No campo contemporâneo da saúde mental, o debate sobre o uso/abuso de telas assumiu proporções bastante significativas. As novas dinâmicas subjetivas, relacionais, familiares, sociais, políticas que se instauraram com a utilização em massa dos dispositivos tecnológicos, disponíveis em diferentes aplicativos, redes sociais, jogos, vídeos curtos, entre outros, complexificam ainda mais o multifacetado campo da saúde mental e demandam análises minuciosas.
A preocupação com a saúde metal é expressa basicamente por meio de um discurso forjado pela assim chamada “psiquiatria biológica”, termo vago para designar a abordagem da doença mental em termos de transtornos/déficits e distúrbios atribuídos ao funcionamento cerebral, bioquímico, verificáveis experimentalmente, tratáveis prioritariamente pela intervenção química de fármacos e, por alguns tipos de psicoterapias, cujo foco é a mudança no comportamento de modo geral.
O apelo cada vez mais intenso direcionado ao campo da saúde mental nas redes seduz ao mesmo tempo em que cria, orienta, indica inúmeros tratamentos, profissionais (com e sem formações) que adquirem autoridade com base apenas no número de seguidores, prescrevendo e proscrevendo condutas, manipulando discursos, assim como promovendo engajamentos, compartilhamentos, likes, transformando os diagnósticos psiquiátricos em produtos mercantilizáveis e comercializáveis.
A associação entre Facebook e Instagram promoveu o aumento e o incremento de um colossal mercado de serviços, onde a oferta-procura tornam-se tão ou mais imbrincadas do que estas plataformas. Dentre as variadíssimas ofertas de serviços e produção de informações dirigidas àqueles que se engajam na busca virtual por “saúde mental” e “bem-estar”, encontram-se profissionais das mais diferentes áreas do conhecimento, empresários, leigos, pessoas que se identificam com determinados transtornos, além das “autoridades” virtuais que enfatizam a necessidade de disseminar um determinado tipo de conhecimento que ela possui ou pensa possuir.
Vemos, assim, a memificação da psiquiatria e a trendificação de transtornos mentais, cujas raízes se alicerçam na tríade patologização – medicalização -mercantilização da existência.
As formas como se tem experienciado as vivências singulares, relacionais e coletivas tornam-se solo fecundo para a ampla e veloz disseminação da psiquiatria biológica associada à lógica de mercado, à criação de protocolos tanto por profissionais das áreas mais variadas, como por pessoas que propagam o consumo de diagnósticos e a venda/oferta de serviços especializados.
Entretanto, apesar de muito se falar sobre “saúde mental” e a área estar em alta nas redes sociais, como também nos campos midiáticos, este movimento não tem como contrapartida a valorização do campo. Têm sido instalados e fomentados, cada vez mais, discursos baseados no rastreio e identificações de transtornos e distúrbios, alguns (muitos) criados nas próprias narrativas que circulam nas redes, sem respaldo nem mesmo nos manuais de psiquiatria. Outros, ainda que se ancorem em algum ponto da perspectiva psiquiátrica biologicista e normativa, em determinado momento se descolam e passam a se orientar pelo discurso religioso, pelo senso comum, ou pelo “achismo” de cada um que se propõe a estabelecer generalizações, universalizações e um para-todos que tende a simplificar temas complexos.
A crise na saúde mental é composta por diversos fenômenos que ocorrem simultaneamente: sobrecarga, exigências de performance, individualismo, fragilidades, precarizações nos investimentos em saúde, nas relações interpessoais, competitividade, disputa, falta de espaço para a criatividade, para a subjetividade, a singularidade, aquilo que marca o sujeito e o faz um.
A forte presença do imaginário nas redes sociais mediatizada por (muitos) filtros, recortes e discursos que reafirmam ser possível a vida plena, repleta de “felicidade”, “sucesso”, “bem-estar”, extirpam um aspecto fundamental desta análise: o sujeito. O sujeito que fala, se angustia, sente, cria e tem seu próprio estilo de produzir saídas quando as coisas não vão bem.
Em um multiverso hiperconectado, através do qual são produzidos poderosos e eficientes discursos que orientam as dinâmicas relacionais e parecem construir as subjetividades contemporâneas imersas na sociedade de consumo neoliberal, observamos um campo fecundo para a expansão e o consumo da psiquiatria neurobiológica em seus múltiplos vieses.
As redes sociais virtuais e os aplicativos são utilizados como mecanismos para obter informações sobre estratégias que melhoram o bem-estar e qualidade de vida. Entretanto, a polaridade do uso das tecnologias e redes sociais é notável. A associação de tecnologia e saúde não é somente benéfica, os malefícios desse uso são evidenciados diante da quantidade excessiva de informações circulantes, a incerteza sobre essas informações e seu impacto na saúde mental de crianças, adolescentes e adultos.
A indústria da tecnologia está transformando não somente a vida dos adultos, como também das crianças, além da forma como a infância vem sendo concebida e tratada na atualidade.
Antes de 2009, a principal função das redes sociais era manter contato com os amigos, posto que havia menos recursos de feedback instantâneo que geravam repercussões, o que significava que eram menos “tóxicas” do que as redes que utilizamos hoje em dia.
Teve início há pouco mais de uma década, com um impacto significativo na subjetividade de adultos e crianças, o aumento do número de publicações de selfies, depois que as câmeras frontais passaram a ser acopladas aos smartphones (2010) e o Facebook comprou o Instagram (2012), o que fez a sua popularidade explodir. As grandes reconfigurações não envolvem apenas mudanças nas empresas de tecnologia, mas transformações sociais profundas que passaram a moldar os dias e as subjetividades das crianças e dos seus cuidadores (Haidt, 2024).
Torna-se importante lembrar que diversos atores sociais como pais e familiares, profissionais de diversas áreas, acadêmicos, gestores, as próprias pessoas que se identificam com as condições psiquiátricas citadas acima, entre outros ativistas, mobilizam ações, a partir de diferentes posições sobre os possíveis fatores etiológicos das patologias, mobilizam a descrição nosográfica dos transtornos e as metodologias supostamente eficazes para os respectivos tratamentos, assim como a organização de políticas de cuidado e o arcabouço legal de garantia de direitos (Oliveira, Feldman, Couto & Lima, 2017). Estes atores sociais participam de forma ativa na seleção dos conteúdos e na construção de métodos e técnicas que compreendem ser mais efetivos no tratamento.
Assim, verificamos a grande magnitude dos efeitos das redes sociais tanto na produção dos conteúdos (informações sobre as condições descritas nos manuais psiquiátricos), como nas ofertas de tratamento, serviços especializados, técnicas e práticas de cuidados (Nittas, Lun, Ehrler, Puhan & Mutsch, 2019).
As ofertas de “pacotes prontos de cuidado” são oferecidas e divulgadas enquanto blocos de serviços, cuja promessa reside em moldar o desenvolvimento e a normalização de cada individualidade e suas relações interpessoais. Se por um lado as redes sociais possibilitam a veiculação de informações de forma rápida, por outro, a avalanche de informações e ofertas não possui cunho necessariamente eficaz. As redes sociais virtuais e os aplicativos são utilizados como mecanismos para obter informações sobre estratégias que melhorem o bem-estar e qualidade de vida. A associação de tecnologia e saúde não é somente benéfica, os malefícios desse uso são evidenciados diante a quantidade excessiva de informações circulantes, a incerteza sobre essas informações e seu impacto na saúde mental de crianças, adolescentes e adultos (Melo, Silva, Nitschke & Viegas, 2023).
O Complexo Industrial dos transtornos mentais seria uma maneira de compor um sistema que trabalha para fabricar a doença mental enquanto mercadoria, transformando categorias diagnósticas psiquiátricas como autismo, TDAH, ansiedade, depressão, TOD (Transtorno Opositor Desafiador) em matéria prima para extração de lucro e giro de capital. Esse requintado sistema tanto alimenta como é alimentado por narrativas culturais que giram em torno das ideias de reconhecimento e rastreio de patologias como que determinadas intervenções são as principais (talvez únicas) apropriadas para lidar com pessoas que passam a se reconhecer através da descrição destas condições. Assim, verifica-se o giro de uma economia/lógica de mercado que captura e transcende o campo da saúde mental.
Broderick (2022) sugere que essas narrativas sustentam um sistema complexo que pode não ser necessariamente do melhor interesse das pessoas autistas, deixando pouco espaço para agência autista ou para outros modos de cuidar, ou outros modos de ser que não se deixam capturar pela narrativa mercantilista hegemônica.
Identifica-se no contexto brasileiro que o cenário mercadológico do autismo tem permeado diferentes setores econômicos, que perpassam pelo campo privado (expansão das clínicas exclusivamente destinadas a autistas, oferta de inúmeros cursos de formação para pais e familiares, gastos com planos de saúde), pelo filantrópico (criação de serviços com destinação específica ao diagnóstico de autismo), e pela oferta de produtos/bens de consumo, até ao uso do autismo enquanto estratégia de marketing digital.
Conforme Paulo Amarante (2024), em seu artigo “Drogas psiquiátricas: como começou o pesadelo”, na década de 1980, o Prozac foi lançado com a propaganda associada a uma promessa de ser uma droga que produzia felicidade, supressão do sofrimento mental e a produção de um estado de bem-estar, com impacto social a partir de uma agressiva campanha não apenas nas publicações e meios científicos, mas na mídia de massa, na grande imprensa, televisão, na conversa entre amigos, familiares, trabalho etc. Contudo, hoje, em 2024, as promessas de felicidade, bem-estar e de se alcançar a tão desejada normalidade se multiplicaram, sendo as redes sociais veículos potentes para sua disseminação.
Assim como o Prozac mudou a rota associada as medicações, que deixaram de ser produzidas somente para tratar doenças e passaram a “produzir saúde”, os discursos falaciosos que circulam nas redes também se baseiam neste tipo de armadilha. Os efeitos colaterais e iatrogênicos do uso/abuso das redes sociais mostram-se antagônicos às promessas e orientações circulantes.
Nesse sentido, salientamos que a enxurrada de conteúdo caótico despejado nas redes sociais, assim como a sua dinâmica, precisa urgentemente ter como contraponto pesquisas consistentes associadas no campo do cuidado, fiscalização das práticas, e um olhar clínico orientado para além da lógica econômica mercadológica.
Estruturas de sujeito e configurações da coletividade estão em operação, não podendo – de modo algum – serem relegadas ao segundo plano. A lógica de mercado e consumo não pode sobrepujar o sujeito que nela habita, pensa, cria, deseja, vive, se relaciona, busca as suas próprias saídas e experimenta as arquiteturas do mundo contemporâneo.
Referências
Amarante, P. (2024). Drogas psiquiátricas: como começou o pesadelo. Outra saúde. https://outraspalavras.net/outrasaude/drogas-psiquiatricas-como-comecou-o-pesadelo/
Broderick, A. A. (2022). The autism industrial complex: How branding, marketing, and capital investment turned autism into big business.
Haidt, J. (2024). A geração ansiosa. São Paulo: Companhia das letras.
Melo, L. C. D. N., Silva, B. M. D., Nitschke, R. G., & Viegas, S. M. D. F. (2023). Redes sociais virtuais e tecnologias em saúde no quotidiano de usuários e famílias: cuidado e promoção da saúde. Ciência & Saúde Coletiva, 28(8), 2193-2202.
Oliveira, B. D. C. D., Feldman, C., Couto, M. C. V., & Lima, R. C. (2017). Políticas para o autismo no Brasil: entre a atenção psicossocial e a reabilitação. Physis: Revista de Saúde Coletiva, 27, 707-726.