Lançamento do E-book do 7º Seminário Internacional A Epidemia das Drogas Psiquiátricas

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Foi lançado o e-book do 7º Seminário Internacional “A Epidemia das Drogas Psiquiátricas”, realizado em 2023. O e-book “Estratégias Contemporâneas de Desmedicalização” contém todas as mesas do seminário transcritas e editadas. Encontra-se disponível para baixar, gratuitamente, aqui → (link)

Em Defesa da Pesquisa de Diálogo Aberto

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Studio shot of bearded Persian man doctor against gray background in black and white

Texto originalmente publicado no Mad in America, traduzido pelo DeepL e revisado por Camila Motta.

Nota do editor do Mad in America, Robert Whitaker:

Recentemente, encontramos no X/Twitter a postagem de uma revisão da literatura sobre a eficácia de “intervenções psicossociais alternativas para pessoas com psicose aguda não afetiva”., publicado na Lancet Psychiatry. 

Os autores concluíram que, embora houvesse muitas evidências de ensaios clínicos randomizados demonstrando que os antipsicóticos são eficazes no tratamento da “psicose aguda e na redução de recaídas”, e que havia “evidências muito menores, de baixa qualidade geral, em algumas centenas de pessoas, sobre os possíveis benefícios de intervenções não medicamentosas”.

Em particular, o artigo ridicularizou a pesquisa que Jaakko Seikkula e colegas publicaram sobre os resultados do Open Dialogue, escrevendo que: “Ao examinar essa literatura, o desenho e o relatório do estudo tornam praticamente impossível comentar sobre quaisquer benefícios que o Open Dialogue possa conferir. O desenho dos estudos, na melhor das hipóteses, atenderia aos critérios de avaliação de serviços, e há evidências de viés de fidelidade, viés de seleção e viés de relato (relato seletivo do resultado).”

Pessoalmente, achei que esse artigo era um trabalho de difamação, um artigo que se apresentava como uma revisão “objetiva” das evidências de “alternativas não medicamentosas”, mas que foi feito com a intenção de reificar os antipsicóticos como o único tratamento “comprovado” para a psicose e descartar as pesquisas que relatavam resultados positivos do Open Dialogue e de outros programas semelhantes que adotavam o “uso seletivo” dos medicamentos.

Naquela época, não percebi que o artigo já tinha dois anos e escrevi para Jaakko Seikkula pedindo um comentário. Ele não tinha visto o artigo, mas assim que o viu, escreveu uma carta ao editor da Lancet Psychiatry. Os editores a rejeitaram, afirmando que tais cartas deveriam ser escritas dentro de quatro semanas após a publicação impressa do artigo.

Aqui está a carta que Jaakko Seikkula enviou à Lancet Psychiatry:

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Comentário:

O uso de neurolépticos em crises psicóticas não é uma questão de “ou ou”. Correção das declarações errôneas de Jauhar e Lawrie sobre os estudos do Open Dialogue.

 

Li com interesse e curiosidade o artigo de Sameer Jauhar e Stephen M. Lawrie intitulado “What is the evidence for antipsychotic medication and alternative psychosocial interventions for people with acute, non-affective psychosis?” (Quais são as evidências para medicação antipsicótica e intervenções psicossociais alternativas para pessoas com psicose aguda não afetiva?

Minha curiosidade se transformou em confusão sobre o objetivo desse artigo. Ele é apresentado como uma análise crítica de estudos que forneceram suporte para alternativas ao uso de medicação neuroléptica para pacientes psicóticos, mas, na verdade, apresenta uma revisão preconceituosa e seletiva da literatura científica.

A parte principal do artigo se concentrou em estudos de ensaios clínicos randomizados. No entanto, há relatos de que os estudos com placebo têm muitos tipos diferentes de problemas que afetam a confiabilidade dos resultados|1|. Como Taylor et al. observam, “os ensaios clínicos randomizados medem a eficácia, mas o ambiente controlado de um ensaio clínico randomizado afeta a generalização dos resultados no ‘mundo real’, especialmente quando são consideradas as altas taxas de desistência, a curta duração do estudo e o viés de seleção no recrutamento de pacientes. (…) As taxas de desistência até mesmo deensaios clínicos randomizados relativamente breves em estudos de medicamentos em psiquiatria podem chegar a 70% ou até 80%, confundindo a aplicabilidade dos resultados. Além disso, a realização de ensaios clínicos randomizados multicêntricos de grande porte é cara, o que impede a realização de estudos de longo prazo ou de manutenção.”

Além disso, o grande problema dos ensaios randomizados é que a eficácia encontrada nesses estudos de “laboratório” não se traduz na mesma eficácia no mundo real. Estima-se que 20% da eficácia relatada seja perdida na prática clínica cotidiana|2|. Além disso, descobriu-se que a eficácia dos estudos foi exagerada|3|.

Os autores fazem referência a estudos sobre o Open Dialogue na psicose. Parece, entretanto, que os autores não leram nenhum artigo publicado pelos autores dos estudos sobre o Open Dialogue. Nenhuma das “descobertas” que os autores apresentaram era verdadeira. Como a Lancet pode aprovar artigos sem verificar se as informações contidas no artigo publicado são precisas? Não deveria haver um processo de revisão por pares para garantir que os argumentos apresentados sejam precisos e válidos?

Há nove artigos científicos sobre os resultados do primeiro episódio de psicose não afetiva no atendimento do Open Dialogue na Lapônia Ocidental finlandesa. Esses estudos são de um total de três coortes de pesquisa entre 1992 e 2005. Como exemplo, um dos artigos|4| é um estudo quase experimental entre pacientes com esquizofrenia de primeiro episódio, comparando dois coortes históricos do Open Dialogue na Lapônia Ocidental com pacientes em outra província da Finlândia. No grupo de comparação (N=14), todos os pacientes usaram neurolépticos, enquanto nos grupos de Open Dialogue(N=22/23) apenas 8 usaram. Um elemento significativo do Open Dialogue é o uso seletivo de neurolépticos com base nas necessidades exclusivas de cada paciente: alguns pacientes podem nunca usar os medicamentos, outros podem usá-los por algum tempo e outros podem permanecer com eles por muito tempo. Os outros elementos centrais da prática do Open Dialogue são a introdução de reuniões precoces nas crises, convidando a família e outras redes sociais relevantes para o processo ativo de atendimento e, nas reuniões de terapia, concentrando-se em gerar diálogo para entender o que aconteceu.

No grupo de comparação, no acompanhamento de dois anos, 50% haviam se recuperado dos sintomas psicóticos (7/14), enquanto nos grupos de Open Dialogue 63% e 82% (14/22 e 19/23) haviam se recuperado. Além disso, no grupo de comparação, apenas 6 dos 14 haviam retornado ao emprego pleno ou à busca ativa de emprego, enquanto 14/22 e 21/23 nos grupos de Open Dialogue haviam se recuperado. Entre os recuperados estavam todos os pacientes que não usavam medicação neuroléptica.

As diferenças em favor do Open Dialogue foram significativas. Em um estudo observacional|5| sobre acompanhamento de 19 anos comparando pacientes do Open Dialogue e pacientes com “tratamento usual” (TAU) na Finlândia, essa diferença nos resultados persistiu. O acompanhamento foi baseado em dados do registro nacional finlandês de pacientes.

*19 anos de acompanhamento do primeiro episódio de psicose não-afetiva: comparação entre Diálogo Aberto na Lapônia Ocidental com o resto da Finlândia (TAU).

As estatísticas mostram diferenças significativas nos resultados de longo prazo. Após 19 anos, metade dos pacientes do grupo TAU ainda necessitava de cuidados ativos, em comparação com 28% dos pacientes com Open Dialogue. No grupo TAU, 81% usaram neurolépticos, em comparação com 36% dos pacientes do Open Dialogue. 61% por cento do grupo TAU estava incapacitado ao final de 19 anos, em comparação com 33% do grupo Open Dialogue.

Ao estudar|6| o papel da medicação neuroléptica na diferença de resultados, constatou-se que, após o ajuste para fatores de confusão, a exposição cumulativa moderada e alta a antipsicóticos nos primeiros 5 anos foi consistentemente associada a um risco maior de resultados adversos durante o acompanhamento de 19 anos, em comparação com a exposição baixa ou nula.

Publicamos estudos sobre os resultados nas três coortes de psicose não afetiva no primeiro episódio, e os resultados foram consistentes em todas as três, confirmando a alta validade externa do projeto naturalista. As intervenções estudadas em ensaios randomizados geralmente são muito menos eficazes quando são aplicadas no mundo real. Como os estudos do Open Dialogue já foram realizados no mundo real, não há essa perda de eficácia. A validade externa é maior nos estudos naturalísticos.

Quando avaliamos o uso de neurolépticos como tratamento para psicose, é essencial realizar pesquisas em um ambiente do mundo real, porque essa é a única maneira de descobrir o impacto de seu uso. E, no mundo real, não se trata de usar ou não os medicamentos, mas sim de criar um processo que nos permita selecionar aqueles que podem se beneficiar dos medicamentos, aqueles que não precisam deles e, talvez o mais importante, aqueles para os quais os neurolépticos são prejudiciais. A prática do Open Dialogue é um exemplo de como esses cuidados no mundo real podem levar a resultados muito melhores a longo prazo.

O artigo de Jauhar e Lawrie descartou o Open Dialogue sem revisar os resultados dos estudos publicados e, o mais importante, sem fazer referência aos resultados de 19 anos que mostraram resultados muito superiores para aqueles tratados com Open Dialogue em comparação com TAU. Desprezar a Open Dialogue sem revisar os resultados do estudo é um desserviço aos seus leitores.

 

REFERÊNCIAS:

  1. Taylor M, Cavanagh J, Hodgson R, Tiihonen J. Examining the effectiveness of antipsychotic medication in first-episode psychosis. J Psychopharmacol 2012; 26:27–32. 
  2. Leichsenring F, Steinert S, Rabung S, & Ioannidis J P A. The efficacy of psychotherapies and pharmacotherapies for mental disorders in adults: an umbrella review and meta‐analytic evaluation of recent meta‐analyses. World Psychiatry 2022; 21(1):133–145. 
  3. Leucht S, Leucht C, Huhn M, et al. Sixty years of placebo‐controlled antipsychotic drug trials in acute schizophrenia: systematic review, Bayesian meta‐analysis, and meta‐regression of efficacy predictors. Am J Psychiatry 2017; 174:927‐42. 
  4. Seikkula J, Alakare B, Aal­tonen J, Holma J, Rasinkangas A, & Lehtinen V. Open Dialogue approach: Treatment principles and preliminary results of a two-year follow-up on first episode schizophrenia. Ethical Human Sciences and Services 2003; 5(3):163-182. 
  5. Bergström T, Seikkula J, Alakare B, Mäki P, Köngäs-Saviaro P, Taskila J, Tolvanen A, & Aaltonen J. The family-oriented open dialogue approach in the treatment of first-episode psychosis: Nineteen–year outcomes. Psychiatry Research 2018; 270:168–17. 
  6. Bergström T, Taskila J J, Alakare B, Köngäs-Saviaro P, Miettunen J, Seikkula J. Five-Year Cumulative Exposure to Antipsychotic Medication After First-Episode Psychosis and its Association With 19-Year Outcomes. Schizophrenia Bulletin Open 2020; 1(1):sgaa050.

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Mad in Brasil hospeda blogs de um grupo diversificado de escritores. Essas postagens foram elaboradas para servir como um fórum público para uma discussão – em termos gerais – sobre psiquiatria, saúde mental e seus tratamentos. As opiniões expressas são dos próprios escritores.

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Nota do Editor: Todos os artigos, matérias, notícias e traduções publicadas no Mad in Brasil são previamente autorizadas e revisadas pelo nosso editor-chefe, Paulo Amarante. 

 

Manual de Psiquiatria Crítica, Capítulo 8: Depressão e Mania (Transtornos Afetivos) (Parte Um)

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Nota do editor: Nos próximos meses, a Mad in Brasil publicará uma versão serializada do livro de Peter Gøtzsche, Manual de Psiquiatria Crítica. Neste blog, ele discute a influência da indústria das drogas na definição de transtornos e a falta de eficácia das pílulas para depressão. A cada quinze dias, uma nova seção do livro será publicada e todos os capítulos estão arquivados aqui

As pílulas para depressão são as drogas para psicose mais amplamente utilizadas, e os estudos de imagem cerebral desempenham um papel importante quando os psiquiatras tentam convencer o mundo que essas drogas são muito úteis e necessárias.

No Capítulo 3, refutei as afirmações de manuais didáticos de que os transtornos afetivos podem causar atrofia cerebral e outras alterações neurobiológicas. Muito raramente houve qualquer admissão ou consideração de que essas mudanças poderiam ser causadas pelas pílulas ao invés de serem causadas pela doença.

Os manuais continham uma variedade de alegações extraordinárias sobre o que as pílulas para depressão podem causar no cérebro, mas não citava referências e o que era afirmado é altamente improvável de ser verdadeiro.

Somos informados de que as pílulas para depressão têm um efeito na neuroplasticidade; que as pílulas estimulam a formação de novos neurônios e dendritos no hipocampo;[16:558] que os exames de imagem cerebral mostraram uma diminuição nas mudanças atróficas com o tratamento; que estudos em animais mostraram um efeito neuroprotetor muito claro das pílulas; que as pílulas podem prevenir a morte de células nervosas, atrofia de células nervosas e diminuição da neurogênese, gênese de células gliais e angiogênese; que há muito a sugerir que o tratamento pode diminuir as mudanças patológicas estruturais;[16:267] que o tratamento pode prevenir a deterioração se houver lesões na matéria branca em uma ressonância magnética;[18:121] e que a atrofia do hipocampo, que pode ser vista na depressão não tratada a longo prazo, diminui durante o tratamento eficaz.[18:126]

A alegação de que a atrofia diminui durante o tratamento eficaz é uma tautologia. Se não diminuir, o tratamento não foi eficaz. A medicina baseada em evidências aborda o que o tratamento faz em média. O tratamento cura a suposta atrofia do hipocampo em comparação com um grupo tratado com placebo? Não sabemos porque tal estudo nunca foi realizado.

Não precisamos perder tempo tentando descobrir quais estudos os psiquiatras não citaram, pois já sabemos que os estudos de imagem cerebral são grosseiramente não confiáveis (veja o Capítulo 3). Além disso, se as pílulas para depressão não têm efeitos clinicamente relevantes na depressão, não aumentam a qualidade de vida dos pacientes, possuem efeitos adversos comuns e perturbadores e aumentam o risco de suicídio, é irrelevante o que acontece no cérebro.

Isso é exatamente o caso, como demonstrarei a seguir. Mas primeiro: por que tantas pessoas estão deprimidas?

Bem, na verdade não estão. Impulsionados fortemente pela indústria da droga por meio de líderes da psiquiatria remunerados pelas empresas farmacêuticas,[6] os critérios para o diagnóstico de depressão foram consideravelmente reduzidos ao longo dos anos, de modo que agora é necessário muito pouco para obter um diagnóstico. Antes de termos pílulas para depressão, pouquíssimos cidadãos recebiam um diagnóstico de depressão.[2] Era o que hoje chamamos de depressão muito grave, anteriormente chamada de melancolia, onde as pessoas são incapazes de trabalhar por meses. Muitas pessoas se sentem tristes de vez em quando, o que é natural. Isso não é uma doença, mas hoje é chamado de uma doença nomeada não apenas depressão, mas transtorno depressivo maior para enfatizar que você precisa de ajuda profissional. Quem recusaria ajuda se estivesse sofrendo de um transtorno cardíaco importante ou de uma fratura óssea importante?

Em 2010, o Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos (CDC) publicou um relatório afirmando que 9% dos adultos entrevistados preenchiam os critérios para depressão.[255] Você acredita que um décimo da população adulta dos EUA esteja deprimida?

Devemos rejeitar essa ideia. Os critérios que o CDC usou eram os listados no DSM-IV (do Questionário de Saúde do Paciente [PHQ-9]) e muito pouco era necessário para alcançar o diagnóstico. Se estaria deprimido se tivesse tido pouco interesse ou prazer em fazer coisas por mais da metade dos dias nas últimas duas semanas, além de um “sintoma” adicional, que poderia ser muitas coisas, por exemplo, dificuldade para dormir, ou pouco apetite ou comer demais. Pouco interesse ou prazer em fazer coisas por 8 em 14 dias acontecerá com a maioria das pessoas. Dificuldade para dormir é comum e muitas pessoas comem demais.

Há um risco substancial de evidência circular em tudo isso. Em uma entrevista, “A Criação do Mito do Prozac”, David Healy explicou que se uma nova classe de drogas afeta o humor, o apetite e os padrões de sono, a depressão pode ser definida por psiquiatras apoiados pela indústria como uma doença que consiste apenas nisso.[256] As empresas farmacêuticas não vendem principalmente drogas, vendem diagnósticos, que são muito mais lucrativos, e vendem mentiras sobre suas drogas.[1-11]

Em 2013, fui convidado para falar na conferência Selling Sickness em Washington, DC, organizada por Kim Witczak, cujo marido Woody foi levado ao suicídio pela sertralina prescrito para insônia, mas causou acatisia.[7-89] Outro palestrante foi o jornalista científico Alan Cassels, co-autor do livro, “Vendendo Doenças: Como as Maiores Empresas Farmacêuticas do Mundo Estão nos Transformando Todos em Pacientes”.[129]

O outro autor do livro de Alan foi o jornalista científico Ray Moynihan, que desempenhou o papel de paciente em um vídeo sobre uma nova epidemia – o transtorno de deficiência motivacional.[257] Em sua forma leve, as pessoas não conseguem sair da praia ou da cama de manhã, e em sua forma mais grave pode ser letal, pois o paciente pode perder a motivação para respirar. Moynihan diz: “Toda a minha vida as pessoas me chamaram de preguiçoso. Mas agora eu sei que estava doente.” Moynihan descreveu o novo transtorno na edição de 1 de abril do BMJ em 2006,[258] e algumas pessoas acreditaram que era uma doença verdadeira e perguntaram onde poderiam comprar a droga contra ela, o Indolebant.

Outro vídeo ilustrou como é fácil convencer pessoas saudáveis a tomar drogas que não precisam para uma doença que não têm. A artista australiana Justine Cooper inventou um comercial de TV que anuncia o Havidol (tenha tudo), com o nome químico avafynetyme HCl (tenha um tempo bom mais ácido clorídrico).[259,260] O Havidol é para aqueles que sofrem do transtorno de déficit de ansiedade de consumo de atenção social disfórico (DSACDAD). Se sente vazio após um dia inteiro de compras? Gosta de coisas novas mais do que antigas? A vida parece melhor quando você tem mais do que os outros? Então você pode ter o transtorno, que mais de 50% dos adultos têm. O Havidol deve ser tomado indefinidamente e os efeitos colaterais incluem pensamento extraordinário, brilho na pele, atraso acentuado no clímax sexual, comunicação entre espécies e sorriso terminal. “Converse com seu médico sobre o Havidol.” Algumas pessoas acreditavam que essa droga também era real e a incluíam em sites para transtorno do pânico e ansiedade ou para depressão.

Mostrei os dois vídeos como introdução à minha palestra sobre diagnóstico e tratamento excessivos quando palestrei para mais de 100 psiquiatras em um hospital em Copenhague em 2012. Eles riram alto, mas não quando acrescentei que o que eles acabaram de ver não estava longe de sua prática diária. Todos os psiquiatras e médicos de família deveriam ver esses dois vídeos como um antídoto contra a influência generalizada da indústria farmacêutica e seus pares.

O transtorno bipolar em crianças aumentou 35 vezes em 17 anos nos Estados Unidos,[1:8] o que não é apenas por causa de critérios diagnósticos mais amplos. Tanto os ISRS[261] quanto as drogas para TDAH[34] podem causar mania e seus danos podem levar a um diagnóstico de transtorno bipolar em um a cada dez jovens.[262] No entanto, os principais psiquiatras elogiam isso como um diagnóstico “melhor”, ou dizem que a droga revelou o diagnóstico.[5:235] Que os psiquiatras sejam capazes de transformar até mesmo sérios danos causados pelas drogas e fazê-los parecerem benefícios reflete como a indústria da droga opera.

Em 1987, pouco antes dos ISRSs entrarem no mercado, apenas 16.200 crianças estavam incapacitadas mentalmente nos Estados Unidos; 20 anos depois, eram 561.569, um aumento de 35 vezes.[1:245]

Na Dinamarca, as vendas de pílulas para depressão estão tão altas que 8,5% de toda a população pode estar em tratamento com uma dose para adultos para a vida toda.[263] Isso significa que cada dinamarquês poderia estar em tratamento por 7 anos. Se isso não pode acordar as pessoas, o que mais pode?

As empresas da droga são as impulsionadoras desse colossal supertratamento. No período em que as vendas de ISRSs aumentaram quase linearmente por um fator de 18, o número de produtos no mercado – e, portanto, a pressão de marketing – aumentou por um fator de 16 (r = 0,97, correlação quase perfeita).[264] Nos Estados Unidos, o uso de ISRSs e drogas similares quase triplicou na atenção primária entre 1989 e 2000, com cada novo agente adicionando ao uso agregado sem uma diminuição concomitante nos agentes mais recentes introduzidos anteriormente.[265]

As pílulas para depressão não têm efeitos clinicamente relevantes na depressão. 

A recente alta acentuada no uso dessas pílulas tem sido acompanhada por um aumento na prevalência e duração dos episódios depressivos e níveis crescentes de ausência do trabalho por motivos de doença.[1:8,24]

Este é um fenômeno geral para as drogas psiquiátricas. Em todos os países onde essa relação foi examinada, o aumento do uso de drogas psiquiátricas tem sido acompanhado por um aumento nos benefícios por incapacidade por motivos de saúde mental.[119:24] Este é apenas um entre muitos indicadores de que a maneira como usamos as drogas psiquiátricas causa mais danos do que benefícios.

Os ensaios controlados por placebo das pílulas para depressão não são muito úteis. Como explicado no Capítulo 6, eles são falhos por oito razões principais, que incluem o uso de escalas de avaliação, falta de cegamento eficaz em ensaios chamados duplo-cegos e efeitos de retirada no grupo placebo que são interpretados erroneamente como sintomas de depressão.

Um manual didático afirmava que a imipramina, uma pílula tricíclica para depressão, remove os sintomas em pacientes com depressão grave.[18:307] Isso é impossível. Nenhuma droga já demonstrou curar pacientes com depressão grave. Mas muitos psiquiatras acreditam que os antigos tricíclicos, que raramente usam devido aos seus danos, são mais eficazes do que os inibidores seletivos da recaptação de serotonina (ISRSs) e os inibidores da recaptação de serotonina e noradrenalina (IRSNs).

Essa crença não é baseada em evidências confiáveis. Meio século atrás, foram realizados ensaios com tricíclicos que foram adequadamente cegados, já que o placebo continha atropina,[266] que causa boca seca e outros efeitos adversos semelhantes aos observados com os tricíclicos. Os ensaios eram, portanto, muito mais confiáveis do que aqueles que usavam placebos convencionais.

Uma revisão de nove ensaios (751 pacientes) com atropina no placebo não demonstrou um efeito dos tricíclicos.[266] O efeito medido, uma diferença média padronizada de 0,17, não só foi estatisticamente incerto (o intervalo de confiança de 95% foi de 0,00 a 0,34), mas também foi tão pequeno que mesmo se fosse verdadeiro não teria relevância clínica. O efeito foi de 0,39 se todos os estudos fossem incluídos, mas houve um único estudo fortemente positivo e os autores obtiveram o resultado mais confiável de 0,17 depois de excluí-lo da análise. Isso é o que deve ser feito. Fraude é a razão mais comum para que um estudo seja um outlier extremo (neste caso, o tamanho do efeito foi de 1,1).

Um efeito de 0,17 é minúsculo. Nos relatórios de estudo clínico de pílulas para depressão que obtive da Agência Europeia de Medicamentos, o desvio padrão mediano na escala de Hamilton após o tratamento foi de 7,5. Isso significa que 0,17 corresponde a uma mudança de 1,3 pontos na escala de Hamilton, que varia de 0 a 52. O menor efeito que pode ser percebido nesta escala é de 5-6 pontos.[267] O efeito clinicamente relevante mínimo é, é claro, maior do que o mínimo necessário para ser percebido. O fato de você poder ver a luz no fim do túnel não significa que haja luz suficiente para ler um jornal e sua depressão não desaparece apenas porque seu psiquiatra notou uma mudança mínima.

Os ensaios controlados por placebo dos ISRSs e IRSNs não são apenas falhos devido à falta de cegamento adequado, mas também porque virtualmente todos os pacientes estavam em tratamento com alguma pílula para depressão antes da randomização. Isso cria um viés enorme devido aos efeitos de retirada.[7:244] Muitos dos sintomas de retirada são os mesmos sintomas que definem a depressão e os pesquisadores, portanto, chegam a uma conclusão errada quando dizem que seu ensaio mostrou que a droga funcionou.

Algumas metanálises descobriram que o efeito das pílulas para depressão é maior se os pacientes estiverem gravemente deprimidos,[268-270] e em todo o mundo os medicamentos são recomendados para depressão grave e geralmente também para depressão moderada, embora um manual tenha observado que o efeito dos medicamentos é o mesmo ou menor do que o da terapia cognitivo-comportamental na depressão moderada.[19:293]

É difícil acreditar que uma intervenção que não funcione quando testada em pacientes com todas as gravidades da doença, incluindo muitos com doença grave, deva funcionar para aqueles mais afetados. A diferença entre a droga e o placebo é apenas cerca de 2 pontos na escala de Hamilton,[268,271] mesmo que os ensaios sejam falhos a favor da droga ativa.

O efeito relatado também é pequeno e irrelevante para pacientes com depressão muito grave, por exemplo, apenas 2,7 pontos para pacientes com uma pontuação de Hamilton inicial acima de 23,268 que, de acordo com o Manual de Medidas Psiquiátricas da Associação Psiquiátrica Americana, é uma depressão muito grave.[270] O efeito é de 1,3 pontos para graus mais leves de depressão,[268] mas essa diferença, provavelmente, é apenas um artefato matemático.[272] Como as pontuações basais para a depressão grave são maiores do que para a depressão leve, qualquer viés influenciará mais o resultado medido em pacientes com depressão grave do que naqueles com depressão leve. Se assumirmos que o viés causado pelo cegamento insuficiente devido aos efeitos adversos das drogas é de 10% ao estimar o efeito no grupo da droga,[7:51] e, para a simplicidade do exemplo, que não há viés no grupo do placebo e nenhuma melhoria entre a linha de base e a visita final, então uma pontuação inicial na escala de Hamilton de 25 ainda seria 25 após o tratamento. Mas por causa do viés, haveria uma diferença de 2,5 pontos entre a droga e o placebo. Se a linha de base for 15, essa diferença será apenas de 1,5.

Para ver a lista de todas as referências citadas, clique aqui.

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Mad in Brasil (Texto original do site Mad in America ) hospeda blogs de um grupo diversificado de escritores. Essas postagens são projetadas para servir como um fórum público para uma discussão – em termos gerais – da psiquiatria e seus tratamentos. As opiniões expressas são próprias dos escritores.


Tradução de Leticia Paladino : Graduada em Psicologia pela UERJ, doutoranda em Saúde Pública pela ENSP/Fiocruz, mestre em Saúde Pública pela ENSP/Fiocruz e especialista em Saúde Mental e Atenção Psicossocial pela ENSP/Fiocruz.  Pesquisadora e Colaboradora do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial (LAPS/ENSP/Fiocruz).


 

O Importante Livro “Loucura na Civilização”, do Sociólogo Britânico Andrew Scull, é Lançado em Português

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A editora Sesc publicou recentemente o livro de Andrew Scull, Loucura na Civilização: uma história cultural da insanidade, onde o autor condensa mais de quatro décadas de pesquisa sobre a história da loucura, da medicina e da psiquiatria. O livro percorre da antiguidade à contemporaneidade, passando por diferentes lugares do globo.

Andrew Scull é um sociólogo britânico, pós-doutor pela University College London.  Em 2016, foi contemplado com o Prêmio Eric T. Carlson por suas contribuições para a história da psiquiatria. As pesquisas do sociólogo sobre a história cultural da loucura tiveram início nos anos 1970. Scull participou do nosso 6º Seminário Internacional “A Epidemia das Drogas Psiquiátricas”.

Para comprar o livro, acesse o Portal Sesc São Paulo.

A Patologização de Corpos Inconformes

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Com o objetivo de analisar os enunciados biomédicos que tratam de intersexualidade como patologia, o artigo Discurso biomédico e intersexualidade: apontamentos sobre a patologização de corpos inconformes foi realizada uma revisão bibliográfica do discurso biomédico sobre as questões de intersexualidade, de produções acerca da história da sexualidade e do binarismo sexual na sociedade ocidental e de produções contradiscursivas dentro do campo da biomedicina, articulando tais noções à teoria queer.

O artigo aborda o tema da medicalização dos corpos disformes e pretende analisar o caráter patológico atribuido à intersexualidade. O discurso hegemônico fala de uma diferença total entre homens e mulheres: pênis e vagina, ovários e testículos seriam órgãos completamente diferentes, assim como hormônios e cromossomos distintos. No entanto, contrapondo-se a esse discurso, a bióloga Anne Fausto-Sterling aponta que, na verdade, é possível falar da existência de pelo menos cinco sexos diferentes, sendo o masculino e o feminino os extremos deste gradiente.

Na contramão da lógica binária, que tenta se passar por universal, são comuns os sujeitos que nascem com características que fogem dessa lógica. Essa condição de inconformidade são inúmeras, no passado era chamada de hermafroditismo. Atualmente, são conhecidas na literatura médica como anomalias de disfunção sexual (ADS). No texto foi utilizado o termo intersexualidade para se referir as ADS e intersexo para se referir aos sujeitos que com ela convive.

Os quadros mais comuns da intersexualidade são: hiperplasia adrenal congênita, síndrome de insensibilidade androgênica, disgenesia gonadal, hipospádia, síndrome de Turner e síndrome de Klinefelter. Destas seis condições mais comuns dentro do espectro intersexual, apenas uma é descrita como potencialmente mortal (hiperplasia adrenal congênita), todo o resto são desvios do padrão corporal esperado. No entanto, o discurso médico aponta que existe um risco para o sujeito que apresenta uma condição de corpo inconforme é passível de ser estigmatizado, e seu corpo deve ser corrigido. Segundo esse argumento, os médicos defendem a urgência das intervenções clínicas em corpos infantis por uma razão de cunho social. Uma resolução do Conselho Federal de Medicina sobre os casos de ADS afirma:

“O nascimento de crianças com sexo indeterminado é uma urgência biológica e social. Biológica, porque muitos transtornos desse tipo são ligados a causas cujos efeitos constituem grave risco de vida. Social, porque o drama vivido pelos familiares e, dependendo do atraso do diagnóstico, também do paciente, gera graves transtornos.”

Apesar do documento citar que existe risco à vida dos pacientes, como vimos, apenas um dos casos mais comuns de intersexualidade realmente coloca diretamente em risco a vida de um sujeito intersexo. SANTOS (2003) aponta:

“quando um corpo se apresenta ambíguo, para que este entre na normalidade da diferença sexual, para tal fazendo valer as tecnologias, de modo a evitar que este corpo cause um desequilíbrio na organização da sociedade. Os corpos sexualmente ambíguos são controlados pela medicina, submetidos a processos de “normalizacão”no intuito de que o sexo, corpo, comportamento, sexualidade e caracteres secundários funcionem em harmonia entre si e conforme a ideologia de uma sociedade heterossexista.’

É possível argumentar que a intervenção médica é urgente para evitar a estigmatização da criança intersexo. Mas os autores se questionam se mesmo com a cirurgia corretiva para o sujeito intersexo teria, socialmente, o efeito de adequação desejado, ou se a “correção”da intersexualidade não seria responsável por produzir um novo estigma, criando um sujeito normal de segunda classe, com uma aparência passável, mas incapaz de mudar sua essência doente.

“Assim, quando a política passa a ser aplicada como uma gestão da vida, a normalidade serve como dispositivo de controle dos corpos. Ao corpo anormal, leia-se aqui, intersexo, portanto, restava a conformidade – possível à época , pois ao sujeito se lhe fazia escolher um sexo e cabia a ele portar-se de acordo com o padrão esperado para esse sexo, respeitando, sobretudo, a performance heterossexual – ou a institucionalização.”

Na maioria das vezes, a escolha não é feita pelo próprio sujeito intersexo já que amiúde a cirurgia é realizada em uma criança neonata, sem condições de fazer sua própria escolha. Portanto, essa responsabilidade recai sobre os cuidadores, orientados pelos médicos.

Ana Lúcia Santos (2013) argumenta em favor da necessidade de uma descolonização da epistemologia biomédica para a produção de uma prática menos binária. Os autores defendem que a proposta de um discurso biomédico (re)construído em torno da noção de hospitalidade médica incondicional (usando uma noção Derridiana) é um grande passo para a despatologização de uma condição que se torna mais perigosa ao ser estigmatizada como doença pendente ao tratamento urgente. Nesse sentido, cabe uma produção transdiciplinar que permita repensar além dos limites do binarismo, e não permita a a-historicidade dos corpos e discursos biomédicos.

Para a bióloga Anne Fasuto-Sterling, o binarismo sexual é empírica e epistemologicamente insustentável, já que existem diversas graduações entre fêmea e macho. É possível dizer que há pelo menos cinco sexos e talvez até mais. A sua posição vai no sentido de despatologizar a condição intersexual e ressignificá-la enquanto condição natural. Entretanto, Fausto-Sterling afirma que a pretendida universalidade do discurso biomédico ocidental não atinge seus objetivos totalizantes, visto que diferentes culturas codificam algo patologizado pelo referencial biomédico a partir de seus referenciais próprios.

Por fim, o artigo conclui que todo conhecimento científico-natural é também científico-social, uma vez que seus desdobramentos têm impactos reais na vidas das pessoas. Tais impactos são sentidos pelos indivíduos patologizados e por seu círculo social próximo. Os sujeitos intersexo sofrem tratamentos invasivos em um corpo ainda incapaz de tomar decisões por conta própria. Nesse sentido, pensar uma hospitalidade biomédica incondicional passa pela tentativa de tornar factíveis novas condições de possibilidades para corpos que, via de regra, são impossibilitados de existir devida à práticas e discursos excludentes.

Também é importante que profissionais da área da biomedicina passem a ter uma formação mais compreensiva e integral, concebendo que as áreas de conhecimento dialogam entre si e não são saberes isolados, o que pode contribuir com profissionais mais humanizado(a)s, capazes de se questionarem acerca do processo de patologização.

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Nota do Editor: Todos os artigos, matérias, notícias e traduções publicadas no Mad in Brasil são previamente autorizadas e revisadas pelo nosso editor-chefe, Paulo Amarante. 

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de Almeida Trindade Braga, P., & Costa da Silva, M. A. (2023). Discurso Biomédico e Intersexualidade: Apontamentos sobre a patologização de corpos inconformes. Perspectivas Contemporâneas18(1), 1–15. https://doi.org/10.54372/pc.2023.v18.3531.

Limites da Medicina: Revisitando Ivan Illich

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Traduzido por Tiago Pires Marques (Mad in Portugal) do texto original publicado pelo Mad in America e revisado para o português do Brasil por Camila Motta (texto original).

O livro de Ivan Illich, A Expropriação da Saúde (Limits to “Medicine: Medical Nemesis- the Expropriation of Health”) me deixou boquiaberta quando o li pela primeira vez, há muitos anos, enquanto estudante de medicina. Relendo-o recentemente, fiquei impressionada com a sua originalidade e audácia, bem como com a atualidade do pensamento de Illich. Illich foi um visionário no sentido correto, um homem que ousou questionar algumas das nossas crenças mais profundas e imaginar uma forma de vida radicalmente diferente.

Quando me inscrevi para fazer medicina na Universidade, ser médica parecia um empreendimento totalmente progressista e benevolente. Como é que alguém poderia se opor a que os doentes melhorassem? Eu queria ir para o estrangeiro e espalhar as maravilhas da medicina ocidental pelo mundo subdesenvolvido. Mas rapidamente comecei a ouvir preocupações sobre o rumo da medicina. Wendy Savage veio falar sobre a medicalização excessiva do parto. Um estudante mais velho sugeriu que os médicos ocidentais que trabalham na África e na Ásia poderiam prejudicar os sistemas de saúde locais. Algumas pessoas se opuseram ao álcool gratuito e a outras regalias que as empresas farmacêuticas ofereciam aos estudantes de medicina desde o momento em que chegavam.

Havia também algo de desconcertante para mim no estudo incessante dos fatos do corpo humano. Nas aulas de dissecação, traçávamos a anatomia do braço, da perna e do tronco ao mais ínfimo pormenor e, em outras aulas, adquiríamos uma compreensão meticulosa da estrutura celular, da fisiologia e da bioquímica do corpo. Toda a biologia do ser humano nos era apresentada, incluindo o cadáver de uma pobre alma que tinha doado o seu corpo à ciência médica. Nunca duvidei de que este tipo de conhecimento é necessário se quisermos compreender os vários sistemas do corpo, de modo a intervir e a melhorá-los quando vão mal, mas me sentia desconfortável por razões que não conseguia identificar.

A Expropriação da Saúde traduz o meu mal-estar em palavras. Escrito como parte de uma crítica mais alargada da sociedade industrializada e das suas instituições, a tese básica de Illich é que a arrogância tecnológica nos levou a esquecer os limites da condição humana. Acreditámos que a tecnologia pode erradicar todo o sofrimento humano e proporcionar uma felicidade imaculada e eterna. Pagamos por esta expectativa irracional com a nossa autonomia, a nossa dignidade e a nossa capacidade de resistir.

Por muito difícil que seja escrever isto enquanto médica, há algo de inerentemente degradante na medicina. Afinal de contas,  se trata de permitir que outra pessoa interfira no nosso corpo, no nosso ser pessoal e físico. Quando se tratava apenas do médico local, apoiado por alguns medicamentos básicos, era uma degradação relativamente privada e contida, mas agora existe todo um sistema orientado para examinar, testar e ajustar diferentes partes de nós. Nos submeter à medicina exige agora a renúncia total à nossa integridade corporal.

Illich reconheceu que a medicina moderna desenvolveu algumas intervenções incrivelmente eficazes. Muitas das mais úteis, como a vacinação, são relativamente simples e podem ser administradas sem demasiada interferência. Outras, como o tratamento de ataques cardíacos ou do câncer, por exemplo, requerem uma grande intrusão corporal, incluindo a cirurgia para remover partes doentes, a inserção de dispositivos e a ingestão de medicamentos potentes e debilitantes como a quimioterapia. Não há dúvida de que estas intervenções podem proporcionar às pessoas mais anos de vida de qualidade boa ou razoável. No entanto, há uma contrapartida que raramente é reconhecida, uma vez que a medicina se tornou uma parte aparentemente indispensável das nossas vidas. Os milagres médicos têm um custo – e esse custo é a dignidade.

A medicina já não se limita a aliviar o sofrimento, mas envolve agora uma vida inteira de escrutínio, com controles e rastreios do berço ao túmulo. Depois, quando se fica realmente doente, desencadeia-se um esforço implacável para identificar, remover ou neutralizar a parte do corpo que está funcionando mal. Estes esforços concentram-se nos últimos meses de vida, numa batalha heróica para desafiar o inevitável.

No entanto, o problema da medicina não é apenas a sua relação com o corpo individual. É também a premissa de que podemos, e devemos, fazer tudo o que estiver ao nosso alcance para combater e atrasar a morte. A medicina criou o mito de que podemos curar tudo, se tivermos tempo e dinheiro suficientes. Consequentemente, muitas pessoas passaram a acreditar que a medicina venceu efetivamente a doença; que existe um tratamento para cada sintoma ou que a cura está mesmo ao virar da esquina. Apesar do crescente ceticismo do final do século XX, a fé no progresso científico para resolver todos os problemas continua a ser forte.

Mas somos mortais e a morte chegará mais cedo ou mais tarde. As doenças do envelhecimento, como a maioria dos cânceres e a demência, provavelmente nunca serão curadas. Em todo o caso, haverá sempre doenças que não podemos tratar e que causam morte prematura, dor, sofrimento e mágoa. O pensamento desejoso que a medicina tem vindo a incorporar obscurece as limitações da condição humana, deixando as pessoas menos conscientes da sua própria natureza. Esta negação da nossa fragilidade e mortalidade reduz a nossa capacidade de resistir à inevitável tragédia da vida.

As críticas mais específicas de Illich à medicina foram presságios. Descreveu a fabricação de doenças e a “invasão farmacêutica” e chamou a atenção para a importância da medicina baseada em evidências e do envolvimento dos doentes e do público muito antes destes começarem a ser aceitos pela medicina tradicional. A sua crítica ao diagnóstico por negar a autonomia da “autodefinição” é mais profunda do que qualquer um dos debates atuais sobre o DSM-5 (ver, por exemplo, a crítica da BPS ao DSM-5). Apesar dos seus argumentos apaixonados, A Expropriação da Saúde é um livro incrivelmente acadêmico, que se baseia amplamente na antropologia e na literatura transcultural, bem como em estudos sobre a epistemologia da doença e a linguística do sofrimento, entre muitas outras áreas.

Illich foi um homem notável, um acadêmico e ex-padre, que viveu de acordo com os seus princípios e recusou tratamento para o câncer que acabou por matá-lo. Embora a visão de Illich de uma sociedade alternativa seja descrita com mais pormenor em outros locais (como na sua famosa crítica à educação moderna, Sociedade sem Escolas),A Expropriação da Saúde apresenta alguns dos princípios em que essa sociedade se basearia. Seria organizada em torno das necessidades das pessoas para viverem vidas com significado, e não em torno da produção e do consumo por si só. Promoveria a autonomia dos indivíduos e das comunidades e a sua capacidade de autossuficiência, mas também reconheceria a necessidade de interdependência e de apoio mútuo. Integraria os aspetos mais úteis da tecnologia moderna, incluindo as intervenções médicas, mas as submeteria ao escrutínio democrático.

A Expropriação da Saúde tem muito a dizer sobre a psiquiatria, e o atual setor de saúde mental impulsionado pela indústria farmacêutica resume o monstro tecnocrático em constante expansão de Illich. A ideia de que os nossos descontentamentos são uma manifestação de cérebros defeituosos que podem ser abolidos com um tratamento médico sofisticado é exatamente o tipo de ilusão à qual Illich está respondendo. A promessa da medicina de uma solução rápida diminui a capacidade dos indivíduos e das comunidades para lidarem com as dificuldades e diferenças que são rotuladas como problemas de saúde mental. Embora não negue as muitas realizações da medicina, penso que a mensagem de Illich ainda precisa de ser ouvida.

 

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Mad in Brasil hospeda blogs de um grupo diversificado de escritores. Essas postagens foram elaboradas para servir como um fórum público para uma discussão – em termos gerais – sobre psiquiatria, saúde mental e seus tratamentos. As opiniões expressas são dos próprios escritores.

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Nota do Editor: Todos os artigos, matérias, notícias e traduções publicadas no Mad in Brasil são previamente autorizadas e revisadas pelo nosso editor-chefe, Paulo Amarante. 

Manual de Psiquiatria Crítica, Capítulo 7: Psicose (Parte Seis)

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Nota do editor: Nos próximos meses, a Mad in Brasil publicará uma versão serializada do livro de Peter Gøtzsche, Manual de Psiquiatria Crítica. Neste blog, ele discute os danos que as pílulas para psicose causam ao cérebro e como isso se manifesta em muitos prejuízos clínicos, como a discinesia tardia. A cada quinze dias, uma nova seção do livro será publicada e todos os capítulos estão arquivados aqui

Danos cerebrais irreversíveis e outros prejuízos graves

Os manuais didáticos forneceram informações contraditórias sobre danos cerebrais irreversíveis, e um deles tentou explicar isso de uma maneira mais confusa ainda.[16:222] Ele observou que as pílulas para psicose provavelmente previnem a perda de tecido cerebral em muitos pacientes, mas que um efeito prejudicial em outros não pode ser excluído.

Não foi documentado que as pílulas para psicose possam prevenir danos cerebrais e a medicina baseada em evidências não trata de especulações, mas sim do efeito médio. É preocupante ser lembrado de que as pílulas para psicose matam células nervosas de forma tão eficaz e que seu possível uso contra tumores cerebrais tem sido explorado. [4:176,135]

Esses autores observaram que o encolhimento do cérebro está relacionado à dose das pílulas para psicose, mas também que os pacientes mais doentes recebem as maiores doses (confusão por indicação), e que, portanto, é difícil fazer um julgamento. Eles acrescentaram que dados mais recentes mostraram uma relação entre recaída e encolhimento progressivo, o que sugere que a psicose pode ser tóxica.

Não havia referências bibliográficas, mas a relação entre recaída e encolhimento não sugere que a psicose possa ser tóxica. Usando seu próprio argumento, de que um efeito prejudicial das pílulas não pode ser excluído, o encolhimento poderia muito bem ser causado pelos remédios.

Outro manual observou que experimentos em animais mostraram que as pílulas para psicose reduzem a matéria cinzenta,[17:314] com uma referência.[235] Acrescentou que isso foi parcialmente confirmado em estudos humanos, mas que a literatura é ambígua. Um dos autores foi Merete Nordentoft, principal pesquisadora em esquizofrenia. É estranho que ela não tenha mencionado os estudos bem conhecidos de Nancy Andreasen.[63,64] Apesar do enorme potencial de viés em estudos de imagem cerebral (ver Capítulo 3), tais estudos e meta-análises realizados por pessoas que, a julgar por seus artigos, claramente não gostaram do que encontraram, mostraram convincentemente que as pílulas para psicose reduzem o cérebro.[63,236] Eles fazem isso de maneira dependente da dose[1,63] e também encolhem o cérebro em primatas, que não sofrem de psicose.[235] Em contraste, a gravidade da doença tem efeito mínimo ou nenhum.[63]

Não há evidências confiáveis de que a psicose per se possa danificar o cérebro,[237] e embora um grande estudo tenha afirmado isso,[64] ele não conseguiu separar os efeitos do tratamento de qualquer possível efeito da doença, o que os autores reconheceram. Um estudo que incluiu pacientes com psicose de primeiro episódio constatou que a exposição breve as pílulas para psicose poderia levar à redução da matéria cinzenta do cérebro, novamente sem relação com a gravidade da doença.[238]

Estudos de imagem sempre podem ser discutidos, mas se nos voltarmos para os danos extrapiramidais das pílulas para psicose, não há dúvida de que eles causam danos cerebrais permanentes. Esses danos consistem em vários movimentos involuntários, que incluem acatisia; distonia (espasmos musculares dolorosos); parkinsonismo (que inclui tremor, dificuldade em concluir pensamentos ou falar, músculos faciais rígidos e dificuldade para andar); e discinesia tardia (movimentos faciais, incluindo movimentos de sucção ou mastigação da boca, protrusão da língua, piscar os olhos com frequência e incapacidade de sentar ou deitar quieto, com movimentos constantes dos membros).[11] Os pacientes com discinesia tardia têm taxas de mortalidade mais altas e esse dano está relacionado à dose.[1]

Um dos manuais observou que a discinesia tardia é frequentemente reversível.[19:286] Isso está incorreto[7,135] e foi contradito por outro manual que falava sobre distúrbios do movimento irreversíveis.[17:314]

Entre os danos das pílulas para psicose, os livros mencionaram distonia, discinesia, acatisia, parkinsonismo, síndrome neuroléptica maligna, disfunção sexual, disfunção erétil, ejaculação retrógrada, diminuição da libido, danos cardiometabólicos, influência no ritmo cardíaco, prolongamento do QT, torsades de pointes, taquicardia ventricular letal, hipotensão ortostática, taquicardia sinusal, síndrome metabólica, diabetes tipo 2, estimulação do centro do apetite com aumento de peso, aumento de prolactina, galactorreia, ginecomastia, amenorreia, osteoporose, possivelmente câncer de mama, estenose nasal, influência na memória e cognição, boca seca, constipação, retenção urinária e visão turva. [16:563,18:235,19:236,19:278] Uma omissão notável na maioria das listas de danos nos livros didáticos foi a discinesia tardia.

O risco de desenvolver síndrome neuroléptica maligna foi largamente ignorado por muitos anos, mas estima-se que 100.000 americanos morreram dela em um período de 20 anos e que 80.000 poderiam ter sobrevivido se os médicos tivessem sido alertados contra ela.[1:208]

Um manual didático alertou para o prolongamento do QTc, mas somente se os pacientes receberem outras drogas com tais efeitos.[17:656] Este conselho é fatal. Algumas pessoas têm um intervalo QTc longo naturalmente e podem morrer repentinamente se forem tratadas com uma droga para psicose como o único remédio.

Somos informados de que a clozapina e a olanzapina têm o maior risco de obesidade, diabetes e doenças cardiovasculares,[17:655] o que torna difícil entender por que essas drogas são tão populares. Outro manual mencionou que meta-análises mostraram que o maior risco de danos metabólicos é visto com clozapina e olanzapina, e que os pacientes com olanzapina ganham mais peso do que aqueles com outros remédios.[16:564]

Apenas um manual didático informou honestamente sobre os danos graves.[16:563] Ele observou que os danos extrapiramidais são dependentes da dose, e que a discinesia tardia é um dano grave, que pode ser irreversível e tem uma incidência de cerca de 5% ao ano com drogas de primeira geração, mas também é vista com drogas de segunda geração. Ele mencionou que a acatisia, em casos graves, pode contribuir para aumentar o risco de suicídio e pode ser confundida com agitação psicomotora como resultado da condição psicótica, levando a um aumento da dose, piorando a situação. Foi dito que a acatisia ocorre em 25% dos pacientes com drogas de primeira geração e em menor grau com drogas de segunda geração.

Nem mesmo este livro conseguiu deixar de minimizar semanticamente os problemas. A acatisia não contribui para aumentar o risco de suicídio, ela causa um aumento do risco. Nenhum outro fator na cadeia causal é necessário para que os suicídios aconteçam.[7]

Dois livros foram perigosamente desonestos.[17:654,18:235] Eles afirmaram que as drogas de primeira geração causam danos extrapiramidais, que podem ser irreversíveis no caso da discinesia tardia,[17:655] e que esses danos podem ser evitados usando drogas de segunda geração.[17:657] Como já observado, essa mensagem de marketing é falsa; as drogas mais novas não são melhores nesse aspecto.[239] Além disso, quando os autores afirmaram que alguns pacientes com acatisia consideram suicídio, eles não mencionaram que isso também se aplica as drogas de segunda geração. Um terceiro livro que mencionou a acatisia[19:286] deixou de observar que é um dano perigoso que aumenta o risco de suicídio e violência.[7]

Existem vídeos de crianças e adultos com acatisia e discinesia tardia que mostram o quão horríveis esses danos cerebrais podem ser.[240] Levou 20 anos para a psiquiatria reconhecer a discinesia tardia como uma doença iatrogênica,[7:163] mesmo sendo um dos piores danos dos remédios para psicose e também um dos mais comuns, afetando cerca de 4-5% dos pacientes por ano.[241] Em 1984, Paul Leber da FDA extrapolou os dados e concluiu que, ao longo da vida, todos os pacientes podem desenvolver discinesia tardia.[11:368] Três anos depois, o presidente da Associação Psiquiátrica Americana disse em um programa da Oprah Winfrey que a discinesia tardia não era um problema sério ou frequente.[242]

Os neurologistas são muito melhores em identificar a discinesia tardia do que os psiquiatras e o mesmo se aplica aos pesquisadores. Entre 58 pacientes consecutivamente admitidos com psicose aguda, dos quais 48 foram tratados por pelo menos uma semana com drogas para psicose, os pesquisadores encontraram 10 pacientes com discinesia tardia, mas os psiquiatras fizeram esse diagnóstico em apenas um deles.[243] O diagnóstico de acatisia também é frequentemente perdido ou interpretado de forma errada, especialmente quando os sintomas envolvem os membros em vez do rosto. No mesmo estudo, os pesquisadores diagnosticaram acatisia em 27 pacientes, os clínicos apenas em 7.[243] Em uma amostra comunitária de pacientes com esquizofrenia, a prevalência foi de 19%.[244]

Existem várias razões pelas quais a acatisia pode passar despercebida.[245] Seus sintomas se assemelham e muitas vezes se sobrepõem aos de outros distúrbios psiquiátricos, como mania, psicose, depressão agitada e TDAH. Além disso, a acatisia frequentemente ocorre simultaneamente com, e é mascarada por, a acinesia, um dano extrapiramidal comum dos remédios para psicose. Esses pacientes podem ter a sensação interna de inquietação e vontade de se mover, mas não exibem movimentos característicos dos membros e permanecem parados, em um estado de agitação interna. Quando a acatisia é confundida com ansiedade piorada, psicose ou depressão agitada, o clínico geralmente aumenta a dose do agente ofensivo, levando a mais danos.

Ainda menos reconhecida do que a acatisia é a acatisia tardia,[11:70] que tem início tardio, geralmente mais de três meses após a medicação ou mudança de dose. Geralmente está associada à discinesia tardia. Um jornalista descreveu sua experiência assim: “E então, um dia, cerca de quatro meses depois de reduzir minha dose [de um remédio para depressão], acordei tremendo, com uma sensação de iminente desastre como nunca havia experimentado.”[246]

A acinesia é frequentemente ignorada ou diagnosticada erroneamente como depressão. Portanto, a acinesia deve ser considerada no diagnóstico diferencial de qualquer paciente que esteja tomando remédios para psicose e que se torne desmotivado, deprimido, letárgico ou retardado. Formas graves de acinesia tendem a ser ignoradas com mais frequência do que casos leves, o que pode ser porque pacientes gravemente afetados reclamam menos de seus sintomas.

O que estava completamente ausente nos livros eram os danos que os psiquiatras infligem aos seus pacientes que não são danos causados por drogas. Não havia nada sobre a falta de esperança que ocorre quando os psiquiatras estigmatizam seus pacientes ao dizer que eles têm esquizofrenia e afirmam que é uma doença para a vida toda e que, às vezes, requer tratamento vitalício com pílulas para psicose, e os submetem a tratamento forçado com essas drogas.

Compreensivelmente, isso aumenta consideravelmente o risco de suicídio.[7] Um estudo de registro dinamarquês de 2014 com 2.429 suicídios mostrou que quanto mais próximo o contato com a equipe psiquiátrica – o que frequentemente envolve tratamento forçado – pior é o desfecho.[247] Em comparação com pessoas que não haviam recebido nenhum tratamento psiquiátrico no ano anterior, a razão de taxa ajustada para suicídio foi de 6 para pessoas que recebiam apenas medicamentos psiquiátricos, 8 para pessoas com contato ambulatorial psiquiátrico, 28 para pessoas com contatos no pronto-socorro psiquiátrico e 44 para pessoas que haviam sido internadas em um hospital psiquiátrico. Pacientes internados no hospital naturalmente seriam esperados ter o maior risco de suicídio porque estão mais doentes do que outros (confusão por indicação), mas os resultados foram robustos e a maioria dos possíveis viéses no estudo foram conservadores, como por exemplo, favorecia a hipótese nula de não haver relação.

Um editorial complementar observou que há pouca dúvida de que o suicídio está relacionado tanto ao estigma quanto ao trauma e que é totalmente plausível que o estigma e o trauma inerentes ao tratamento psiquiátrico – especialmente se involuntário – possam causar suicídio.[248] Os editorialistas acreditavam que algumas pessoas que cometem suicídio durante ou após uma internação hospitalar o fazem por causa das condições inerentes à hospitalização.

Um manual didático mencionou 10 fatores de risco para suicídio,[18:131] mas a internação em um hospital psiquiátrico não estava entre eles, embora pareça ser o maior risco de todos.

Lítio e antiepilépticos

Em geral, as informações sobre lítio nos manuais didáticos estavam incorretas (como explicarei mais detalhadamente no Capítulo 8). Um deles afirmava que o lítio tem um efeito profilático nos transtornos esquizoafetivos e pode atenuar a agressividade,[18:241] mas não citou referência. No entanto, uma revisão sistemática de 22 ensaios clínicos de lítio para esquizofrenia não encontrou evidências confiáveis de que o lítio funcionasse.[249] Os ensaios geralmente eram pequenos (com uma média de apenas 35 pacientes), de curta duração, relatados de forma incompleta e insuficientemente cegados, e um efeito positivo desapareceu quando estudos não duplo-cegos ou aqueles com alta taxa de desistência foram excluídos. Atualizei a pesquisa em abril de 2022 pesquisando por lítio schizo* no campo do título no PubMed e não encontrei ensaios clínicos adicionais.

Pacientes psicóticos frequentemente são tratados com antiepilépticos. Pelo que pude ver, lítio e antiepilépticos (veja abaixo, sob transtorno bipolar) não devem ser usados em pacientes com psicose.

Benzodiazepínicos

Um manual didático mencionou que a agitação aumenta o risco de suicídio e comportamento agressivo em relação à equipe e outros pacientes, e que isso pode ser devido à intoxicação com substâncias psicoativas, abstinências ou danos causados por drogas psiquiátricas.[16:84]

Esses autores recomendaram intervenções não farmacológicas para condições agitadas agudas, como por exemplo, técnicas de desescalada,[16:85] e disseram que as drogas para psicose são melhores que os benzodiazepínicos se for necessário o uso de medicamentos. No mesmo livro, outro autor disse que os benzodiazepínicos são importantes em uma fase agitada aguda da psicose,[16:577] e que o efeito é equivalente ao das pílulas para psicose.[16:560]

A indústria de drogas psiquiátricas certamente evitou comparar suas pílulas para psicose, que são altamente caras, com os benzodiazepínicos, que são fora de patente e que podem ser adquiridos quase que de graça, e os psiquiatras falharam em cumprir sua responsabilidade profissional ao negligenciar realizar tais ensaios eles mesmos.

Em 1989, 35 anos após a clorpromazina chegar ao mercado, apenas dois ensaios clínicos haviam comparado os dois tipos de drogas, e eles produziram melhorias semelhantes.[5:200]

Em 2012, houve 14 ensaios clínicos de comparação direta, resumidos em uma revisão Cochrane.[165] A sedação desejada ocorreu significativamente mais rapidamente com um benzodiazepínico do que com uma pílula para psicose, mas os autores prestaram homenagem à indústria das drogas ao fornecer uma conclusão que não concordava com seus resultados: “Atualmente não há evidências convincentes para confirmar ou refutar a prática de administrar benzodiazepínicos como monoterapia.”

Certamente havia, e devemos usar benzodiazepínicos se a sedação for necessária na fase aguda. Os psiquiatras que realizaram a revisão Cochrane observaram que os ensaios clínicos que revisaram eram de baixa qualidade, mas que eram a melhor evidência que temos.

Quando dou palestras para pacientes psiquiátricos, muitas vezes pergunto qual droga eles prefeririam usar da próxima vez que fossem internados agudamente e precisassem de algo para acalmá-los. Todos eles preferiram um benzodiazepínico. Portanto, é antiético obrigá-los a tomar uma pílula para psicose ou dar-lhes uma injeção involuntária com uma droga para psicose, mas essa é a prática padrão.

Como a psicose aguda tende a desaparecer se não for tratada, os psiquiatras devem ser muito relutantes em usar drogas, exceto um benzodiazepínico por alguns dias.

Um psiquiatra islandês me disse que quando trabalhava em um hospital psiquiátrico de Londres, ele e seus colegas esperavam em média cerca de duas semanas antes de começar a medicação para psicose em pessoas recém-admitidas. A maioria das pessoas optava por tomar alguma medicação, mas muitas vezes em doses muito pequenas, então é muito possível que fosse o respeito, o tempo e o abrigo que ajudassem os pacientes, e não as “doses sub-terapêuticas de tratamento”.

O psiquiatra Simon Wilkinson, do Hospital Universitário de Akershus, na Noruega, me disse que eles não têm um regime para tranquilização rápida e nunca precisaram de um.

É tudo uma questão da cultura predominante. Os psiquiatras poderiam fazer muito melhor ao encontrar os pacientes onde eles estão enquanto reúnem todo o respeito e empatia que podem, sem medicar à força.

Psicoterapia e cuidado

Como observado acima, a psicoterapia geralmente não era uma opção de tratamento independente, mas um complemento aos comprimidos.

Este é um erro grave. Os autores da revisão Cochrane, que apontaram que não temos evidências de que as pílulas para psicose em um episódio agudo precoce de esquizofrenia sejam eficazes,[154] incluíram um ensaio clínico randomizado de Loren Mosher em sua revisão.[250] Mosher comparou 55 pacientes no hospital, todos os quais receberam drogas para psicose, com 45 pacientes tratados em um ambiente não hospitalar onde 67% não receberam drogas para psicose, e os resultados após seis semanas foram virtualmente os mesmos.

Mosher não era contra o uso de drogas para psicose.[7:168] Ele abriu uma casa Soteria de 12 quartos em 1971, pois queria tratar pessoas psicóticas agudas de uma maneira humanística, com empatia e cuidado. Não havia trancas nas portas e a ideia era tratar as pessoas com respeito.

Seus funcionários não eram profissionais de saúde mental, mas pessoas que tinham habilidades sociais e empatia e que ouviam as histórias dos pacientes, que muitas vezes revelavam traumas com abuso e falha social extrema.[251] Assim, Mosher abriu caminho para a abordagem do Diálogo Aberto (veja o Capítulo 7, Parte Três).

Os bons resultados obtidos por Mosher, também após o ensaio clínico randomizado, ao evitar o uso de drogas para psicose foram muito ameaçadores para outros psiquiatras.[1] Seus pacientes tiveram menos recaídas e funcionaram melhor na sociedade em termos de manter um emprego e frequentar a escola do que aqueles que estavam medicados. Foi ofensivo para os psiquiatras sugerir que pessoas comuns poderiam ajudar pessoas loucas mais do que psiquiatras com suas drogas. Mas Mosher era o chefe do Centro de Estudos da Esquizofrenia no Instituto Nacional de Saúde Mental dos EUA (NIMH), então não era óbvio como ele poderia ser impedido.

O comitê clínico do projeto do NIMH levantou dúvidas sobre o rigor científico da equipe de pesquisa de Mosher e reduziu o financiamento para o  seu projeto de Mosher a um nível tão baixo que foi um beijo da morte financeira.[1] Este é o método padrão usado na saúde por aqueles que detêm o poder quando os resultados de um projeto ameaçam o status quo e sua imagem cuidadosamente lapidada. Mosher tentou contornar o obstáculo solicitando financiamento da divisão do NIMH que lidava com serviços sociais e o comitê de revisão por pares estava muito entusiasmado. No entanto, o comitê de projetos clínicos terminou seu projeto imediatamente, pois ele ameaçava a credibilidade da psiquiatria acadêmica com seu modelo médico de terapia com drogas. Isso foi feito com comentários depreciativos sobre as “falhas graves” postuladas no estudo e com o golpe fatal de que mais financiamento só seria disponibilizado se Mosher se afastasse para que o comitê pudesse redesenhar o projeto com outro pesquisador.

Esta é uma das manobras mais feias que já vi serem usadas contra um investigador de alto escalão que era um tesouro para os pacientes, e um Mosher amargo disse 25 anos depois: “Se estávamos obtendo resultados tão bons, então eu não devo ser um cientista honesto.”[1:224] O NIMH fez de Mosher um pária e o expulsou do NIMH três anos depois. Outros nos Estados Unidos que questionaram os méritos das pílulas para psicose aprenderam rapidamente que isso não avançaria em suas carreiras, e o NIMH não alocou mais fundos para esse tipo de projeto.[5] Muitos anos depois, o primeiro autor da revisão Cochrane analisou os dados de acompanhamento do estudo de Mosher e descobriu que eles eram ainda mais positivos do que o que Mosher havia publicado.[1:225]

A psicoterapia para esquizofrenia parece ser custo-efetiva. De acordo com uma diretriz do NICE (The National Institute for Health and Care Excellence, em tradução livre seria Instituto Nacional para Excelência em Saúde e Cuidados) de 2012, uma revisão sistemática da evidência econômica mostrou que a terapia cognitivo-comportamental melhorou os resultados clínicos sem custo adicional e a modelagem econômica sugeriu que isso poderia resultar em economia de custos devido a menos internações hospitalares.[252]

Foi somente em 2014 que o primeiro ensaio clínico de psicoterapia em pessoas com esquizofrenia que não estavam usando drogas foi publicado.[253] Todos os pacientes haviam recusado ser tratados com drogas. O tamanho do efeito foi de 0,46 em comparação com o tratamento usual, aproximadamente o mesmo que o visto em ensaios clínicos seriamente falhos comparando pílulas para psicose com placebo, que é uma mediana de 0,44.[254]

Isso significa que o efeito da psicoterapia provavelmente é melhor do que o efeito das pílulas.

O psiquiatra americano Peter Breggin descreveu o efeito notável que a empatia, o cuidado e a compreensão podem ter em pacientes com esquizofrenia grave.[135] Como calouro universitário de 18 anos sem treinamento em saúde mental, ele se voluntariou em um hospital psiquiátrico estadual e se aproximou dos pacientes como gostaria que fosse abordado, com cuidado e preocupação e com o desejo de conhecer os pacientes e descobrir o que eles precisavam e queriam.

Ele ficou imediatamente horrorizado com o quanto os pacientes eram abusados e humilhados pela equipe autoritária e às vezes violenta e pelos tratamentos que causavam danos cerebrais que eles usavam, incluindo terapia de coma por insulina, eletrochoque e lobotomia, enquanto ele era informado de que esses tratamentos “matavam células cerebrais ruins”, o que ele achava improvável, é claro.

Breggin desenvolveu um programa de auxílio no qual 15 estudantes foram designados como pacientes entre aqueles que eram considerados pacientes crônicos e sem solução – esquizofrênicos esgotados – que ainda não haviam sido subjugados pelo clorpromazina. Eles foram capazes de ajudar 11 dos 15 pacientes a retornar para casa ou a encontrar colocações melhores na comunidade. Durante os próximos um a dois anos, apenas três pacientes retornaram ao hospital.

O programa de Breggin chamou a atenção nacional e foi elogiado como uma inovação importante pela Comissão Conjunta sobre Saúde e Doença Mental em 1961. Este foi o último documento psicossocialmente orientado a ser emitido pelo NIMH. Desde então, o foco tem sido em esforços cooperativos com a indústria farmacêutica para promover explicações bioquímicas e de drogas.

Os psiquiatras descobriram recentemente que, se conversarem mais com seus pacientes com esquizofrenia, haverá menos necessidade de tratamento forçado. Merete Nordentoft transmitiu essa experiência positiva em um debate na TV comigo. Eu me perguntei por que isso era algo que os psiquiatras deveriam descobrir. Eles não deveriam ter sabido disso desde o início?

Para ver a lista de todas as referências citadas, clique aqui.

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Mad in Brasil (Texto original do site Mad in America ) hospeda blogs de um grupo diversificado de escritores. Essas postagens são projetadas para servir como um fórum público para uma discussão – em termos gerais – da psiquiatria e seus tratamentos. As opiniões expressas são próprias dos escritores.

 


Tradução de Leticia Paladino : Graduada em Psicologia pela UERJ, doutoranda em Saúde Pública pela ENSP/Fiocruz, mestre em Saúde Pública pela ENSP/Fiocruz e especialista em Saúde Mental e Atenção Psicossocial pela ENSP/Fiocruz.  Pesquisadora e Colaboradora do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial (LAPS/ENSP/Fiocruz).


 

Estratégias culturais em Manguinhos

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A participação em projetos de arte e cultura ou em experiências voltadas para profissionalização, trabalho, economia solidária ou a participação social se apresenta como estratégia fundamental para o suporte social e para a produção de vida (e saúde) em comunidade.

 

Assim, o  Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial (LAPS/ENSP/Fiocruz), a Fundação Getúlio Vargas (FGV) e a Universidade Queen Mary (Londres) fizeram um levantamento on-line que buscou mapear iniciativas voltadas para arte e cultura desenvolvidas em Manguinhos (RJ) durante os anos de 2021 e 2022. As iniciativas culturais se constituem como lugares de memória devido a sua importância para o desenvolvimento e para a manutenção de tradições locais, para o desenvolvimento de pertencimento comunitário e para o desenvolvimento de manifestações culturais que abrem espaço para discussões sobre gênero, questões étnico-raciais, sexualidade e geracionais, assim como para o cultivo de redes de solidariedade e de apoio mútuo.

No dia 5 de outubro de 2022, na Biblioteca Parque de Manguinhos, um evento marca o lançamento do Catálogo “Estratégias culturais em Manguinhos: Olhares sobre o cuidado em saúde mental e o protagonismo de moradores de favelas“, organizado por Ana Paula Guljor, Silvia Monnerat, Paul Heritage e Paulo Amarante.

Clique abaixo para acessar o catálogo em português ou inglês:

→ Português: https://cpdoc.fgv.br/sites/default/files/pesquisa-conhecimento/2022-10/catalogo_26desetembro_0.pdf

→ Inglês: https://cpdoc.fgv.br/sites/default/files/pesquisa-conhecimento/2022-10/Cultural_Strategies.pdf 

 

A Experiência dos Sobreviventes da Psiquiatria no Brasil

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Eu passei anos da minha vida pensando que transtornos mentais eram doenças como quaisquer outras, e que essa ideia era inquestionável por qualquer pessoa que partisse de um ponto de vista científico. Eu mesma tinha um diagnóstico psiquiátrico, que fazia todo o sentido para mim. Foi em uma palestra em um evento da semana de luta antimanicomial, que eu vi que estava errada. Nela, eu descobri que já há muito tempo diversos acadêmicos, profissionais da área da saúde e ex-pacientes psiquiátricos apontam para a falta de provas cientificas que indiquem que os fenômenos que chamamos de transtornos mentais tenham qualquer base biológica, e denunciam as consequências danosas dos diversos tipos de intervenções psiquiátricas. Desde então, eu me tornei uma ex-paciente crítica da psiquiatria, passando a me ver como sobrevivente ao entender que havia sofrido várias violências durante as internações psiquiátricas as quais fui submetida, bem como desenvolvido diversos problemas de saúde por ter tomado drogas psiquiátricas desde os 16 anos.

Eu estudei sobre as substâncias que eu tomava através do site “The Withdrawal Project”,
criado pela sobrevivente norte-americana Laura Delano. Esse site conta também com uma
plataforma chamada “The Withdrawal Project Connect”, que permite que pessoas lidando com efeitos físicos ou psicológicos desagradáveis e que desejem parar ou diminuir o uso de drogas psiquiátricas possam conversar e trocar estratégias para lidar com as dificuldades próprias desse processo, que pesa e muito em um corpo que se adaptou às drogas. E em 2022, duas sobreviventes brasileiras decidiram fazer um grupo de WhatsApp inspirado nessa iniciativa, para que também tivéssemos esse espaço de trocas em português. Essa foi a primeira vez, até onde sabemos, que sobreviventes da psiquiatria brasileiros se reuniram.

No Brasil, não temos historicamente movimentos de sobreviventes, apenas movimentos de
usuários da RAPS (Rede de Atenção Psicossocial). O que diferencia os movimentos de usuários brasileiros dos movimentos de sobreviventes que existem ao redor do mundo é que, enquanto usuários entendem que tem uma doença que precisa de tratamento e reivindicam que este tratamento seja humanizado, sobreviventes da psiquiatria entendem que não são doentes e que colocar suas questões, que não são de ordem biológica, como objetos da medicina, é algo inerentemente desumano.

Eu logo me juntei ao grupo, que permite que mulheres em retirada ou pensando sobre
retirada das drogas troquem informações sobre a substância utilizada e sobre como costuma ser sua redução, além de estratégias para lidar com sintomas difíceis que surgem no processo. Se incentiva a busca por um profissional que acompanhe corretamente o processo de redução e a ideia não é oferecer conselhos médicos, e sim fornecer apoio. Com o tempo, o grupo também virou espaço de trocas sobre experiências adversas com a psiquiatria de forma geral.

Existem várias dificuldades comuns. Uma delas é a de que psiquiatras não costumam
reconhecer problemas causados pelas drogas, mesmo quando estes constam na própria bula dos medicamentos, ou quando são sintomas de acatisia, síndrome que o próprio DSM já reconhece como sendo causada por drogas psiquiátricas. No desespero para se livrar dos
sintomas, muitos pacientes tentam parar a medicação de uma só vez, desenvolvendo sintomas de abstinência e sendo ainda culpabilizados por estes, ouvindo de psiquiatras que aquilo seria “a doença voltando”, mesmo quando os sintomas nada tem a ver com aqueles de qualquer transtorno. Mesmo quando encontram um profissional que está disposto a retirar as drogas, este normalmente desconhece a existência da forma segura de fazê-lo, que é a de retirar no máximo 10% da dose em um período de no mínimo 3 semanas (Breggin, 2012).

Outro desafio é o de encontrar psicólogos que tenham qualquer leitura sobre danos causados por drogas psiquiátricas e que não interpretem a opção de não as utilizar como “resistência ao tratamento”. Relatos de violências praticadas por profissionais e de experiências adversas com drogas psiquiátricas são invalidados. Mesmo os profissionais que se dizem críticos da psiquiatria, só são críticos até o paciente chegar em um “tema de psiquiatra”, como suicídio, automutilação ou audição de vozes. Quando os pacientes tentam trazer algum desses temas para o psicólogo, na tentativa de elaborá-los, ouvem de volta “Você está tomando seus remédios?” ou “Você contou isso para o seu psiquiatra?”, dando a entender que essas são questões a serem apenas medicadas, não verbalizadas, e culpabilizando a pessoa pelo que ela vive: se ela sente aquilo ainda, é porque deve estar fazendo algo errado, não seguindo o tratamento. Isto não condiz com a realidade, já que muitos pacientes tomam medicações há anos e sentem que só pioram.

Dessa forma, muitos sobreviventes que desejam trabalhar suas questões, desistem da
psicoterapia. No meu caso, só voltei a terapia quando vi uma psicóloga postando sobre o
movimento de sobreviventes da psiquiatria no Instagram, porque eu queria um profissional
que acreditasse em mim. Assim, eu pude elaborar anos de traumas causados por internações psiquiátricas e violências sofridas por profissionais de saúde. Ter essas violências vistas como o que são, violências, faz toda a diferença. Um psicólogo reconhecer que outro profissional praticou uma violência é raridade, já que eles normalmente assumem de antemão que o especialista, detentor do saber, estava certo, e a pessoa diagnosticada, irracional, errada.

Nos CAPS, infelizmente a situação muitas vezes é a mesma do setor privado. Além de não
saberem fazer a retirada medicamentosa e repetirem o mesmo discurso culpabilizante, os
profissionais coagem usuários a fazer uso de drogas psiquiátricas, seja condicionando sua
participação em outras atividades do CAPS ao uso das drogas, ou fazendo ameaças de
internação involuntária aos que não querem se medicar.

Um ponto que fica claro nos relatos de sobreviventes é que o sofrimento e as reações
causadas por violências física, sexual ou psicológica, comuns na vida das mulheres, são
patologizados. É possível perceber isso em casos em que a raiva de uma sobrevivente é lida como “inadequada” porque incomoda o psiquiatra e a família abusadora, por exemplo. O foco das intervenções, por sua vez, fica todo no comportamento das vítimas. Inclusive, relatos de violência apareceram tanto no nosso grupo que esse foi um dos motivos para a votação de que nele só entrariam mulheres. Muitas relataram não se sentir confortáveis com o risco de homens invalidarem suas histórias, coisa que já experienciaram antes, inclusive com profissionais da saúde. Outro ponto interessante é que na nossa página do Instagram também chegam mais mulheres, muitas deixando claro que são feministas. As feministas já estão acostumadas com instituições que se dizem “neutras”, mas na verdade servem aos interesses do patriarcado.

Mas nem toda sobrevivente foi patologizada por ser vítima de violências. Algumas relatam ter vivido um período particularmente difícil ou estressante, procurado um psiquiatra e acabado imensamente piores do que chegaram no consultório, com sintomas que nunca haviam vivido antes. O que une os sobreviventes é a busca por repensar aquilo que foi colocado para eles pela psiquiatria, e em muitos casos, a vivência de um processo de desmedicalizar o próprio sofrimento, através da reflexão crítica sobre a própria história. Quando entendemos que nossas questões não são causadas por uma doença, abrimos a porta para construir novos sentidos. Histórias que entes eram “tenho tristeza profunda porque tenho depressão” podem virar “tenho tristeza profunda porque de fato eu vivi uma situação muito triste”. A experiência de troca entre mulheres que passaram pela mesma situação ou simplesmente se mostram disponíveis e solidárias a dor uma da outra, mostra que não é necessário um diagnóstico médico para que um sofrimento seja reconhecido e validado, nem para que ocorram trocas entre pessoas com o mesmo sofrimento, justificativas muito usadas para defender os diagnósticos psiquiátricos.

Hoje, esse grupo já atingiu sua capacidade máxima, com 15 participantes, devido às limitações do formato WhatsApp e da capacidade das moderadoras, que cuidam para que nenhuma conduta perigosa, como a retirada abrupta de qualquer droga, seja incentivada. Incentivamos que novos grupos de sobreviventes se organizem, para tratar do tema de drogas psiquiátricas ou de outros temas. Estamos abertas para trocas, envio de relatos e construção de projetos no Instagram @sobreviventesdapsiquiatria.

REFERÊNCIAS:

BREGGIN, Peter. Psychiatric Drug Withdrawal: A Guide for Prescribers, Therapists, Patients and Their Families. Springer Publishing Company, 2012.

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Nota do Editor: Todos os artigos, matérias, notícias e traduções publicadas no Mad in Brasil são previamente autorizadas e revisadas pelo nosso editor-chefe, Paulo Amarante. 

Para Evoluir, a Psiquiatria Precisa Aprender a Desmedicar.

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Schizophrenia psychiatric disease and mental disorder as a psychiatry and psychology concept for human abnormal personality behavior and mood illness in a 3D illustration style.

Escute o paciente, ele lhe dirá o diagnóstico.A vontade de tomar remédios é, talvez, a maior característica a distinguir o homem dos outros animais.

William Osler ( 1849-1919 ), eminente médico canadense.

 

Após mais de trinta anos em pesquisas sem alcançar resultados satisfatórios sobre a etiologia cerebral do sofrimento psicológico, assistimos espantados à falta de esclarecimentos à população sobre esta situação. Uma das repercussões ainda presente é o engano instalado de que as medicações “corrigem” problemas cerebrais.1 E na esteira deste entendimento veio uma avalanche de consumo medicamentoso. O que foi prometido pelas Neurociências não foi entregue e pior, grande prejuízo foi introduzido através de crenças de difícil desconstrução.

As Neurociências anunciaram que o sofrimento humano iria ceder frente aos avanços da racionalidade e da ciência. Receberam tanto incentivo que a década ficou caracterizada como a Década do Cérebro.2 Uma parte significativa da Psiquiatria tentou colocar de lado suas compreensões morais, políticas, filosóficas, espirituais e do senso comum sobre os sofrimentos psicológicos, adotando o enquadramento tecnológico das Neurociências. Havia a ilusão de se explicar a mente através do cérebro.

Infelizmente no Brasil as discussões em torno do uso inadequado de medicações ainda é incipiente. Muitas pessoas recebem as medicações para sintomas que se relacionam a problemas emocionais e cronificam os mesmos por não terem assistência para resolver as questões de relevância em suas vidas. Por isso, motivei-me em contribuir com uma perspectiva de quem está trabalhando para clarear algumas confusões e tentar instruir na redução das medicações, dada a quantidade de pessoas tomando excesso de medicações, com claros sinais de danos e dependência das mesmas. Tenho esperança que este relato seja útil àqueles que estão experimentando semelhantes questionamentos e ainda não encontram pares para discutir o tema no país. Além disso, que saibam que existem profissionais já trabalhando com a mentalidade atualizada.

Esquizofrenia, transtorno mental como conceito de psiquiatria e psicologia em um estilo de ilustração 3D.

Por característica pessoal, desde que iniciei a carreira em Psiquiatria clínica de adultos, sempre questionei essa prática de “tranquilização” das pessoas via química. Adentrei sozinho na prática crítica do uso das medicações psiquiátricas, mas não sem dificuldades, pois recebi treinamento para aplicar a CID (Classificação Internacional das Doenças) cuja décima edição havia acabado de ser oficializada durante a residência e aprendemos que os remédios tinham indicações conforme a caracterização do quadro clínico descrito. No entanto, por perceber que todas as alterações mentais ocorrem em um contexto, dentro de relações humanas, e por constatar que os resultados são muitas vezes insatisfatórios com os remédios, alojou-se em minha mente uma desconfiança sobre a real utilidade das medicações para o tratamento de problemas mentais.

A observação mostrava que alguns casos pareciam se beneficiar no curto prazo, um tanto menor no médio prazo e poucos no longo. Havia algo de errado em manter medicações por longos períodos.3 Com tanta ênfase em “novas” drogas durante a Década do Cérebro, minhas desconfianças cederam parcialmente. Assim, prescrevi as medicações, mas com um fundo conflituoso, dividido entre as demandas para consumo das “novidades”, as indicações e a inespecificidade das medicações e seus fracos resultados, além das queixas dos efeitos adversos. Acreditei que estava conduzindo tratamentos corretamente conforme as “evidências” que os pesquisadores nos ofereciam, tendo em mente que nós, enquanto clínicos, prestamos reverência àqueles que verdadeiramente labutam para extrair através de árduas pesquisas algum conhecimento válido.

Devo admitir que meus conflitos só foram aumentando ao longo do tempo, muito em função das observações clínicas em contraste com as divulgações científicas que estavam disponíveis na época. Estas provaram-se bastante problemáticas diante de leituras mais rigorosas.4 Descobri, a duras penas, que as medicações não se aplicavam de acordo com o discurso prevalente de que são tratamento específico de distúrbios mentais. No máximo, podíamos pensar em termos de aproveitar um efeito da droga para ajudar no alívio e controle momentâneos. Durante um bom tempo, tudo se passou como se eu estivesse sem chão, sentindo-me perdido e confuso com as novas percepções. Precisei vivenciar vários erros e questionamentos para que eu pudesse direcionar-me para um caminho de mais clareza e ressignificar meu trabalho finalmente.

Por força de concisão, darei um salto para o presente. Gostaria de expor algumas considerações sobre a experiência clínica da redução de medicações e ao final deixar algumas questões para nossa reflexão. Hoje não há dúvidas sobre a necessidade de se rever profundamente o uso de medicações na Psiquiatria. Busco contribuir com a melhora da especialidade. Só vejo possível a reversão da prescrição indiscriminada de medicações a partir de nós de dentro da área, remodelando os paradigmas do cuidado.5 A literatura, para quem quiser, é vasta e parcialmente acessível e uma dose de coragem é preciso para iniciar o caminho.

Estratégias clínicas para a “desprescrição”
I – O encontro inicial

O processo clínico de retirada de medicações é complexo. No nosso meio envolve considerar que boa parte da população tem dificuldades para executar um pensamento abstrato e culturalmente expressamos muito as emoções através do corpo. Estes fatos relacionam-se com uma conexão forte com meios concretos de alívio. O vínculo a remédios é estabelecido na perspectiva do corpo que expressa sintomas. Temos sempre que ver caso a caso, mas de modo geral há enormes dificuldades de expressão emocional e reconhecimento de vulnerabilidades. Somados a isto, temos diversos problemas sociais, que corroboram para formação de inúmeros traumas e memórias indizíveis.

Assim, o primeiro encontro médico-paciente é muito carregado. Aquele que chega para uma consulta traz expectativas. Muitas vezes, condutas prévias levaram a entender que as medicações são necessárias. As crenças em torno de remédios são fortes e há que se ter calma para avaliá-las, pois um elemento fundamental que não se pode perder é a esperança. A esperança frustrada pelos remédios precisa ser construída sobre outra fundação.

Além disso, existe uma grande assimetria neste encontro. O médico vem de uma formação e “conhece” mais que o paciente sobre seu problema. Muitos pacientes sentem um grande alívio por ter alguém que “sabe” o que é seu problema. Ele(a) ignora que ninguém sabe mais sobre seus problemas do que ele(a) próprio(a). Se por um lado é mais confortável alguém que orienta tudo, por outro, perder o poder pessoal é um dano ao psiquismo e uma barreira para tomar decisões. Essa discrepância leva a um desequilíbrio no poder de escolhas e de expressão Há que se considerar que a recuperação passa por construir a autonomia e assumir estar no mundo com todas as dores e sabores, livre para escolher e colher o que a vida oferece, seja o que for. Nossa medicina é carregada pelo paternalismo nada bem vindo nessas horas. Neste momento, precisamos evitar atos que possam ter um teor coercitivo. Quantas vezes não ouvimos: você tem que tomar seus remédios direitinho! O contrário também não devemos fazer.

II – A apresentação de uma proposta

Passada a primeira fase de conhecimento da pessoa e suas crenças, podemos chegar juntos à conclusão que a redução/retirada das medicações é o projeto escolhido. Deixar claro porque fazer isto é fundamental. Dada a falta de estímulos e materiais encorajadores, cabe ao profissional uma atitude educacional e pacienciosa a respeito do processo de redução de remédios. Com o passar do tempo, creio que mais pessoas chegarão ao consultório já buscando ajuda para a retirada, mas por ora é algo que é apresentado como novidade aos pacientes. O informar vai construir uma base de confiança para se começar tal empreitada. É incrível constatar a facilidade com a qual as medicações entram na vida das pessoas, mas para sair há que se ter uma estratégia muito elaborada e demorada.

E em antecipação àqueles que perguntam “o que vai ser colocado no lugar das medicações? ”, destaco algumas possibilidades que podem religar o indivíduo consigo mesmo, promovendo uma maior conscientização e consequente apropriação de seus recursos próprios. A prática de atividades artísticas, como a dança, por exemplo, trazem

benefícios comprovados ao psiquismo.6 Seguindo esta linha do autoconhecimento, há muitas outras ferramentas a serem melhor estudadas e praticadas no campo da saúde mental.

Existem muitos aspectos a se considerar dentro dessa nova prática, impossíveis para se encampar neste texto. Os primeiros manuais para a chamada “desprescrição” já estão sendo publicados e neles há muitos detalhes do processo.7

III   –  A polifarmácia

 O mais frequente na clínica é encontrar pessoas tomando mais de um psicotrópico. As associações de medicações são utilizadas na medicina em geral de forma estratégica. No entanto, na Psiquiatria prevalece uma irracionalidade no uso de múltiplas drogas concomitantemente, sem uma base farmacológica clara que sustente as condutas. Quando tais drogas são colocadas para interagir entre si, a previsibilidade do que vai acontecer é de difícil elaboração. Os bancos de dados que temos disponíveis para consultar a respeito de interações farmacológicas são insuficientes para esclarecer sobre as consequências de várias drogas nas diversas combinações possíveis. E tem sido mais fácil para a maioria dos profissionais simplesmente ignorar este assunto devido às dificuldades de observação e caracterização das interações farmacológicas.

Uma das questões que aparece quando vamos planejar a redução ou retirada dessas medicações é com qual sequência de retirada devemos trabalhar. A experiência clínica mostra que não há uma regra fixa para essa sequência. No entanto, existem alguns pontos norteadores. Pode-se pensar a princípio sobre a segurança ou insegurança do paciente em relação às medicações e seguir conforme a confiança do paciente permite.

De modo geral, o plano precisa ser flexível. Isto quer dizer que se a primeira escolha, pensada como mais fácil, tornou-se difícil, é possível voltar atrás e iniciar outra. Importante é perceber o relacionamento do paciente com cada substância e no que ele imagina que ela está ajudando ou causando mal. Às vezes escolhemos aquela que seria menos útil, mas é aquela que o paciente está mais apegado e terá mais dificuldade para diminuir. Os caminhos podem ser retraçados tranquilamente, desde que já no início sejam anunciadas estas condições.

Todas as condutas nestas novas abordagens ainda estão sendo construídas e muito bom senso pode ser aplicado. Uma regra que tenho utilizado é não desistir facilmente. Parto da ideia que não é fácil reduzir medicações. Mapear a situação com calma é o que permitirá evitar mal estar e mal entendidos na trajetória. Outra regra em mente: sempre uma droga de cada vez. Isto permite foco e melhor observação de um fenômeno que tem aterrorizado muitas pessoas, qual seja, a síndrome de abstinência que comentaremos a seguir.

IV  – A síndrome da abstinência

Muitos pacientes já experimentaram sintomas de abstinência de psicotrópicos, mas não sabiam que era isto. Resolvem diminuir drasticamente ou parar as medicações por conta própria, seja porque estavam cansados de tomá-las ou porque sentiam efeitos adversos. O mal estar que elas sentem em seguida é na maioria das vezes interpretado como recaída e muitas pessoas, inclusive médicos dizem: “ Tá vendo, você não pode parar os remédios!”

Esta situação é responsável por induzir uma crença altamente danosa que associa a tomada das medicações para vida toda. Um equívoco que vem sendo alertado em diversos fóruns da saúde mental.8 Muito embora a distinção entre abstinência e recaída seja por vezes confusa, é fundamental para o bom andamento do trabalho que ela seja feita.

Sintomas de abstinência são frequentes e tendem a ser tanto mais intensos quanto maiores as doses e maior o tempo de uso. No entanto, as dificuldades podem incluir outras variáveis, inclusive é difícil afirmar sobre quais remédios são mais difíceis de abordar. Mas os benzodiazepínicos estão sempre entre os maiores desafios. Muitas vezes conseguimos evitar manifestações de abstinência se pudermos fracionar adequadamente as reduções. Quando há a forma líquida, trabalhar uma gota de cada vez é uma excelente opção.

Costuma dar certo. Infelizmente são poucas as medicações que possuem esta apresentação. O fracionamento de comprimidos, drágeas e cápsulas é um grande desafio na clínica das reduções de medicações. Há saídas para esta encruzilhada, mas a lógica destas reduções requer um espaço próprio e não fará parte deste texto.9

A abstinência pode ser uma barreira às progressões das reduções. Dependendo da intensidade, pode levar o paciente a desistir. Portanto, caso ela ocorra, um acompanhamento mais próximo permite observar melhor e colocar alternativas para alívio e, ao mesmo tempo, não perder os objetivos de vista. Nestas horas, o tempo é o tempo do paciente. Não há que se ter pressa. Um ponto crítico da redução pode levar meses para ser superado. No meio tempo, vai se estruturando confiança e esperança.

V – A política de redução de danos

Diante dos casos mais graves e crônicos, a estratégia das reduções recebe questionamentos no que se refere a seus limites. Sem dúvida, haverá casos, felizmente a minoria, que não poderão chegar a um ponto considerado ótimo. Por diversas razões, como por exemplo quadros delirantes intensos, com alto nível de agressividade, pessoas muito idosas que tomaram remédios por longos anos e possuem poucos recursos emocionais, dificilmente poderão deixar o auxílio calmante das medicações. Mesmo síndromes ansiosas crônicas, muito arraigadas no funcionamento psicológico, com fortes sintomas físicos, precisarão de um efeito químico para equilibrar a vida. Em todos esses casos, dentre outros, cabe a política de redução de danos.

Assim, pode-se usar de preferência uma única droga em que haja alívio e adaptação na menor dose possível. Muitas vezes um ajuste de dose pode representar uma grande ajuda na prevenção/redução de alguns danos. Nesses casos, o esclarecimento, o apoio e a negociação para um plano terapêutico é o caminho para evitar mudanças de conduta quando houver flutuações de sintomas inerentes às pessoas e ao frequente processo de tolerância às drogas com o uso prolongado. Na prática, saber reduzir danos pode ser uma conduta valiosa.

VI – Conclusão

Certamente o universo de coisas a considerar é vasto e este texto nada mais pretende do que chamar a atenção para alguns pontos e estimular as discussões. Tenho convicção que no futuro os remédios serão melhor utilizados nas situações que forem necessários. Por ora, a balança está muito desequilibrada para o lado do uso irracional e abusivo, influenciada pela falta de esclarecimentos em vários níveis. A grande maioria das pessoas que toma medicações psicotrópicas não deveria estar consumindo essas drogas, principalmente as crianças e os adolescentes. Há uma responsabilidade enorme em proteger as pessoas nessa faixa etária. Um tanto de gente sempre precisará de tranquilizantes. Por outro lado, sabendo distinguir as situações, teremos mais chances de alcançar propostas mais saudáveis para se trabalhar na área de Saúde Mental.

Mas como fazer isso? Como desfazer a confusão que se instalou na área de tratamentos medicamentosos? Como explicar à população as omissões e distorções das pesquisas em farmacologia clínica? Como formar melhor os novos profissionais? Como rever o modelo médico prevalente no momento de modo que ocorra uma real melhora da assistência? Como negociar todas as diferenças existentes na área de Saúde Mental?

Como estimular a participação da sociedade como um todo nos caminhos que devemos adotar?

Haveriam muitas outras perguntas e elas todas não são para nos desanimar. Elas existem para instigar a curiosidade e trazer à tona a vida. Tendo a vida ativa dentro de nós, sabemos que só podemos fazer um tanto de cada vez e isto talvez seja tudo e o melhor que possamos fazer. Assim, a esperança continua…

 

 


1 Uma recente revisão sistemática feita por Joanna Moncrieff et al mostrou várias inconsistências nas teorias serotoninérgicas sobre a depressão. The serotonin theory of depression: a systematic umbrella review of the evidence, Molecular Psychiatry, July 2022.

2 Designação feita pelo ex-presidente norte-americano George H. W. Bush para expandir a consciência pública dos “benefícios” advindos das pesquisas sobre o cérebro (aspas do autor). Fonte: Wikipedia.

 3 Os trabalhos de Thomas J Raedler apresentam vários desses problemas. Ver, por exemplo,

Cardiovascular aspects of antipsychotics, Curr Opin Psychiatry, Nov; 23(6):574-81, 2010.

4 No site de Peter C. Gøtzsche Institute for Scientific Freedom encontramos análises detalhadas sobre os problemas das pesquisas.

5 Uma reflexão interessante está no artigo de Patrick Bracken e Philip Thomas, Postpsychiatry: a new direction for mental health, BMJ Vol 322 , 24 March 2001.

6 Ver as propostas de France Schott-Billmann em Quand la danse guérit, Le courrier du livre, 326 págs. 2012. Não podemos nos esquecer da pioneira Nise da Silveira (ver Imagens do Inconsciente, Editora Vozes, 280 págs 2015 e o significativo trabalho de Vitor Pordeus no Rio de Janeiro (ver Restaurando a Arte de Curar, Edições Nosso Conhecimento, 148 págs. 2023) entre tantos outros que trabalham com arteterapia.

7 Consultar M.Horowitz e D.M. Taylor The Maudsley Deprescribing Guidelines, 580 págs., Wiley-Blackwell, 1ª edição, 4 janeiro 2024.

8 Ver Thomas M. Laursen et al Excess Early Mortality in Schizophrenia Annual Review of Clinical Psychology, Vol. 10:425-448, 2014.

9 Ver os trabalhos do professor Peter C. Groot e Jim van Os na Holanda com os “tapering strips”.

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