -vindo, Paulo. Estamos muito contentes com a sua presença aqui. E eu queria começar perguntando um pouco sobre o Mad in Brasil. Para quem não sabe, eu e Jéssica trabalhamos junto com o Paulo no site www.madibrasil.org em que a gente divulga artigos científicos internacionais e nacionais sobre saúde mental, desmedicalização. E aí, eu queria perguntar ao Paulo, para ele contar um pouquinho para o pessoal, como é a história do Mad in Brasil, como surgiu essa ideia, juntamente com o Fernando Freitas, que nos deixou recentemente. com você Paulo.
Paulo Amarante: Bem, quero primeiro cumprimentar a todo mundo que está nos assistindo, a vocês que estão aqui comigo participando. E dizer assim, é uma longa história. Primeiro esse tema da medicalização, psiquiatrização, medicamentalização é um tema que eu venho abordando já há muitos anos. Em 2014, 2015 mais ou menos, a gente teve acesso a um trabalho da doutora Marcia Angel, professora da Universidade John Hoppings, que foi uma grande editora de revistas científicas, uma das mais importantes revistas científicas de medicina, e ela passou, depois de um certo tempo, a perceber que os artigos eram assinados por professores, mas que não eram produzidos pelos professores. É que existia uma máquina de produção de artigos científicos fraudados, de alguma forma manipulando os resultados para favorecer a uso de medicamentos. Ela escreveu um livro fantástico chamado A Verdade sobre os Laboratórios Farmacêuticos, como somos enganados por eles, o que podemos fazer a respeito. Esse é o título do livro. E logo depois, saiu um artigo dela na revista Piauí sobre o crescimento assombroso dos diagnósticos de depressão, ela mostrava como esses diagnósticos aumentavam, não porque aumentava a depressão, mas aumentava a patologização, a transformação da experiência humana de dor, de sofrimento, de tristeza, em diagnóstico psiquiátrico. E ela fala de um autor importante, que ela se baseia muito, que é o Robert Whitaker, que tinha escrito dois livros na época, já. O Mad in America, loucura, loucos na América, e o outro, Anatomia de uma Epidemia. São dois livros premiados desse jornalista importante, ele é um jornalista, mas que trabalha com jornalismo científico. Os dois receberam prêmios muito importantes e ele recebeu outras indicações, outros prêmios. Nós ficamos curiosos com esse livro. Eu mostrei isso para o Fernando Freitas, começamos a conversar sobre esse tema, mas eu estava, na época, com uma orientanda desenvolvendo um doutorado sobre patologização e medicalização da infância, Mariana Rangel, que fez uma tese muito importante, uma pesquisa de campo impactante, o quanto as crianças de dois anos estavam sendo diagnosticadas com Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) e já estavam sendo medicadas. A medicação considerada off-label, fora da previsão dos estudos clínicos. E nós começamos a discutir o artigo da Marcia Angel, o livro, etc. Aí, fomos atrás desse artigo, desse livro do Robert, que hoje nós chamamos de Bob, ficou um amigo nosso. Acabou que nós decidimos traduzir o livro dele, Anatomia de uma Epidemia, uma referência internacional, publicado em várias línguas. Esse livro é publicado pela editora Fiocruz. Eu e Fernando fizemos, então, acompanhamento da tradução, revisão técnica e o prefácio. E o Bob ficou nosso amigo, uma pessoa próxima. Nós começamos a conversar com ele, descobrimos que ele tinha esse site, Mad in America, e que ele estava começando a estimular a criação dos Mad  in em outros países: Espanha, França, Inglaterra, Finlândia e tal. Assim, abrimos o Mad in Brasil, que veio a ser inclusive um dos primeiros da comunidade Mad. Nós criamos o site em 2016. Tivemos aqui uma cooperação dentro da Fiocruz, a própria Fiocruz e o Centro de Estudos Estratégicos (CEE) da Fiocruz para dar início a esse projeto.
Camila Motta: E já vai fazer esse ano sete anos do site e eu queria que você falasse um pouquinho também da importância, qual a importância você avalia de ter criado esse site, e também, as consequências dele para o campo da saúde mental.
Paulo Amarante: Sem dúvida, nesses sete anos, o Mad in Brasil conseguiu uma visibilidade, um reconhecimento, uma legitimidade importante. Por quê? Porque nada um que critica esse peso da Big Pharma, a importância, o financiamento, a indústria farmacêutica, financia pesquisas, financia congressos, financia publicações, influencia a 
produção, a mídia, a grande mídia. Ela influencia a grande mídia na divulgação de medicamentos, de diagnósticos psiquiátricos. Então, a indústria farmacêutica faz um trabalho não só dentro dos instrumentos médico-profissionais-técnicos, um mas fora também fora também. Ela consegue plantar notícias na televisão, nos jornais como um todo e tudo mais. Nos congressos e nas revistas científicas, há um forte financiamento da União das Indústrias Farmacêuticas. Você não consegue publicar artigos que mostram outras possibilidades de diagnóstico ou de tratamento dos problemas mentais e psíquicos, muito menos quando são críticos ao medicamento.
Hoje não falamos só de indústria farmacêutica, mas do complexo médico industrial financeiro  complexo médico industrial que está por trás de toda essa rede. É o mesmo dinheiro que está na indústria farmacêutica, está na indústria dos equipamentos de  que diagnóstico, está na indústria de prestação de serviços, está nas farmácias, na venda, no comércio e tudo mais. É muito difícil. O Mad é um espaço reconhecido pela comunidade acadêmica crítica que busca uma informação independente e reconhecida pelos protagonistas, movimentos sociais, que querem uma forma de abordagem, de reflexão mais independente, mais crítica. Acho que o Mad in Brasil tem esse lugar, construiu esse lugar. Não é à toa que é o segundo site mais  no mundo, da rede Mad.  perde para a norte- americana, do próprio Robert, ele é dedicado exclusivamente a isso. Nós aqui traduzimos muitas coisas dele, mas também de outros Mads pelo mundo afora, como também traduz as nossas produções brasileiras, que tem outras formas de abordagem, outras visões sobre o processo de saúde e enfermidade, sobre abordagem, outras visões sobre o tratamento e sobre os medicamentos. Então, acho que temos um lugar muito importante. E esse esse momento da criação do podcast, o Enloucast. Eu acho que é mais um passo mais um momento importante para a maior divulgação do Mad in Brasil. 
Camila Motta: E a gente tem cerca de 21 mil acessos mensais em nosso site. Então, eu acho que isso mostra também a quantidade de pessoas interessadas e o trabalho, a projeção do trabalho que a gente vem fazendo.
Jéssica Marques: Nós sabemos também da importância da divulgação do Mad in Brasil, do acompanhamento. Graças a Deus, estamos também conseguindo alcançar um público bastante elevado. E também, recentemente, teve o lançamento do e-book, do seminário. Sabemos da importância do seminário das drogas psiquiátricas e que ele vai chegar na sua sétima edição. Qual é esse nível de importância, Paulo, do seminário? O que você espera que vai ser esse seminário que está chegando, a sétima edição? E a importância da divulgação também do e-book, desse conhecimento que está sendo passado junto também do Podcast Enloucast e do Mad in Brasil?
Link para escutar o episódio completo (LINK)
Paulo Amarante: Quando nós estávamos nesse processo de produção do livro  Anatomia de uma Epidemia, nós começamos a pensar na ideia de divulgar melhor o  o livro, um livro crítico, com informações muito importantes. Ele fala do assombroso aumento dos testes vitais, as pílulas mágicas. Então, é um livro muito importante. Ele desconstrói alguns mitos criados pela própria psiquiatria. Eu sempre acho isso muito importante de falar. Um dos mitos que, para mim, ele não trata especificamente, é a ideia, que eu lembro muito do Franco Basaglia falando disso, de que a reforma psiquiátrica só foi possível porque os neurolépticos, os remédios psiquiátricos, os medicamentos psiquiátricos, foram introduzidos e aí tornavam as pessoas mais sedadas, mais dóceis à abordagem.  existe CAPS, Centros de Atenção Psicossocial, porque existe o antipsicótico. Isso é um mito. Primeiro porque, historicamente, processos riquíssimos de transformação psiquiátrica aconteceram muito antes da descoberta dos medicamentos psiquiátricos, a experiência do Open Door, na Inglaterrra, do Connelly, as comunidades terapêuticas, as comunidades terapêuticas aquelas originárias, não essas religiosas de hoje, que eram um processo de transformação muito importante em que as pessoas eram envolvidas no trabalho de gestão da unidade das suas próprias vidas e elas melhoravam. Elas tinham melhoras porque não era a doença só que estava limitando a sua relação com as pessoas, a sua forma de estar no mundo. Era a condição já também de isolamento, de segregação, de não escuta e tudo mais. Então, as pessoas começavam a participar, a aparecer enquanto sujeitos, não só enquanto pacientes. E essas experiências foram transformando a prática psiquiátrica, você vê, as comunidades terapêuticas, a psicoterapia institucional francesa, com o François Tosquelles, psiquiatria de setor na França, com o Bonafé, todas as experiêcias são do final dos anos 40 e atendidos nos anos 50. A copromazina, primeiro, o antipsicótico, foi descoberto nos anos 50, mas até ele ser sintetizado, vendido em farmácia. Lembrar que na época se encontrava uma farmácia em cada cidade quase, agora se encontra dez farmácias em cada quarteirão, então em cada quadra. Na época, não pode dizer que aí a psicofarmacologia alcançou a população. Eram raras as pessoas que tinham acesso e conseguiam comprar como medicamentos na época de custo alto e também chegar na rede pública. Quando chegaram os medicamentos já tinha tido muita transformação. Aonde não teve não foi pela presença ou falta de medicamento, mas pelas práticas de exclusão, de violência, de falta de outras iniciativas sociais, culturais, de grupo, de coletividade. Outro mito que esse livro desconstrói é de que… Os transtornos mentais são orgânicos. Isso é um mito. A psiquiatria não comprovou que existe um fundamento orgânico nos transtornos mentais. O Pinel já falava que não existia base material, substrato orgânico da alienação. Depois o tema de alienação foi abandonado exatamente porque ele não falava de doença, Ele não falava de enfermidade e acabou que se passou a usar doença mental e agora se usa transtorno que não tem significado algum. O estudo é uma alteração de algo em relação a alguma coisa. Os ingleses, americanos usam desordem, queé o estudo da ordem, exatamente, mas qual é a ordem? Então o mito é que teria uma  base orgânica. Antes não se viu anatômica, metabólica, agora se tira fisiológica no nível dos neurotransmissores etc. A teoria mais defendida pela psiquiatria conservadora, ortodo-xa, clássica, convencional, que usa essa ideia do modelo biomédico, era do transtorno da depressão. No ano passado, a Joanna Moncrieff, que é uma das nossas colaboradoras, umadas nossas professoras, participantes da rede médica, pesquisadora inglesa, o maior 
reconhecimento científico, elaborou um relatório demonstrando que não existe  fundamento científico na ideia da fundamentação do distúrbio neurotransmissor da 
depressão, no caso da serotonina, da recaptação da serotonina. Isso… Ela mostra com muitos detalhes como essa teoria é furada. Então, esse é um outro mito. Outro mito é que os psicóticos antidepressivos curam os transtornos. Então, o Robert desmonta isso dizendo, se curasse, diminuiria o número de psicóticos e depressivos e não aumentava. Quando as pessoas tomam antibiótico, elas diminuem as infecções. anti-inflamatório diminui a inflamação. O antipsicótico a pessoa toma a vida inteira e o antidepressivo também. Então não diminui, tem aumentado assustadoramente o uso de 
consumidores, a prevalência de uso, ou seja, a quantidade de pessoas que usam não 
diminui, elas aumentam, significa que a pessoa começa a tomar e não para. Então é o mito
E o último mito é a ideia de que o aumento de diagnósticos psiquiátricos, do DSM-II ou I, que eram 100 diagnósticos, ao DSM- 5, que são 500, que essas 400 novos transtornos mentais dizem respeito a uma maior capacidade da psiquiatria de identificar novos 
transtornos. E esse livro do Bob demonstra que não. É a capacidade de ampliar o conceito, abarcando mais pessoas nas suas experiências da vida cotidiana. Aquilo que era sofrimento sofrimento, luto por perda de uma pessoa, uma situação de mal- estar mental, passa a ser explicado pela psiquiatria, passa a ser incorporado, e na medida que é incorporado, se 
torna transtorno.
Esse livro foi muito importante. Nós decidimos,  dar o máximo de visibilidade a esse livro,
trouxemos o Robert ao Brasil. A primeira vez que ele foi convidado foi em 2013, há
exatamente 10 anos. Divulgamos e tudo, mas na hora de embarcar, ele não conseguiu  embarcar nos Estados Unidos. Aí, quando fizemos o quarto Congresso Brasileiro de Saúde Mental em Manaus, nós trouxemos o Bob. Foi uma coisa marcante, porque ele nunca tinha vindo ao Brasil, muito menos à Amazônia. Ele não conhecia a Amazônia, ficou 
impressionado com a Amazônia, o contato com as populações indígenas. O nosso trabalho no Brasil, que ele não conhecia, que ele sempre tinha a experiência de trabalhar em congresso de psiquiatria, falando de doença e tal, e nós do Brasil, falando de saúde, de do Brasil, falando de saúde, produção de vida, de arte e cultura, de diversidade, de criar uma outra relação com essa experiência. Tivemos um dia inteiro… nesse congresso só de saúde das populações indígenas, tentando o máximo possível não apropriar da experiência da vida indígena pela narrativa, pelo vocabulário médico. Ele ficou muito impressionado, daí ele passou a vir ao Brasil. Então nós pensamos em organizar um seminário para dar 
maior debate, visibilidade a esse tema das drogas psiquiátricas. E pensamos num  seminário chamado “A Epidemia das Drogas Psiquiátricas” usando esse termo 
propositalmente errado, epidemia diz respeito a uma doença, a um problema, contágio,
mas usando a metáfora da epidemia como conhecimento, diagnósticos etc. Todos os 
médicos diagnosticando, as pessoas também se autodiagnosticando, diagnosticando aos 
vizinhos, aos parentes, todo mundo com essa…  decidimos fazer um seminário chamado Seminário Internacional Epidemia das Drogas e Psiquiatra. O seminário foi um sucesso.
Tivemos uma quantidade enorme de inscrições, tivemos uma transmissão, uma das primeiras feitas aqui na Fiocruz, dessa nova… essa nova conjuntura midiática, transmissão ao vivo pelo YouTube, imagina,  pouco tempo atrás isso não existia quase. Até então, você tinha uma outra coisa pelo Skype, mas a transmissão ao vivo…o pessoal do Vídeo
Saúde da Fiocruz ficou impactado, olha, não sei quantas milhares de pessoas passaram, assistiram, perguntavam, a gente era novo… eu ficava assistindo com um
computadorzinho, vendo no YouTube as questões, passava para a mesa. Hoje isso é banal. O sucesso foi tão grande que nós resolvemos fazer um segundo seminário. O primeiro não tem numeração. Depois veio o segundo, o terceiro, o quarto…. Nesse seminário, nós fomos
convidando pessoas do Brasil, não vou falar dos nomes, e da América Latina. Também 
aproximando muitos pesquisadores da Argentina, do Uruguai e outros países da América 
Latina. Mas desses grandes nomes internacionais que tinham sido convidados, além do 
Robert, nós tínhamos o Jaakko Seikkula,o Irving  Kirsch, Allen Frances, Peter Groot, Peter Gotzsche, a Joanna Moncrieff, o John Reed, o Andrew Scull, muitas pessoas…
Então, tem sido um seminário que entrou na agenda política dessa discussão. Esse ano, a 
previsão é que seja 8, 9, 10, ou  9 e 10. Vamos voltar a fazer o evento presencial como foi do primeiro ao quarto. O quinto e o sexto, pela pandemia, nós fizemos só via remota,
online. Nós queríamos refazer agora o seminário presencial.
Então, o e-book, que é a transcrição na íntegra do último seminário, foi um e- book muito  importante. Nós temos já alguns números, algumas edições do seminário, fazendo e-book, transcrevendo, distribuindo em PDF, vai estar disponível para todo mundo. Além 
disso, todas as mesas estão gravadas, estão disponíveis no site do Vídeo Saúde.
Lembrando para as pessoas, que além da língua original, você pode ter acesso a gravação
que além de ter a língua original, você pode ter acesso a língua portuguesa,  a língua inglesa e a espanhola. Nós estamos tendo uma audiência importante nesse seminário
de pessoas da América Latina, que eu trabalho muito pela América Latina, sempre 
divulgando esse debate, também. 
É muito importante que as pessoas baixem o e- book, leiam, estudem, utilizem em debates, em aulas e cursos, e divulguem o máximo possível.

Jéssica Marques: É, sabemos também da importância do projeto que está iniciando, o Podcast Enloucast. Queria que você desse a sua breve opinião referente ao que você espera alcançar, porque nó sabemos que a informação é muito importante ser dada. O intuito do podcast é ele realmente sair da caixinha, mostrar a tantas pessoas que já foram usuárias do CAPS, da RAPES, a medicalização, a patologização, e nós sabemos da importância da divulgação correta da informação passada de uma forma coerente. E eu queria que você falasse um pouquinho sobre o projeto do Podcast.

Paulo Amarante: Eu acho que o site é uma possibilidade de informação alternativa aos meios de comunicação tradicionais, atualmente científicos, que alcançam poucas pessoas, mesmo profissionais, mesmo pessoas de formação acadêmica. Então, a linguagem do site é mais acessível, tem artigos direcionados a um público mais amplo. Não é á toa que o Mad hoje tem uma abrangência com o Mad Canadá, Dinamarca, Finlândia, Espanha, Irlanda, México, Itália, Holanda, Noruega, Suíça, Reino Unido. Estamos agora no processo em cooperação aqui da Fiocruz com o Centro de Estudos Sociais de Coimbra que é o Mad in Portugal, que pretende no futuro ser um Mad em português, por exemplo, em países africanos e outros países da comunidade de língua portuguesa.

O podcast, então, ele ainda é um passo ainda mais avançado nesse sentido. Uma coisa que você possa ouvir, possa ouvir do carro, possa ouvir em casa, para ampliar ainda mais o debate, levando as pessoas que não têm a tradição acadêmica de ler ou não podem por algum motivo, isso vai ampliar inclusive muito para formadores de opinião pública, lideranças 

comunitárias, lideranças de movimentos sociais etc.

Camila Motta: Sim. E o Paulo falou, né, Paulo, que os nossos seminários estão disponíveis no YouTube pelo canal do Vídeo Saúde e o nosso e-book, tanto do ano passado, como desse ano, 
está no link do nosso Instagram, que é @madinbrasil.
Jéssica Marques:

E está disponível também no @livros.saúdemental. Quem quiser é baixar, que está disponível.

Camila Motta:

É gratuito, então aproveitem, porque é um material muito, muito rico, muito importante. Isso aí. E também, eu queria lembrar que esse ano a gente, como o Paulo também já falou, a gente vai ter o nosso sétimo seminário. A gente está aí pensando nos convidados, mas todo ano temos nossos convidados internacionais, nacionais, então fiquem atentos, porque também é um evento gratuito. Então, quando abrir, aproveitem para se inscrever, é rápido, muitas inscrições. Enfim, e para terminar, Paulo, infelizmente, curtinho o nosso podcast. Sei que você é uma pessoa com muitas reuniões, muito compromissada. Muito requisitada. Então, a gente não vai tomar muito o seu tempo. Mas eu queria que você falasse um pouquinho sobre a importância do Fernando Freitas para o Mad, para esse projeto. Ele que foi o fundador junto com você, e a gente esse ano perdeu, infelizmente, tivemos essa perda, uma pessoa muito querida, e foi um momento triste para todos nós.

Paulo Amarante:

Eu queria lembrar que, primeiro registrar aqui a perda do Fernando, a importância do trabalho dele, ele de fato pegou com garra essa ideia, o site do Mad, pegou com garra essa discussão da medicação. Escrevemos juntos livros, escrevemos artigos, fizemos seminários, fizemos uma atividade importante. Em pouco tempo, o trabalho do Fernando, não só do Mad, mas especificamente do Fernando, ficou conhecido internacionalmente. Ele  tinha essa dedicação quase que exclusiva ao tema, então ele participou de eventos aqui no Brasil, como a ABRASCO e ABRASME, seminários, cursos, mas também internacionalmente com esse tema, o Instituto Internacional para a Retirada das Drogas Psiquiátricas foi um instituto criado por muitos desses pesquisadores que eu citei, que nós trouxemos aqui, que nós trabalhamos. Eu e o Fernando fomos os únicos latino americanos participantes desse instituto e ele teve uma dedicação também muito importante, muito potente na organização desse instituto. Então, por ocasião do falecimento dele, nós recebemos manifestações do mundo inteiro de pessoas assim, pessoas que foram nossas referências para esse debate internacional, todas escrevendo com muito carinho, comentando a perda do Fernando. Inclusive, eu mesmo fiz um artigo com o Bob, que acabou sendo publicado  na Rádis da Fiocruz, na última página, em homenagem ao Fernando. E esse ano nós queremos, no sétimo seminário, fazer em homenagem a ele, dedicado como uma homenagem  e esse próprio e-book também vem com a dedicação ao Fernando Freitas. Então, o  Fernando, de fato, deixou um trabalho, um legado nessa área. Acertei muito e fiquei muito feliz em acertar, quando o convidei para esse trabalho, a forma, a seriedade, a dedicação com que ele desenvolveu esse tema. Então, o Mad in Brasil dedica a ele uma homenagem importante. Fernando, agradecimento.

Camila Motta:

Sim, cabe a gente agora dar continuidade também do trabalho que a gente já vinha fazendo. Então, acho que é isso, né, Jessica?

Jéssica Marques:

Acabamos por hoje.

Camila Motta:

Eu quero agradecer ao Paulo também por estar aqui conosco. Estamos muito contentes. É o nosso primeiro episódio. Estamos um pouco nervosas, mas…

Jéssica Marques:

Mas estamos começando bem, né? Dando um ponta pé com o Paulo Amarante.

Camila Motta:

Exatamente. Começamos bem.

Jéssica Marques:

Começamos bem. Então, assim, obrigada, Paulo, por disponibilizar um tempinho, falar com o podcast. Obrigado. Obrigada a toda a galera do apoio. E nos vemos no próximo podcast, no próximo episódio.

Camila Motta:

Nos vemos no próximo Enloucast.

Jéssica Marques:

Saudações antimanicomiais.

7º Seminário Internacional “A Epidemia das Drogas Psiquiátricas”

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Nessa semana, acontece o 7º Seminário Internacional A Epidemia das Drogas Psiquiátricas: Estratégias e Iniciativas Contemporâneas de Desmedicalização. Depois de três anos de pandemia, voltamos a realizar nosso evento de maneira presencial, no auditório da ENSP/Fiocruz.

Este ano contamos com convidados como o jornalista Robert Whitaker, o neurocientista Sidarta Ribeiro, a artista e militante antimanicomial Rogéria Barbosa, a presidente do CRP/RJ Céu Cavalcanti, entre outros.

As inscrições para o evento presencial já se encerraram, mas é possível acompanhar o seminário ao vivo através do YouTube do Canal Vídeo Saúde. Será disponibilizada tradução simultânea em português, inglês e espanhol, além de libras.

Data do Evento: 09 e 10 de novembro, de 09h às 16h30

  • Programação do Evento:

 

  • Links para assistir pelo YouTube:

dia 09/11 (manhã):

 

Dia 09/11 (Tarde)

Dia 10/11 (manhã):

Dia 10/11 (tarde):

Mad in the World (Mad no Mundo)

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Hoje teve início a reunião Mad in the World (Mad no Mundo), no Hotel Phoenix em Copenhague, Dinamarca.

Os representantes dos diferentes países onde existe o site do Mad apresentaram suas linhas editorias, desafios e perspectivas.
Foi um momento de muita troca, partilha e criação de rede.

Amanhã continuamos com o encontro.

Na foto estão Robert Whitaker, Camila Motta, Leandra Brasil e Paulo Amarante

Manual de Psiquiatria Crítica, Capítulo 6: Os Ensaios Clínicos de Drogas Psiquiátricas não são Confiáveis

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Magnifying glass with pills, analysis of drugs concept. 3D rendering isolated on white background

Nota do editor: Nos próximos meses, a Mad in Brasil publicará uma versão serializada do livro de Peter Gøtzsche, Manual de Psiquiatria Crítica. Neste blog, ele discute como os manuais didáticos retratam os dados de imagens cerebrais para diagnósticos psiquiátricos e as falhas desse tipo de pesquisa. A cada quinze dias, uma nova seção do livro será publicada e todos os capítulos estão arquivados aqui

 

“Provavelmente não há outra área da medicina em que a literatura acadêmica esteja tão em desacordo com os dados brutos.”

— David Healy, professor de psiquiatria

“Passei a maior parte da minha vida profissional avaliando a qualidade da pesquisa clínica e acredito que ela é especialmente fraca na psiquiatria. Os estudos financiados pela indústria são seletivamente publicados, tendem a ser de curto prazo, são projetados para favorecer a droga e mostram benefícios tão pequenos que dificilmente superam os danos a longo prazo.”

— Marcia Angell, ex-editora do New England Journal of Medicine

 

Antes de discutirmos o efeito das drogas psiquiátricas, precisamos perceber que a maioria dos ensaios controlados por placebo e das comparações diretas entre duas drogas ativas são fortemente tendenciosos. Como exemplo, significativamente mais pacientes apresentaram melhora com a fluoxetina quando a fluoxetina era a droga de interesse do que nos ensaios em que a fluoxetina era a droga comparadora.

Há oito principais razões pelas quais os ensaios controlados por placebo de drogas psiquiátricas são falhos e a maioria deles se aplica também aos ensaios clínicos de comparação direta entre drogas.

 

Lupa com comprimidos, análise do conceito de drogas. Renderização 3D isolada em fundo branco

 

Até agora, a maioria dos ensaios clínicos tem a duração de apenas algumas semanas, mesmo que a maioria dos pacientes seja tratada por muitos anos. Isso não é medicina baseada em evidências, e os efeitos da droga podem mudar ao longo do tempo devido ao desenvolvimento de tolerância.

Eventos que acontecem após o término do ensaio são ignorados. O principal efeito disso é que os danos são subestimados (como discutirei nos Capítulos 7 e 8).

Até agora, a maioria dos ensaios é conduzida pela indústria farmacêutica, que muitas vezes manipula o desenho do estudo, a análise e a divulgação dos resultados.

Cerca de metade das mortes e dos suicídios ocorridos nos ensaios de drogas psiquiátricas foram omitidos dos relatórios publicados.

As outras quatro razões são o uso de escalas de avaliação, ineficácia do cegamento, efeitos da abstinência no grupo placebo e análises de dados manipulados e relatórios seletivos.

Escalas de avaliação

Escalas de avaliação são usadas para medir a redução dos sintomas. Elas não indicam se os pacientes foram curados ou se podem levar uma vida razoavelmente normal.

As pontuações nessas escalas podem melhorar com facilidade, mesmo que os pacientes não tenham sido de fato ajudados, por exemplo, quando alguém é sedado por um tranquilizante (uma droga para psicose) e expressa ideias anormais com menos frequência.

O efeito das drogas para depressão é medido em escalas de avaliação, como a Escala de Avaliação de Depressão de Hamilton, que contém itens que não são específicos para depressão, incluindo dificuldades para dormir, ansiedade, agitação e queixas somáticas. Esses sintomas provavelmente respondem aos efeitos sedativos não específicos que ocorrem não apenas com muitos medicamentos para depressão, mas também com outras substâncias, como álcool, opióides, medicamentos para psicose e benzodiazepínicos, mas não prescrevemos álcool, opióides e benzodiazepínicos para pessoas com depressão nem os chamamos de medicamentos para depressão.

Usando a escala de Hamilton, até estimulantes como cocaína, ecstasy, anfetaminas e outros medicamentos para TDAH poderiam ser considerados medicamentos para depressão. Quase tudo poderia. Na verdade, muitos medicamentos que não são considerados medicamentos para depressão têm efeitos comparáveis a eles, como benzodiazepínicos, opiáceos, buspirona, estimulantes, reserpina e outros medicamentos para psicose.

Ineficácia do cegamento

Devido aos efeitos adversos evidentes das drogas psiquiátricas, os ensaios controlados por placebo rotulados como duplo-cegos não são verdadeiramente duplo-cegos. É preciso muito pouco desvelamento antes que as pequenas diferenças registradas possam ser explicadas pelo viés na avaliação de resultado em uma escala de classificação subjetiva.[7:51]

O cegamento é comprometido para muitos pacientes nestes ensaios, em alguns casos para todos, como em um estudo de alprazolam versus placebo.[127] Pesquisadores analisaram os problemas de cegamento e concluíram seu artigo dizendo que, “Chegou o momento de abandonar a ilusão de que a maioria das pesquisas anteriores sobre a eficácia de medicamentos psicotrópicos tenha sido adequadamente protegida contra viés.”[127] Isso foi em 1993, mas psiquiatras e a indústria farmacêutica ignoram essa falha fundamental em suas pesquisas porque é conveniente para eles fingir que o problema não existe e que o que eles mensuram são efeitos reais e benéficos das drogas.

O desvelamento é uma das principais razões pelas quais é muito mais fácil inventar novas doenças do que inventar novos medicamentos.[128,129] Quando meu grupo de pesquisa analisou os tipos de diagnósticos investigados em ensaios de drogas para depressão controlados por placebo, contamos 214 diagnósticos únicos, além de depressão e ansiedade.[130] Os ensaios eram impulsionados por interesses comerciais, focando em doenças prevalentes e problemas cotidianos a ponto de ninguém poder viver uma vida plena sem experimentar vários dos problemas para os quais essas drogas foram testadas. Concluímos que os medicamentos para depressão são a versão moderna da pílula soma de Aldous Huxley destinada a manter todos felizes no “Admirável Mundo Novo”.

Em 2001, o parceiro americano da Lundbeck, a Forest, realizou um ensaio com citalopram para tratar o transtorno de compra compulsiva.[131] Outra droga da Lundbeck, o escitalopram, reduziu a incidência diária de ondas de calor em mulheres na menopausa de 10 para 9.132 Isso parece até uma piada, mas o estudo foi publicado em um jornal de destaque nos EUA, o JAMA.

Ajudadas pela falta de cegamento eficaz, as empresas farmacêuticas conseguem demonstrar que seus medicamentos “funcionam” para praticamente tudo. Basta pensar na variedade de medicamentos que afirmam funcionar para depressão e esquizofrenia.

Voluntários saudáveis que fingem estar doentes também podem ajudar. Alguns pacientes participam de ensaios clínicos de depressão sem estar de fato deprimidos, apenas para ganhar dinheiro, como uma pessoa saudável disse a um médico durante uma viagem de trem:[133] “Não estou deprimido… os ensaios são anunciados… Para um ensaio de 20 dias que paga £2000… é bom ver seus amigos habituais.” Quando os voluntários falsos percebem que estão no grupo do medicamento ativo devido aos seus efeitos adversos, eles podem simular alguma melhora.

Efeitos da abstinência no grupo placebo

Os pacientes recrutados para ensaios controlados por placebo quase sempre já estão tomando uma droga semelhante ao que está sendo testada. Isso ocorre porque esses pacientes são encontrados com mais facilidade do que pacientes que não estão em tratamento com medicamentos.

Após um curto período de interrupção do uso de medicamentos tomados previamente ao ensaio (momento conhecido pelo termo “wash-out”), os pacientes são randomizados para receber a nova droga ou o placebo. É provável que os participantes sejam aqueles que não reagiram de forma muito negativa ao receber um medicamento semelhante anteriormente,[24] o que significa que os ensaios irão subestimar os danos do medicamento testado.

Os pacientes também podem reagir de forma mais negativa ao placebo, por exemplo, porque sentem falta da sedação ou euforia que esses medicamentos podem causar (veja, por exemplo, o folheto informativo para olanzapina [134]).

Alguns participantes desenvolvem sintomas de abstinência que são interpretados erroneamente como uma recaída da doença, porque os sintomas podem ser os mesmos que definem uma recaída. A introdução de períodos de interrupção mais longos não resolve esse problema de retirada abrupta. Se as pessoas já foram permanentemente prejudicadas à nível cerebral antes de entrarem nos ensaios, os períodos de interrupção não são capazes de contrabalanceá-los, e os sintomas que foram mascarados pelo tratamento em curso (por exemplo, discinesia tardia) podem reaparecer. Mesmo que esse não seja o caso, os pacientes podem sofrer com sintomas de abstinência por meses ou anos.[11,135,136]

Análises de dados manipuladas e relatórios seletivos

Quando Joshua Carp criticou os estudos de imagem cerebral (ver Capítulo 3) observando que, quando a flexibilidade analítica é alta, os investigadores podem optar por usar métodos que produzem resultados favoráveis e descartar métodos que produzem resultados nulos,[73] ele citou um estudo realizado pelo meu grupo de pesquisa.

Comparamos os protocolos de ensaios randomizados que obtivemos dos comitês de revisão ética com as publicações dos ensaios.[137] Dois terços dos ensaios tiveram pelo menos um desfecho primário que foi alterado, introduzido ou omitido, enquanto 86% dos pesquisadores negaram a existência de desfechos não relatados (é claro que eles não sabiam que tínhamos acesso aos seus protocolos quando perguntamos). Essas manipulações graves não foram descritas em nenhuma das 51 publicações.

Esta foi a primeira vez que esse fenômeno foi mostrado como comum, em uma coorte consecutiva de ensaios. Outras tentativas de obter acesso aos protocolos dos ensaios tinham falhado, mas consegui obter acesso na Dinamarca garantindo que não descreveríamos os ensaios individuais em nossa publicação.

O que descobrimos é conhecido como o truque do atirador texano. Você dispara uma arma em direção a um alvo, mas erra. Em seguida, você apaga o alvo e desenha um novo ao redor do buraco de bala e apresenta isso ao público. Você acerta o centro do alvo cometendo fraude.

Com base em nossos dados, conduzimos outro estudo que também é relevante conhecer ao avaliar a confiabilidade dos relatórios de ensaios publicados.[138] Dos 44 ensaios iniciados pela indústria, o financiador teve acesso aos dados acumulados durante 16 ensaios por meio de análises intermediárias e participação em comitês de monitoramento de dados e segurança, mas tal acesso foi divulgado em apenas um artigo correspondente sobre o ensaio. Outros 16 protocolos observaram que o financiador tinha o direito de interromper o ensaio a qualquer momento, por qualquer motivo, o que não foi mencionado em nenhuma das publicações. Portanto, o financiador teve controle potencial sobre um ensaio em andamento em 32 (73%) desses estudos.

Quando o financiador pode ter acesso repetido aos dados à medida que se acumulam, há o risco de o ensaio ser interrompido quando for favorável. Os ensaios relatados como interrompidos precocemente por benefício exageraram o efeito em média em 39% em comparação com os ensaios da mesma intervenção que não foram interrompidos precocemente.[139]

Descobrimos também que restrições aos direitos de publicação foram descritas em metade dos protocolos, observando que o financiador era o proprietário dos dados, precisava aprovar o manuscrito, ou ambos. Nenhuma das restrições foi mencionada em nenhuma das publicações.

A autoria fantasma também é uma questão importante. É a omissão de nomear, como autor, um indivíduo que fez uma contribuição substancial a um artigo. Descobrimos que nenhum dos 44 protocolos afirmava que os investigadores clínicos deveriam estar envolvidos na análise de dados.[140] Constatou-se evidências de autoria fantasma para 33 ensaios (75%), o que aumentou para 91% quando incluímos casos em que uma pessoa qualificada para autoria foi reconhecida em vez de aparecer como autor. Em 31 ensaios, os autores fantasmas que identificamos eram estatísticos. Provavelmente, deixamos passar alguns autores fantasmas, pois tínhamos informações muito limitadas para identificar a possível omissão de outras pessoas que teriam se qualificado como autores.

Um estudo de David Healy a respeito de artigos sobre sertralina (Zoloft, Pfizer) mostrou que, em um período de três anos, 55 artigos foram escritos por uma agência de redação médica, enquanto apenas 41 artigos foram escritos por outras pessoas.[141] Apenas dois dos 55 artigos reconheceram o apoio à redação de pessoas que não foram listadas como autores, e todos os resultados foram favoráveis para a Pfizer. Healy descreveu o quão diretas algumas empresas são em relação aos médicos: “Nosso redator fantasma produziu um primeiro rascunho com base em seu trabalho publicado. Eu o anexo aqui.” Quando Healy não estava satisfeito com a revisão brilhante de um medicamento e sugeriu alterações, a empresa respondeu que ele havia perdido alguns pontos “comercialmente importantes” e publicou o artigo em nome de outro acadêmico.[142]

O que descobrimos com base nos protocolos foi algo novo e chocou a comunidade internacional de pesquisa. Houve muitos comentários sobre nossos resultados em revistas científicas e na mídia.

Fui uma espécie de detetive de pesquisa toda a minha vida e participei uma vez de uma equipe com Richard Smith, Editor-Chefe do BMJ, que investigou um caso de fraude em um ensaio cometido por um pesquisador na Ásia.

A fraude é muito mais comum do que as pessoas pensam.[27] Em 2021, Smith escreveu sobre fraude em pesquisa no artigo “Hora de presumir que a pesquisa em saúde é fraudulenta até que provem o contrário?”[143] Ele mencionou que um colega havia informado ao anestesista Ian Roberts que nenhum dos ensaios que ele havia incluído em uma revisão sistemática, mostrando que o manitol reduziu pela metade as mortes por lesão na cabeça, existia. Todos eles tinham um autor principal que afirmava ser de uma instituição que não existia. Os ensaios foram publicados em prestigiadas revistas de neurocirurgia e tinham vários co-autores, alguns dos quais não sabiam que eram autores até depois que os ensaios falsos foram publicados. Quando Roberts contactou uma das revistas, o editor respondeu: “Eu não confiaria nos dados.” Roberts se perguntou por que então o ensaio foi publicado. Nenhum dos ensaios foi retirado.

Também em 2021, uma análise de dados de pacientes individuais em 153 ensaios randomizados submetidos à “Anaesthesia” mostrou que 44% tinham dados não confiáveis e 26% eram fatalmente falhos, ou seja, 70% eram lixo.[144] Quando os dados de pacientes individuais não estavam disponíveis, era mais difícil detectar a má conduta científica e agora “apenas” 22% eram lixo.

Fica claro que não podemos confiar cegamente na ciência, mas devemos investigar todas as vezes se ela é confiável. Roberts, editor em um grupo Cochrane, afirmou que é um grande erro que o lema das revisões de ensaios do Cochrane seja “Evidência Confiável”.[145] Esse lema foi introduzido pelo novo CEO do Cochrane, o jornalista Mark Wilson, logo após assumir o cargo em 2012. Parece autopromoção de uma empresa farmacêutica, o que reflete que Wilson tinha uma abordagem de marketing e não entendia o que a ciência significava. Ele arruinou a Colaboração Cochrane e saiu abruptamente em meados de abril de 2021, depois que seu principal financiador declarou que reduziria substancialmente o financiamento.[146]

De longe, a maioria das revisões Cochrane de drogas psiquiátricas são pouco confiáveis, porque a maioria dos ensaios incluídos são pouco confiáveis, e os autores e editores Cochrane não são suficientemente críticos em relação ao material de origem.

Para ver a lista de todas as referências citadas, clique aqui.

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Mad in Brasil (Texto original do site Mad in America ) hospeda blogs de um grupo diversificado de escritores. Essas postagens são projetadas para servir como um fórum público para uma discussão – em termos gerais – da psiquiatria e seus tratamentos. As opiniões expressas são próprias dos escritores.

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Leticia Paladino : Graduada em Psicologia pela UERJ, doutoranda em Saúde Pública pela ENSP/Fiocruz, mestre em Saúde Pública pela ENSP/Fiocruz e especialista em Saúde Mental e Atenção Psicossocial pela ENSP/Fiocruz.  Pesquisadora e Colaboradora do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial (LAPS/ENSP/Fiocruz).

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