A Epidemia de Diagnósticos Psiquiátricos nas Redes Sociais

É público e notório para quem as navega que as redes sociais se tornaram uma verdadeira “feira-livre da saúde mental”, um mercado de ofertas, vendas e barganhas no qual uma grande variedade de soluções milagrosas promete identificar, corrigir, extirpar problemas, dificuldades e todo mal-estar existencial. 

É praticamente impossível passar incólume desta enxurrada de recomendações, dicas, orientações relacionais, existenciais, afetivas, comportamentais e subjetivas das mais diversas e duvidosas fontes. Paralelamente a isso, vemos mudanças sociais e psíquicas profundas a partir dos atravessamentos da virtualidade.  A instauração de novos modos relacionais, assim como novas formas de ser e estar no mundo colocam em check antigos referenciais, considerando o aparato tecnológico que atravessa a subjetividade contemporânea.

A abrangência destes fenômenos influencia tão substancialmente os modos de vida contemporâneos que não seria possível descrever em apenas um artigo. Por isso, traçarei breve e diretamente um panorama daquilo que compreendemos ser muito preocupante: os atravessamentos no campo da saúde mental promovidos pelas redes sociais, entre os quais o drástico aumento da epidemia de diagnósticos psiquiátricos nas redes sociais. Certos elementos incitam o fortalecimento desta epidemia diagnóstica estruturando os alicerces da sua arquitetura. 

No fluxo dos discursos circulantes nas redes, a normalidade passa a estar estreitamente atrelada à noção de plenitude, bem-estar integral e felicidade compulsória. Aquilo que destoa, incomoda, faz sofrer, desconcerta e aponta para as inconsistências, incoerências, imperfeições e opacidades do sujeito, rapidamente é capturado pela lógica patologizante e insígnias de diagnósticos psiquiátricos. Não todos. Apenas alguns.

Verificamos a imensa influência das redes sociais tanto na vasta produção dos conteúdos baseados em nomenclaturas do vocabulário psiquiátrico e a exploração exaustiva de certas categorias psiquiátricas que ampliam o alcance das publicações. Não todas, apenas algumas. Selecionadas, salientadas e reproduzidas à exaustão por aqueles mecanismos de comunicação e usuários, apresentados e disponibilizados de modos diferentes de acordo com as intenções e as ferramentas do aplicativo. Estes conteúdos insurgem como ondas, se avolumam, viram tendências (trends) entre os usuários, sejam profissionais da saúde mental ou não, com o intuito de conseguir maior visibilidade, seguidores, likes, compartilhamentos, engajamento e, na busca por retorno financeiro. Repetidos à exaustão vão adquirindo paulatinamente um certo estatuto de verdade, ao passo que os usuários (profissionais ou não) que surfam essas ondam também conseguem aumentar sua visibilidade.

Entre os elementos específicos destacados para a produção de conteúdo, escolhidos a dedo para serem explicados através de imagens, carrosséis, vídeos curtos, stories, postagens, há o sufocamento de qualquer possibilidade daquilo que se entende por singularidade, pensamento crítico/complexo.  Pelo contrário, a ideia é enxugar, simplificar. Simplificar tanto que, cada vez mais, os conteúdos assim despejados tornam-se desinformativos, fraudulentos e/ou distorcidos.

 Quanto mais simples, direto e objetivo, mais mastigado, melhor. 

Melhor para que (m)? 

Uma forte oposição no campo das redes sociais se apresenta. Por um lado, pessoas (influencers) com muitos seguidores, hypados, engajados, com muitos likes se propõe a falar sobre determinada temática sem ou com o mínimo aprofundamento sobre o assunto, mas conseguem produzir conteúdos virais. Por outro, profissionais com longa trajetória, conhecimento sólido, cujo repertório tecnológico torna-se enfadonho, com baixíssima repercussão comparativamente, não conseguem sequer que seus conteúdos sejam distribuídos pelos algoritmos. 

Um ponto de destaque: há uma busca desenfreada dos usuários por “saúde mental”, seja significando bem-estar, autocuidado, plenitude, anestesia ou até mesmo por promessas virais, palavras que engajam e viralizam que partem do universo psiquiátrico. Há um amplo apelo a divulgação sem critérios sobre saúde mental.

Nesta “feira livre multimidia da saúde mental”, a difusão de diagnósticos psiquiátricos é extremamente vendável, rentável, assim como a propagação de desinformação, produção de notícias e informações falsas, vendas de serviços diversos associados à saúde mental sem medir esforços, vídeos e dancinhas para sua divulgação. Baseados em um modelo privatista, os protocolos de cuidados, testes diversos para autodiagnóstico, venda de kits de tratamento baseados nos  diagnósticos, nichificação de mercado a partir de diagnósticos, vendas de serviços especializados, formações e cursos, combos de tratamento,  técnicas e práticas de cuidados dentro e fora dos registros da medicalização vendidas por especialistas e não especialistas fomentam uma enorme epidemia de diagnósticos nas redes sociais.

Outra forma de conseguir conexão com o interlocutor é a utilização da estrutura comunicacional da “jornada do herói”, através da qual se conta uma história em primeira pessoa, em geral, onde aquele criador de conteúdo consegue superar dificuldades, compreendidas constantemente como sofrimento e “adoecimento mental”. É comum que essas histórias estejam vinculadas às questões emocionais e diagnósticos psiquiátricos como depressão, crises de ansiedade, TDAH, TEA, etc.

Em 2017, no livro “Anatomia de uma epidemia”, Robert Whitaker já denunciava a ocorrência de uma epidemia de transtornos mentais em curso, associada diretamente ao uso desenfreado de psicofármacos. Uma questão importante apontada pelo autora seria: quanto mais se avançam as descobertas científicas acerca das doenças mentais e seus supostos tratamentos, primordialmente medicamentosos e cada vez mais eficientes teoricamente, mais doenças são identificadas. Se tomarmos como exemplo outros campos da medicinas, se esperaria uma redução das doenças, já que são identificadas e tratadas, contudo, no caso das doenças mentais ocorre o oposto, uma absoluta hiperinflação diagnóstica e explorações diversas.

Quase 10 anos após a publicação do livro de Whitaker, retomo as indagações: seria uma praga de doenças mentais espalhada entre adultos e crianças o que estamos vivendo? O que está havendo? Se as doenças mentais passaram a ser identificadas e tratadas cada vez mais precocemente, com substâncias mais eficientes, a que se deve efetivamente o aumento estarrecedor de transtornos mentais? Estes questionamentos nos convocam a pensarmos o que estamos produzindo enquanto sociedade.

Se as categorias diagnósticas em psiquiatria já encontram inúmeros problemas e fragilidades conceituais, instabilidade, estas apresentam-se exacerbadas e sem qualquer critério nas redes sociais em função dos próprios mecanismos de comunicação das redes, passível a edições, recortes, enviesamentos diversos e mascarados como “liberdade”, além de serem fortalecidas e exploradas pelos próprios profissionais de saúde mental em busca de reconhecimento.

 Através de uma linguagem extremamente simplificada, mecanismos diversos de acesso a esse conteúdo de forma praticamente instantânea, organizações algorítimicas, o apelo absoluto ao autocuidado se traduz na busca irrefreável por uma felicidade compulsória, como se tudo que ficasse de fora deste tipo de experiência de plenitude, completude e exímio funcionamento não fizesse parte daquilo que se concebe como “normal”. 

Benedeto Sarraceno já apontava os limites da tradição diagnóstica pautada somente na psicopatologia descritiva. Contudo, a cultura digital se alicerça na difusão de conteúdos, primordialmente, de orientação psicopatológica descritiva pautada no materialismo biológico, na cerebralização do discurso, na patologização e na medicalização. O Outro algorítmico busca aniquilar o sujeito e a singularidade, contudo, até agora, sem sucesso. 

A tentativa de supressão do sujeito não se restringe as descrições, mas a tendência de apresentar certa previsibilidade, estabilidade e coerência para aquilo que não se compreende, seguindo a lógica diagnóstica.

Se os dispositivos móveis são artefatos socioculturais e os aplicativos são objetos digitais, estes são produtos de tomada de decisão humana, sustentados por suposições tácitas, normas e discursos que circulam em contextos sociais e culturais nos quais são engendrados, comercializados e usados. Também vemos a distorção e a seleção dos conteúdos dos manuais psiquiátricos e da saúde mental para ampla divulgação sem critério, de modo irresponsável e sem qualquer regulamentação ou comprometimento ético.  Um campo insalubre, propício para o incremento ainda maior da epidemia diagnóstica em curso.

***

O Mad in Brasil hospeda blogs de um grupo diversificado de escritores. Essas postagens são projetadas para servir como um fórum público para uma discussão – em termos gerais – da psiquiatria, saúde mental e seus tratamentos. As opiniões expressas são próprias dos escritores.