Novos Caminhos na Medicina: A Experiência Brasileira do Receituário Poético

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“Considero a poesia como um dos componentes mais importantes da existência humana, não tanto como valor, mas como elemento funcional. Deveríamos receitar poesia como se
receitam vitaminas.”

A frase de Félix Guattari foi a inspiração para o Receituário Poético, projeto de extensão da
Disciplina de Medicina Social da Escola de Medicina Souza Marques, que conta com o apoio
da Liga de Humanidades, a LAHUM. O Receituário Poético é um acervo de poesias, frases,
músicas, vídeos, posts, cartuns etc. para inspirar e facilitar a conexão com a sua clientela.

O Projeto de Extensão Receituário Poético realiza reuniões com grupos de usuários do SUS
em unidades básicas de saúde (UBS), ademais, os alunos participantes e professores
conveniados são impulsionados a utilizarem os receituários oferecidos em ambientes de
média e alta complexidade hospitalar.

São ao todo 34 membros do grupo, que semanalmente se comunicam sobre novas ideias e
propõem locais os quais o momento de leitura conjunta dos receituário serão feitos. O último encontro foi realizado em uma UBS do Rio de Janeiro na comunidade da Rocinha. Previamente ao encontro promovido pelo Receituário Poético, os alunos ouviram a
coordenação de quatro profissionais da unidade, responsáveis pelo grupo de quinze mulheres. Analisou-se suas especificidades a fim da capacitação na escolha de materiais adequados para o ambiente de escuta.

A atividade envolveu uma seleção de poesias em forma de receituário médico, entregando às quinze participantes majoritariamente do nordeste, divididas em grupos junto aos graduandos. Supervisionado por professoras e assistentes sociais, observou-se que no momento de leitura, a arte em si, potencializou as relações interpessoais, dando engate a troca de experiências. Intrinsecamente ao decorrer da atividade, o predomínio em relatos na violação de direitos no domicílio, trabalho e serviços de saúde, ocasionando repercussão no estado físico e mental das que vivenciaram continuamente formas de negligências e violências. Ao final da atividade, o grupo inteiro se reuniu em uma roda, compartilhando as trocas de vivências ali relatadas. Questionadas sobre o que esperavam dos profissionais médicos, as usuárias relatavam que a falta do olhar e atenção integral é causa frequente de frustração durante os atendimentos médicos. Por fim, após exercícios de respiração e mãos dadas, estudantes, usuárias, professores e coordenadores, cantaram a canção “Maria Maria” de Milton Nascimento.

A experiência reconhece formas de ultrapassar a invisibilidade da mulheridade* periférica,
trazer reflexões que podem fortalecer o direito à escuta e dignidade através da poesia.
Garantir um olhar integral fora do eixo hegemônico biomédico, reconhecendo o projeto como potência de condutas e práticas éticas na formação dos alunos da faculdade de medicina.

A ampliação do olhar às vivências desse setor da sociedade dá ênfase ao direito à escuta do mesmo, quebrando estigmas de que para ser ouvido é unicamente dentro de serviços de saúde mental.

A partir da voz das moradoras, há um impacto visível na ampliação do olhar, escuta,
sensibilidade, criatividade e comunicação empática na formação universitária. O projeto se dá como uma estratégia potencializadora da humanização e relação médico-paciente,
construindo entre alunos de diversos períodos o respeito, tolerância e bons afetos aliado a
formação técnico-científica.

O caráter dinâmico e poético do método, permite a escuta ativa, protagonismo de usuárias e troca de afetos mediados por estudantes de medicina. Rompe-se a o rigor da tradicional
formação, a qual constantemente se coloca num local de distância e hierarquia, ratificando o lugar de saber/poder em relação a seus atendidos no Sistema Único de Saúde. A sensibilidade desse projeto de extensão resgata a liberdade e voz daqueles que outrora nunca tiveram a oportunidade, dando espaço a discussão para políticas que garantam direitos humanos, auxiliados pelo dever de cidadania praticados por cursos de saúde.

A intersetorialidade da obra, mostra a potência do cuidado coletivo de caráter libertário,
proporcionado por uma Escola de Medicina tradicional do Rio de Janeiro. É possível
enxergar novos caminhos para jovens psiquiatras brasileiros, que com aparatos fornecidos
pela formação médica, viabilizam relações éticas e reflexões em saúde mental.

Essa matéria é da escuta de histórias brasileiras femininas, pobres, nordestinas, que
conseguem tonificar a ética do futuro profissional de saúde a partir de suas sensíveis histórias, garantindo aos usuários, um melhor atendimento e olhar integral.

A Lei Maria da Penha em Cordel
A Lei Maria da Penha Está em pleno vigor
Não veio pra prender homem
Mas pra punir agressor
Pois em “mulher não se bate
Nem mesmo com uma flor”.

A violência doméstica
Tem sido uma grande vilã
E por ser contra a violência
Desta lei me tornei fã
Pra que a mulher de hoje
Não seja uma vítima amanhã.

Toda mulher tem direito
A viver sem violência
É verdade, está na lei.
Que tem muita eficiência
Pra punir o agressor
E à vítima, dar assistência (…)

Dizia o velho ditado
Que “ninguém mete a colher”.
Em briga de namorado
Ou de “marido e mulher”
Não metia… agora, mete!
Pois isso agora reflete
No mundo que a gente quer.

 

***

*Termo que tenta abarcar a diversidade de mulheres existentes e que se propõe a fugir de uma “mulher absoluta” que não existe.

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Acadêmica em Medicina na Faculdade de Medicina Souza Marques – atuou no Instituto Nacional de Infectologia Evandro Chagas (INI/Fiocruz), estagiária no Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial (LAPS/ENSP/Fiocruz).