Texto originalmente publicado no Mad in America , traduzido para o português por Letícia Paladino e revisado por Camila Motta.
Nota do editor: Nos próximos meses, a Mad in Brasil publicará uma versão serializada do livro de Peter Gøtzsche, Manual de Psiquiatria Crítica. Neste blog, ele discute os efeitos prejudiciais do lítio e das drogas antiepilépticas usadas para o transtorno bipolar. A cada quinze dias, uma nova seção do livro será publicada e todos os capítulos estão arquivados aqui.
Danos do lítio
O lítio é uma droga altamente tóxica que requer um monitoramento rigoroso do nível sérico. A FDA alerta que “a toxicidade do lítio pode ocorrer em doses próximas aos níveis terapêuticos”|437|. Este fato foi ignorado em um manual didático que afirmava que o lítio é geralmente bem tolerado e que seus danos são poucos e bem conhecidos|18:115|. Se isso fosse verdade, é surpreendente que 40% dos pacientes interrompam o tratamento prematuramente, o que o livro mencionou na mesma página|18:115|.
Outro manual didático respeitou a evidência. Ele mencionou que os efeitos adversos mais comuns são polidipsia, poliúria, aumento de peso, tremor nas mãos, sintomas gastrointestinais como náusea, dispepsia e diarreia, edema leve e reações cutâneas, e que os danos mentais incômodos incluem dificuldade de concentração, memória afetada e diminuição da vitalidade e criatividade|17:662|. O livro observou que os danos a longo prazo são mais sérios: até 10% dos pacientes apresentam alterações morfológicas nos rins, 1% tem dano renal irreversível, e hipotireoidismo e teratogenicidade ocorrem em casos raros|17:662|. Um terceiro manual didático confirmou o risco de malformações|16:301|.
Nas bulas, pacientes e suas famílias são advertidos de que o paciente deve interromper a terapia com lítio e contatar o médico se experimentar diarreia, vômito, tremor, ataxia leve (não explicada, mesmo que poucos pacientes saibam que isso significa perda de controle sobre os movimentos corporais), sonolência ou fraqueza muscular. O risco de toxicidade do lítio aumenta em pacientes com doença renal ou cardiovascular, debilidade severa ou desidratação, ou depleção de sódio, e para pacientes que tomam drogas que podem afetar a função renal, como alguns anti-hipertensivos, diuréticos e anti-inflamatórios para artrite. Muitas drogas podem alterar os níveis séricos de lítio, o que torna seu uso seguro muito difícil|437|.
Existem outros danos sérios, por exemplo, o lítio pode causar distúrbios na condução cardíaca|16:299|. Um livro afirmou que a interrupção da terapia com lítio aumenta o risco de um novo episódio maníaco além do risco associado ao curso natural da doença antes da terapia com lítio|16:589|. Não houve referência a essa afirmação e – como em outras drogas psiquiátricas – é provável que o que se observa ao interromper o lítio sejam efeitos de abstinência e não recaída. A única referência relevante nesta seção não se referia ao lítio, mas a uma meta-análise em rede de drogas para psicose em pacientes com esquizofrenia|218|.
O lítio é semelhante a drogas para psicose em seus efeitos, que incluem embotamento emocional, apatia, declínio na função cognitiva e vidas empobrecidas com pouco contato social|5,135|. Pacientes que interrompem o lítio podem acabar pior do que nunca antes|3|, e o tempo até uma recaída após a retirada do lítio é várias vezes mais curto do que seria naturalmente|427|.
Assim como a depressão e a esquizofrenia, o transtorno bipolar parece ter tomado um curso mais crônico devido às drogas que estão sendo usadas. Anteriormente, cerca de um terço dos pacientes maníacos sofriam três ou mais episódios em suas vidas, mas agora são dois terços, e as drogas para depressão e para TDAH podem causar ciclos rápidos entre altos e baixos|5|.
A lista de danos sérios que o lítio pode causar é muito longa e assustadora,437 e não sabemos se o dano cerebral é reversível|11:204|. Esta não é uma droga que eu recomendaria a ninguém.
Drogas para psicose, antiepiléticas e ECT
Os manuais didáticos recomendavam que, em vez de lítio, poderia-se usar drogas atípicas para psicose ou antiepiléticos|16:297,18:241,19:220|. Um manual não recomendou o lítio como primeira escolha para mania, mas sim drogas para psicose, que poderiam ser combinados com benzodiazepínicos para evitar doses altas|18:114|. Duvido que haja um bom motivo para não usar benzodiazepínicos sozinhos, uma vez que a ideia de tratar a mania é acalmar o paciente, o que é uma questão de dosagem.
Este manual observou que pacientes com mania e depressão podem geralmente ser tratados de forma eficaz com drogas psicotrópicas “modernas”, que foram afirmadas como preventivas de recaída na maioria dos pacientes, mas não havia referência para essa afirmação|18:110|, o que é falso|438|. Mais adiante, foi especificado que drogas modernas significam drogas para psicose|18:116|.
Como observado anteriormente, “moderna” é um termo inadequado, pois sugere que as drogas mais novas são melhores que as antigas, o que raramente é o caso, e drogas para psicose não previnem nada, exceto permitir que os pacientes vivam vidas mais normais e produtivas. Este livro também afirmava que, com medicação, a maioria dos episódios maníacos acabava em 6-8 semanas, enquanto um episódio maníaco não tratado durava de alguns meses (na maioria das vezes) a vários anos|18:115|. Obviamente, essa afirmação não foi derivada de ensaios controlados por placebo.
Um manual didático observou que não há evidências para o uso de antiepiléticos no tratamento da depressão resistente|16:275|. O mesmo livro afirmou que o valproato tem um efeito antimaníaco bem documentado e que a lamotrigina é aprovada para profilaxia|16:302|. Não é surpreendente que os médicos acreditem que antiepiléticos funcionam para mania, pois tudo que derruba as pessoas “funciona” para mania. O principal efeito dos antiepiléticos é suprimir a responsividade emocional, entorpecendo e sedando as pessoas|135|.
Como a maioria das outras drogas psiquiátricas, os antiepiléticos são usados para praticamente tudo. Eu já vi muitos pacientes entrando na psiquiatria com uma variedade de diagnósticos iniciais – muito frequentemente depressão ou nada que qualifique para tratamento com drogas – todos terminando sendo prescritos um coquetel horrendo de drogas que inclui antiepiléticos. Os antiepiléticos não apenas sedam as pessoas, mas também podem torná-las maníacas|390,439| e, assim, dar aos pacientes um diagnóstico falso de bipolar.
A literatura de ensaios foi distorcida de maneira extrema. Para o gabapentina (Neurontin), por exemplo, houve relatos seletivos de ensaios e de análises estatísticas e resultados que aconteceram de ser positivos; os pacientes foram excluídos ou incluídos de maneira inadequada nas análises; e manipulações fizeram com que resultados negativos parecessem positivos|440,441|.
O viés já foi introduzido na fase de design, por exemplo, utilizando doses altas que levaram à falta de cegamento, embora a Pfizer reconhecesse que a falta de cegamento devido a eventos adversos poderia corromper a validade do estudo. A camada final de corrupção foi realizada por redatores fantasma e executivos da empresa: “Precisamos ter controle ‘editorial’”; “Os resultados, se positivos, serão… publicados;”; “‘Estamos usando uma agência médica para elaborar o artigo que mostraremos ao Dr. Reckless. Não estamos permitindo que ele o escreva sozinho.”
A gabapentina foi aprovada apenas para pessoas com epilepsia resistente ao tratamento, mas a Warner-Lambert, depois comprada pela Pfizer, promoveu-a ilegalmente e a vendeu para praticamente tudo, incluindo TDAH e transtorno bipolar|6:151|. Quase 90% dos influentes líderes de pensamento estavam dispostos a promover o gabapentina em reuniões depois de serem atualizados sobre as estratégias promocionais da empresa. Um executivo da empresa disse a um vendedor sobre “Neurontin para tudo… Não quero ouvir essa besteira sobre segurança”|442|. A empresa insistiu em pressionar os médicos a usar doses muito mais altas de Neurontin do que as aprovadas, o que significa mais mortes.
Em 2010, um júri considerou a Pfizer culpada de crime organizado e uma conspiração de extorsão|443|. Seis anos antes, a Pfizer pagou $430 milhões para resolver acusações de que promovia fraudulosamente o Neurontin para usos não aprovados|444|.
Vimos problemas semelhantes com outras drogas. Para a lamotrigina, sete grandes ensaios negativos permaneceram não publicados e invisíveis para o público, enquanto dois ensaios positivos foram publicados|7:193| As drogas para epilepsia têm muitos efeitos prejudiciais, por exemplo, 1 em cada 14 pacientes em uso de gabapentina (Neurontin) desenvolve ataxia|439|.
Um manual didático afirmou que alguns antiepiléticos podem ser usados para profilaxia do transtorno |18:242|. Não havia referências, mas revisões sistemáticas não parecem fornecer apoio a essa afirmação|445,446| Não achei que valeria a pena ir mais longe, já que os ensaios nessa área são de qualidade tão ruim que é uma grande tarefa fazer uma revisão sistemática de cada agente, e há muitas drogas antiepiléticas. Além disso, os antiepiléticas são tão tóxicos que duvido que seu uso possa ser justificado.
Um manual didático descreveu vários danos associados aos antiepiléticos|17:663|, mas não o mais importante, que é que essas drogas dobram o risco de suicídio. A bula da FDA para a pregabalina (comercializada com grande sucesso pela Pfizer sob o sedutor nome Lyrica) menciona uma meta-análise de 199 ensaios clínicos controlados por placebo de 11 antiepiléticos que mostrou uma razão de risco ajustada de 1.8 (1.2 a 2.7) para pensamentos ou comportamentos suicidas|390|.
Estabilizador de humor é um eufemismo que os psiquiatras nunca definiram. Eles geralmente se referem a drogas antiepiléticas e lítio. A Eli Lilly também chama olanzapina de estabilizador de humor|7|. o que é uma linguagem orwelliana. As drogas para psicose não estabilizam nada, mas sedam as pessoas, tornam-nas passivas e dificultam suas vidas normais. Este termo deve ser abandonado, pois é intensamente enganoso|113|.
Este manual admitiu 345 páginas depois que há poucas evidências para um efeito dos antiepiléticos, mas que, no entanto, são utilizados em certa medida|16:577|. Eu não recomendaria drogas antiepiléticas para qualquer transtorno mental.
Um livro afirmou que a ECT é a única monoterapia que é eficaz em mais de 60% dos pacientes|16:302|. Outro livro foi ainda mais longe e disse que 80% dos pacientes com depressão resistente ao tratamento responderam à ECT|17:360|, o que é uma afirmação sem sentido, pois não há grupo de controle.
Um manual afirmou que há um grande potencial em prevenir mais depressões e manias oferecendo uma combinação de drogas e psicoeducação assim que o diagnóstico de bipolar for feito|16:307|. Não há evidências confiáveis de que as drogas possam prevenir recaídas.
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