Texto originalmente publicado no Mad in America , traduzido para o português por Letícia Paladino e revisado por Camila Motta.
Nota do editor: Nos próximos meses, a Mad in Brasil publicará uma versão serializada do livro de Peter Gøtzsche, Manual de Psiquiatria Crítica. Neste blog, ele aborda como os manuais didáticos discutem o uso de pílulas para depressão na gravidez, bem como como eles abordam a psicoterapia e a psicoeducação. A cada quinze dias, uma nova seção do livro será publicada e todos os capítulos estão arquivados aqui.
Gravidez
As pílulas para depressão estão entre as drogas prescritas mais comumente usadas por mulheres em idade reprodutiva. Na Dinamarca, 8% da faixa etária de 18 a 44 anos os utilizam.|263| Isso é preocupante, pois essas drogas parecem aumentar o risco de abortos espontâneos, interrupções voluntárias da gravidez, defeitos de nascimento e anomalias comportamentais em recém-nascidos,|483,484|e causam muitos outros danos sérios na prole.|336|
As orientações sobre gravidez eram inconsistentes e confusas. Os manuais didáticos geralmente colocavam a culpa na doença, não nos medicamentos. Por exemplo, um livro alertou que a depressão dobra o risco de desenvolver doenças cardiovasculares|16:259| e potencialmente aumenta as malformações cardíacas e complicações neonatais.|16:584|
Outro livro era confuso, contraditório e enganoso. Avisava que a depressão aumenta o risco de sangramento anormal durante a gravidez, aborto espontâneo, parto prematuro, morte fetal, eclampsia, outras complicações de nascimento, baixa qualidade de vida para a criança e falta de amamentação.|17:364| No entanto, na mesma página, os autores notaram que as pílulas para depressão estão possivelmente associadas a um ligeiro aumento do risco de parto prematuro e complicações perinatais, e 13 páginas depois, que essas drogas provavelmente aumentam o risco de malformações.|17:377|
Após mais 291 páginas, este livro se contradisse novamente e tentou abranger os dois lados de uma maneira muito confusa|17:668|: A depressão não tratada pode causar parto prematuro e talvez também malformações. As pílulas para depressão podem aumentar espontaneamente os abortos, mas os estudos mais recentes falam contra malformações. No entanto, os autores notaram que a paroxetina está possivelmente associada a malformações cardíacas e complicações neonatais, e que há um aumento do risco de hipertensão pulmonar em recém-nascidos, o que pode ser fatal.
Se você não sabe o que dizer, é prudente não dizer nada em vez de confundir totalmente seus leitores. Não consigo entender nada do que foi dito acima, e isso piorou. Este livro notou que o Conselho Nacional de Saúde da Dinamarca recomenda sempre considerar a psicoterapia para mulheres grávidas que estão deprimidas.|17:365| De fato; nenhuma delas deveria tomar essas drogas. Mas, veja só, apenas uma página antes, o livro aconselhava que mulheres grávidas que estiveram deprimidas anteriormente devem ser tratadas profilaticamente com pílulas para depressão para reduzir o risco de recaída de cerca de 70% para cerca de 25%.|17:364| É impossível justificar essa recomendação horrível.
O Conselho de Saúde também se contradisse. Recomendou rastreamento rotineiro de depressão em gestantes e subsequente tratamento com pílulas para depressão, embora os dados disponíveis não sustentem essas recomendações.|485| Reconheceu que os ISRS aumentam a ocorrência de abortos espontâneos, diminuem o peso ao nascer, provavelmente aumentam a ocorrência de defeitos de nascimento, aumentam o risco em cinco vezes para desenvolver hipertensão pulmonar, que é um dano letal estimado em ocorrer em 6 a 12 recém-nascidos a cada 1.000, e aumentam complicações neonatais como irritabilidade, tremores, hipertonía e dificuldade para dormir ou amamentar.|485| artigo sobre isso o chamou apropriadamente de síndrome de abstinência neonatal.|486|
Com licença, mas o Conselho de Saúde enlouqueceu? Um grande estudo de coorte dinamarquês com 500.000 crianças mostrou que o risco de defeito do septo cardíaco é dobrado.487 Isso não é trivial, pois 1% dos fetos tratados terá um defeito de septo. Os defeitos cardíacos ao nascer são exatamente o que esperaríamos ver, pois a serotonina desempenha um papel importante no funcionamento do coração. Vimos defeitos valvulares letais e hipertensão pulmonar letal em adultos que tomaram drogas para emagrecimento que aumentam os níveis de serotonina, e essas drogas foram retiradas do mercado.|6:144|
A recomendação do Conselho para rastreamento era tão absurdamente prejudicial que escrevi uma pequena esquete sobre isso,|488| que um psicólogo e eu realizamos espontaneamente como a introdução da minha palestra sobre psiquiatria, lendo-a em voz alta do meu computador. Está no YouTube com legendas em inglês.|489| Entre seus muitos postulados estranhos em relação à gravidez, este livro também afirmava que os riscos de depressão e distúrbios comportamentais aumentam em crianças de 18 anos cujas mães não foram tratadas durante a gravidez por sua depressão.|17:365|
Como não acreditava que isso pudesse ser verdade para drogas que não funcionam, procurei as evidências a que os autores se referiam, que eram uma diretriz clínica de 2014 sobre o uso de drogas psiquiátricas durante a gravidez produzida pela Associação Dinamarquesa de Psiquiatria, pela Sociedade Dinamarquesa de Obstetrícia e Ginecologia, pela Sociedade Dinamarquesa de Pediatria e pela Sociedade Dinamarquesa de Farmacologia Clínica.|490| Com tantas pessoas experientes envolvidas, era esperado que a diretriz fosse confiável, mas pode ser melhor descrita como sendo flagrantemente desonesta.
A diretriz afirmava que há “uma maior incidência de depressão em crianças de 18 anos cujas mães não foram tratadas durante a gravidez por sua depressão (Pearson et al., 2013)” e que “a depressão não tratada durante a gravidez parece aumentar o risco de desenvolver distúrbios comportamentais na criança (Pedersen et al., 2013).”
Nenhuma dessas afirmações era verdadeira. O artigo de Pearson et al. não dizia nada sobre se as mulheres foram tratadas ou não durante sua depressão. O que o artigo mostrou foi que se uma mãe estava deprimida, o risco de sua prole se tornar depressiva aumentava, mas apenas para mães com baixa escolaridade.|491| Isso não tem nada a ver com tratar ou não tratar uma depressão, mas sim com condições de vida precárias, que também são frequentemente o caso da prole. Quando as condições de vida são deprimentes, as pessoas ficam deprimidas. Não há uma grande surpresa aqui.
O artigo de Pedersen et al. não documentou de forma alguma que a depressão não tratada aumenta o risco de distúrbios comportamentais na criança.|492| Isso já era claro no resumo: “A exposição a antidepressivos no período pré-natal não foi associada a escores anormais no SDQ (Questionário de Pontuação de Dificuldades) em comparação com a exposição à depressão prenatal não tratada ou à ausência de exposição.” Mas o resumo também relatou os resultados do que chamamos de uma ‘pescaria estatística’ Quando um resultado é negativo, é uma prática de pesquisa muito ruim relatar subgrupos de pacientes ou itens selecionados em uma escala, mas foi isso que os autores fizeram: “A depressão não tratada foi associada a pontuações anormais no SDQ nas subescalas de conduta [razão de chances ajustada (aOR) 2.3 (IC 95%, 1.2-4.5)] e problemas pró-sociais [aOR 3.0 (IC 95%, 1.2-7.8)] em comparação com crianças não expostas.” Eles não apenas selecionaram itens em uma escala, como também não compararam a depressão não tratada com a depressão tratada, mas com pessoas que não estavam deprimidas e eram saudáveis!
Nas tabelas, não havia uma única diferença significativa entre a pontuação total ou qualquer um dos subitens na pontuação quando mulheres tratadas com depressão foram comparadas com mulheres não tratadas com depressão. Mas os autores novamente foram à pesca para encontrar o que relataram no resumo para conduta: “Incluindo apenas mulheres com pontuação normal de MDI [depressão] no momento do acompanhamento”. Para problemas pró-sociais, não consegui encontrar o odds ratio ajustado de 3,0, que foi alegado ser estatisticamente significativo. Não estava em lugar algum no artigo, mas havia essa informação: “A associação pró-social não era mais estatisticamente significativa, OR 2.2 (IC 95%, 0.8-6.5)” (quando incluídas apenas mulheres com uma pontuação normal de depressão).”
É incrível que esse tipo de lixo, com análises de dados forçadas, possa ser publicado, mas a literatura científica está cheia disso. Uma revisão sistemática descobriu que análises de subgrupos em ensaios eram mais comuns em revistas de alto impacto; e em ensaios sem resultados estatisticamente significativos para o resultado primário, ensaios financiados pela indústria eram duas vezes mais propensos a relatar análises de subgrupos do que ensaios não financiados pela indústria e duas vezes mais propensos a não terem especificado as hipóteses de subgrupo.|493|
Este manual didático observou que o valproato e o carbamazepina são contraindicados devido ao alto risco de defeitos do tubo neural.|17:669| Eu me pergunto por que os autores não alertaram contra todas as drogas antiepilépticos.
Psicoterapia e psicoeducação
A psicoterapia não é uma solução mágica contra os transtornos psiquiátricos. Ela nem sempre funciona, mas é a melhor intervenção que temos.
Os manuais didáticos eram, às vezes, contraditórios e enganosos. Um observou que 50% dos pacientes com depressão não são tratados; que muitos deles provavelmente têm depressão leve; e que a psicoterapia encurtará a fase da doença, previnirá a cronicidade e proporcionará alívio óbvio para os pacientes.|16:257| Infelizmente, o livro aconselhou que ISRS ou tricíclicos poderiam ser usados em vez da psicoterapia para depressão moderada ou em combinação com ela. Para a depressão severa, a psicoterapia não foi aconselhada, mas a internação hospitalar, tricíclicos, tricíclicos mais pílulas para psicose e eletrochoque foram.|16:272|
Esse é um tema familiar. Quanto pior a doença, mais os pacientes sofrerão com tratamentos que não os ajudam. Isso não é medicina baseada em evidências.
O livro, em que todos os autores são psiquiatras, desacreditou a psicoterapia ao afirmar que as pílulas podem ser combinadas com terapia conversacional de forma vantajosa, o que também aumenta a adesão.|18:238| Assim, pílulas primeiro, mesmo que não funcionem, e a psicoterapia tem como único objetivo manter os pacientes usando as pílulas que os prejudicam e que muitos pacientes prefeririam evitar. Quando perguntados sobre o que preferem, seis vezes mais pessoas preferem psicoterapia a pílulas, |494|, mas recebem exatamente o oposto. Uma pesquisa de 2002 com psiquiatras infantis e adolescentes dos EUA mostrou que 91% de seus pacientes eram tratados com drogas psiquiátricas|495|. Apenas nos 9% restantes, a psicoterapia foi usada sem drogas. Na Suécia, o Conselho Nacional de Saúde recomenda que todos os adultos com depressão leve a moderadamente severa sejam oferecidos psicoterapia, mas apenas 1% a recebe|496|.
Isso ilustra que a psiquiatria é uma profissão perversa. Ela não ajuda os pacientes como eles desejam ser ajudados, mas ajuda a si mesma.
Este manual didático recomendou espera vigilante ou conversas de apoio para depressão leve, psicoterapia para depressão moderada e pílulas para depressão mais severa|18:123|. Os autores afirmaram que o efeito preventivo das drogas era mais pronunciado do que o da psicoterapia,|18:126| o que é falso e foi contradito por outro livro, que observou que o efeito da psicoterapia dura mais do que o das drogas|16:277|. Como esperado, estudos com acompanhamento de longo prazo mostram que a psicoterapia tem um efeito duradouro que supera a farmacoterapia,|180,497-501| e quando os psiquiatras acreditam que as pílulas previnem recaídas, eles confundem efeitos de abstinência com recaída (veja os Capítulos 7 e 8).
Um terceiro livro aconselhou psicoterapia para depressão moderada e severa,|17:359,17:363| mas não para depressão severa que requer internação hospitalar|17:359|. Observou-se que a psicoterapia deve ser considerada na maioria das vezes quando o paciente está em remissão|17:363| e afirmou que uma redução pela metade na pontuação da depressão foi obtida em 60% dos pacientes tratados com drogas e psicoterapia|17:359|.
Esta afirmação é sem sentido. Não pode ser interpretada sem saber o que aconteceu com os outros 40% dos pacientes. Se a pontuação deles aumentou marcadamente, o efeito geral pode ser zero. A medicina baseada em evidências não se trata do que aconteceu em algum subgrupo selecionado de pacientes, mas do que aconteceu em média. Esses autores consideraram a psicoterapia uma opção secundária, o que contradisse um capítulo sobre psicoterapia no mesmo livro, onde outros autores notaram que o tamanho do efeito em uma meta-análise era bastante alto e que, em muitos casos, a psicoterapia era custo-efetiva em comparação com as drogas.|17:675| Parece ser correto que a psicoterapia é mais custo-efetiva do que outras formas de terapia|502|.
Um quarto manual também priorizou as pílulas, embora tenha notado que o efeito da psicoterapia e das pílulas era aproximadamente o mesmo para depressão leve e moderada|20:435|. Isso é enganoso porque o efeito também é aproximadamente o mesmo na depressão severa |503|. O livro observou que o Conselho Nacional de Saúde encontrou um efeito melhor de combinar psicoterapia com pílulas do que de pílulas sozinhas, mas não mencionou que a diretriz do Conselho recomendou fortemente oferecer psicoterapia, em combinação com pílulas, a pacientes com depressão moderada ou severa|504|. Isso foi contradito por outro livro, que observou que para depressão leve ou moderada, não havia evidência de um efeito maior da combinação do que de drogas ou psicoterapia sozinhas, embora afirmasse que esse era o caso para depressão crônica |16:278|.
Era totalmente confuso. E por que uma combinação funcionaria para depressão crônica quando não funcionou para depressão moderada, e o que é depressão crônica? A diretriz do Conselho de Saúde tinha uma importante reserva: “A terapia de combinação demonstrou um efeito aumentado em relação à monoterapia, mas os pacientes frequentemente não foram acompanhados além do final da intervenção. O grupo de trabalho deseja esclarecer os efeitos a longo prazo da terapia de combinação consistindo em farmacoterapia antidepressiva e psicoterapia.”
É notável que três manuais didáticos não recomendassem psicoterapia para depressão severa,|16,18,20| e que um quarto não a recomendasse para depressão que requer internação hospitalar|17|. O único manual que aconselhou psicoterapia para depressão severa foi aquele sobre psiquiatria infantil e adolescente,|19:214| mas, infelizmente, este livro aconselhou que a psicoterapia deveria ser combinada com fluoxetina, que é insegura e ineficaz (veja a página 112).
Um manual didático afirmou que o tratamento da bipolaridade em crianças envolve drogas, além da psicoeducação, mas não disse que as drogas deveriam ser usadas apenas se a psicoeducação não funcionasse|19:220|.
Dois outros afirmaram que a psicoeducação pode reduzir pela metade o risco de novas depressões ou manias em pacientes bipolares e reduzir internações hospitalares, mas acrescentaram que isso provavelmente se devia a uma melhor adesão ao tratamento (com drogas)|16:306,17:376|. Um deles deu uma referência a essa afirmação,|17:376| que foi um ensaio randomizado de psicoeducação |505|.
Acontece que as alegações do manual didático sobre melhor adesão ao tratamento com drogas eram falsas.505 Os pesquisadores randomizaram 120 pacientes bipolares em 21 sessões semanais de psicoeducação em grupo ou reuniões de grupo não estruturadas e o efeito foi avaliado de forma cega. Durante o tratamento, 23 vs 36 pacientes tiveram uma recidiva (P < 0,05); ao final do acompanhamento, esses números eram 40 vs 55 (P < 0,001); e houve significativamente menos dias de internação, 4,8 vs 14,8 (P < 0,05).
No acompanhamento de 2 anos, uma pequena diferença foi encontrada nos níveis de lítio, 0,76 vs 0,68 mEq/L (P = 0,03), enquanto não houve diferenças nos níveis de valproato ou carbamazepina, e nenhuma diferença em relação ao tratamento com drogas.
Os autores escreveram na discussão que, “comparados aos pacientes de controle, os pacientes psicoeducados tinham níveis de lítio mais altos no acompanhamento de 2 anos, o que pode sugerir um efeito da psicoeducação na adesão à farmacoterapia.”
Assim, os autores do ensaio não sugeriram que a pequena diferença nos níveis de lítio poderia explicar os pronunciados efeitos que encontraram da psicoeducação. É distorcer os dados ao extremo quando os autores do manual didático escrevem que isso era provável, em vez de apenas aceitar que a psicoeducação é altamente eficaz.
Um manual didático observou que, embora os estudos de PET sejam preliminares, há muito a sugerir que a redução de sintomas durante a psicoterapia pode normalizar o metabolismo em certas áreas cerebrais afetadas durante a depressão|16:269|. Estudos de imagem cerebral são altamente não confiáveis (veja o Capítulo 3), mas esta foi uma rara ocasião em que não foram usados para promover drogas, mas sim a psicoterapia.
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