Há desafios éticos, morais e legais em andamento em torno da prescrição e descontinuação de medicamentos antipsicóticos — desafios que um novo artigo sugere que podem ser abordados pela lente da injustiça epistêmica.
Publicado no Community Mental Health Journal, o artigo argumenta que a injustiça epistêmica é um conceito útil para entender situações em que clientes e profissionais de saúde mental discordam sobre a descontinuação ou manutenção de medicamentos antipsicóticos.
A autora principal, Helene Speyer, psiquiatra e professora associada da Universidade de Copenhague, argumenta que entender a descontinuação de antipsicóticos pela lente da injustiça epistêmica pode transformar a maneira como clínicos e pacientes navegam nas decisões sobre medicamentos. Mas a perspectiva de Speyer não é apenas acadêmica — é profundamente pessoal.
Sua experiência pessoal com antipsicóticos embasa sua crítica a um sistema que frequentemente privilegia a autoridade clínica sobre a voz do paciente. A perspectiva dupla de Speyer como profissional e alguém que “já passou por isso” dá um peso único ao seu apelo por mudança. Os autores escrevem:
“As decisões sobre o tratamento de longo prazo com medicamentos antipsicóticos continuam complexas e carregadas de emoção, especialmente com a prioridade atual sobre os direitos do paciente, autonomia e tomada de decisão compartilhada. Argumentamos aqui que o debate atual sobre os riscos e benefícios associados aos medicamentos antipsicóticos pode ser analisado proveitosamente através das lentes da injustiça epistêmica.”
“Concluindo, argumentamos que ambos os lados do debate sobre a descontinuação da medicação devem abordar as questões sobre a medicação com humildade epistêmica. Não há respostas certas ou erradas claras, e as pessoas devem ter a oportunidade de fazer suas próprias escolhas em seu caminho pessoal para a recuperação, seja envolvendo escolhas para arriscar uma recaída ou medicação de longo prazo.”
Helene Speyer, MD, PhD, is a consultant psychiatrist and associate professor in the Department of Medicine at the University of Copenhagen, Denmark. Her research centers on shared decision-making, antipsychotic treatment, and strategies for medication dose reduction.Helene Speyer, MD, PhD, is a consultant psychiatrist and associate professor in the Department of Medicine at the University of Copenhagen, Denmark. Her research centers on shared decision-making, antipsychotic treatment, and strategies for medication dose reduction.
Helene Speyer, MD, PhD, é uma psiquiatra consultora e professora associada no Departamento de Medicina da Universidade de Copenhague, Dinamarca. A sua investigação centra-se na tomada de decisões compartilhada, no tratamento antipsicótico e em estratégias de redução da dose de medicação.
O conceito de injustiça epistêmica de Miranda Fricker se refere ao tratamento inadequado de indivíduos como conhecedores ou transmissores de conhecimento. Na psiquiatria, isso é frequentemente visto em estereótipos prejudiciais de pessoas com psicose, como rotular aqueles com esquizofrenia como perigosos ou sem “insight”, o que leva à desconfiança em sua capacidade de fornecer conhecimento confiável e fidedigno.
A discussão se concentra em como a injustiça epistêmica se manifesta quando preconceitos ou estereótipos injustificados sobre psicose influenciam o processo de tomada de decisão em relação à continuação ou descontinuação da medicação antipsicótica, que frequentemente é uma tomada de decisão não compartilhada.
Os autores elaboram as duas principais categorias de injustiça epistêmica de Fricker — testemunhal e hermenêutica — para destacar como essas formas de injustiça prejudicam a voz e a autonomia do paciente no contexto da psicose e do gerenciamento de medicamentos.
Injustiça testemunhal, neste caso, é quando uma pessoa diagnosticada com esquizofrenia recebe menor credibilidade em relação à sua decisão de interromper a medicação devido a um estereótipo negativo de que o indivíduo tem falta de percepção. Historicamente, desacordos sobre diagnósticos ou planos de tratamento entre clínicos e pacientes eram rotulados como “falta de percepção”, um termo que desvaloriza as perspectivas dos pacientes e cria injustiça testemunhal.
Apesar das diretrizes recomendarem a adesão de longo prazo aos antipsicóticos, muitos indivíduos optam por parar de tomar seus medicamentos devido aos efeitos colaterais e da percepção dos riscos. Os profissionais de saúde, no entanto, muitas vezes relutam em apoiar essa decisão, vendo-a como algo fora de seu julgamento clínico, deixando os pacientes navegarem nessa decisão sozinhos e permitindo que os clínicos não se reaponsabilizem alegando a decisão como sendo “contra o conselho médico”.
Essa visão contradiz os movimentos atuais de saúde mental que enfatizam a importância da tomada de decisão compartilhada e da priorização das vozes dos usuários do serviço.
Os autores escrevem:
“A ideia de injustiça epistêmica encoraja os clínicos a pensar de maneiras mais matizadas e se perguntar se a relutância em apoiar e supervisionar as pessoas durante a redução gradual pode ser baseada em estereótipos negativos injustificados, como periculosidade, preconceitos sobre como é uma vida boa ou preconceito sobre cronicidade. Outra questão obscura pode ser as tensões entre clientes e profissionais médicos em sua disposição de assumir riscos. Embora correr o risco de uma recaída possa ser um passo importante no caminho da recuperação pessoal da perspectiva de um cliente, ser o clínico responsável em um processo que não segue as diretrizes e pode levar à piora clínica pode representar questões legais e morais.”
A injustiça hermenêutica ocorre quando a falta de validação do desejo de um indivíduo de interromper a medicação influencia a produção de conhecimento dominante em torno dos antipsicóticos e seu uso.
Os autores identificam as três principais lacunas a seguir na literatura sobre a descontinuação de antipsicóticos:
- As consequências potencialmente graves do uso prolongado de antipsicóticos.
- A gravidade e a frequência dos sintomas de abstinência.
- O desenvolvimento das estratégias de redução mais seguras.
Há uma falta de orientação sobre a redução segura de medicamentos antipsicóticos em diretrizes clínicas, uma questão amplamente ignorada pela comunidade científica, que se concentrou em melhorar a adesão à medicação. Não houve ensaios comparando estratégias de redução gradual; no entanto, existem vários estudos sobre o início da medicação.
Os autores atribuem essa injustiça a uma agenda de pesquisa tendenciosa que prioriza a adesão e a manutenção da medicação, influenciada pelo domínio do modelo biomédico e estereótipos negativos sobre a cronicidade do transtorno mental.
Concluindo, os autores argumentam que o debate em andamento sobre os riscos e benefícios da medicação antipsicótica pode ser analisado através das lentes da injustiça epistêmica.
Se a psiquiatria quiser se alinhar aos valores da tomada de decisão compartilhada e da saúde mental orientada para a recuperação, então deve estabelecer processos de redução gradual mais seguros, maneiras mais seguras de identificar aqueles que não precisam de medicação sem comprometer a saúde daqueles que precisam e educar os médicos sobre a diferença entre recaídas e sintomas de abstinência.
***
Speyer, H., Eplov, L. F., & Roe, D. (2024). Descontinuação de antipsicóticos através da lente da injustiça epistêmica. Community Mental Health Journal. https://doi.org/10.1007/s10597-024-01274-7 (Link)