“Tudo flui, nada permanece.”
Heráclito de Éfeso
Eu acredito que a evolução de um conhecimento e suas aplicações práticas depende de uma atitude de constante revisão e reflexão. Eu acredito também que devemos olhar para o que fazemos com condescendência e humildade. Sinto falta de debates na Psiquiatria a respeito de como estamos praticando e quais resultados estamos colhendo com o que fazemos.
No momento, tudo se passa como se houvesse uma ortodoxia na Psiquiatria que vem aplicando uma doutrinação no sentido de privilegiar a nomeação de um diagnóstico psiquiátrico e associar a ele alguma medicação como se houvesse uma correspondência entre uma coisa e outra. Como isso foi se instalando até se tornar uma prática disseminada? E como ela se sustenta? A ligação do diagnóstico psiquiátrico e as medicações entraram no imaginário da população de modo que a visão daquilo que o psiquiatra faz é somente prescrever medicações. Como chegamos a essa condição?
No meu questionamento encontro um ponto crucial para começarmos a entender o contexto, qual seja, a qualidade do encontro profissional-paciente. Penso que há dificuldades nesse quesito e que a melhora deve vir de dentro da Psiquiatria e não o contrário. É nossa responsabilidade assumir que algumas coisas não estão dando certo e precisam mudar para melhorar.
Muito já se escreveu sobre a relação profissional-paciente. Minhas considerações não trarão novidades conceituais nem nada que já não tenha sido dito por outros profissionais. Pretendo usar este espaço para atualizar o debate e expandir a consciência sobre o que vivenciamos no dia-a-dia. Talvez a escolha dos pontos e seu arranjo possa ser uma contribuição nesse sentido. Também quero destacar que os conceitos que vou utilizar vão além da Psiquiatria e podem ser estendidos a todos aqueles que estão na situação profissional de prestar ajuda a outro ser humano.
Hoje um dos argumentos mais frequentes entre profissionais é que eles não têm tempo para escutar o paciente. Como seria possível trabalhar com foco nas pessoas sem tempo para ouvi-las? Para a nossa saúde e a de nosso trabalho, precisamos rever o fator tempo. Cada um deveria analisar este ponto com carinho. O tempo é inexorável e se não construímos em nossas vidas um caminho com sentido no que fazemos, podemos deixar a correria esvaziar nosso trabalho. Por que tanta pressa?
A escuta requer tempo simplesmente porque o que está em jogo na interação é a conexão entre seres humanos, alcançar melhor compreensão sobre seus problemas e, às vezes, navegar águas turvas em que raramente podemos contar com as palavras
como remos da embarcação para nos levar adiante. Com frequência, os problemas são emocionais e de dificílima verbalização.
Quantos(as) pacientes que me procuram, alegando que numa única consulta de poucos minutos receberam diagnóstico psiquiátrico e saíram com uma receita sem entender o que se passou no encontro. Considero esta realidade preocupante. Há fortes indícios de que nessas horas ocorre uma precipitação das conclusões por haver em parte a prévia doutrinação para diagnosticar, mas sobretudo por não se permitir o não saber. Utiliza-se apenas a cognição e a racionalidade, em detrimento da capacidade empática para a identificação das emoções perturbadoras. Não quero aqui generalizar, mas posso afirmar que a condição citada é muito frequente.
Gosto do conceito da visão binocular de Wilfred Bion|1|. Ao estar com uma pessoa em nosso consultório é preciso reconhecer que um mistério nos está sendo apresentado. O conceito/atitude da “visão binocular” de Bion implica que devemos, ao mesmo tempo, utilizar do saber e do não-saber para ir integrando um mosaico. Apesar desta ideia ser apresentada no âmbito da Psicanálise, creio que aqui podemos com muita propriedade estender para além do encontro psicanalítico. Diz respeito, como Bion escreveu, a ambos, paciente e profissional, estarem “assustados” com o encontro. Um mistério ali colocado que não pode ser simplificado, muito menos banalizado. Precisamos assumir que pouco sabemos sobre quem está à nossa frente e ter a tranquilidade de estar nesta posição. Não há nada de errado em não saber, ao contrário, é o esperado. Creio que acomodar o não-saber em nossas entrevistas pode melhorar a percepção, pois abrimos uma trilha para o saber. O binocular tem um sentido integrativo, assim como nossa visão monocular é integrada para uma visão melhor, ampla, com percepção de profundidade, binocular. Saber e não-saber devem andar juntos, delimitando o progresso da interação.
Para melhorar, a Psiquiatria precisa ir além das queixas. Se algo não está bem com uma pessoa, por que é o cérebro que está desarranjado? Creio que caímos num erro categórico importante. A mente não é passível de ser completamente abordada por métodos da ciência experimental e não deve ser resumida ao funcionamento biológico cerebral, como algo puramente mecânico. O estudo da mente, ao meu ver, pertence principalmente a outras áreas como a Filosofia, a Antropologia, a Sociologia e a História. As comunicações que são feitas dentro de um encontro são de várias ordens e precisamos estar atentos a isto. Vejo na prática clínica que as queixas são muitas vezes a ponta de um iceberg. Os problemas que elas expressam, sim, são da mais alta relevância.
Quando pensamos sobre um encontro com um(a) paciente frequentemente, consciente ou inconscientemente, absorvemos as impressões que eles nos causam. Há que se incluir na formação dos profissionais noções básicas sobre as emoções nas interações. Normalmente há uma carga emocional trazida pelo(a) paciente que certamente afeta de alguma forma o profissional e o que ele sente diz algo sobre a interação. As fragilidades podem pertencer a um lado, ao outro ou a ambos. Esta percepção que parece vir do senso comum é frequentemente ignorada pelos profissionais|2|. Atender pessoas sempre vai envolver emoções, nem sempre agradáveis. Portanto, o manejo de emoções torna-se fundamental para que uma avaliação siga bem. Apesar de esta ideia ser enfatizada na Psicanálise, reitero que é um conceito amplo, tão antigo quanto a filosofia estóica do século III a.C. Portanto, não estou falando de psicologizar a relação, mas sim humanizar, prestar tributo e utilizar dessa sabedoria para conduzir tanto a vida como uma entrevista clínica.
A teoria classificatória que está aí em nosso cotidiano, pressupõe o conhecimento da pessoa. Um erro grave. Não conhecemos as pessoas e se quisermos realizar um trabalho mais humano e menos desviado das necessidades das pessoas, precisamos assumir que é o paciente que detém o conhecimento que precisamos para tentar ajudá-lo. Neste momento, seria tão bom descartar uma classificação pouco útil e nos abrir para conhecer melhor aquela pessoa específica que está conosco naquele momento singular. Com o aumento progressivo de categorias diagnósticas, as entidades nosológicas tornaram-se confusas, senão até um artifício irreal, prejudicando a vivência do encontro.
A consequência do tempo curto e a classificação do tipo “check list”, entre outras coisas não menos importantes mas não abordadas aqui, levaram a uma distorção da escuta. Não bastasse isso, há, na sequência, a prescrição irracional de medicações. Eu atribuo a este desvio, o fato de muitos profissionais deixarem de ouvir com mais calma essas pessoas. Quando se ultrapassa a barreira dos sintomas, consegue-se enxergar as reais necessidades das pessoas que nos procuram. A minha prática clínica e de muitos outros pelo mundo mostram que se alguém precisa de medicamentos, normalmente é por curto período. O uso prolongado de medicamentos psicotrópicos tem sido considerado danoso na maioria dos casos.
A situação atual é que não há trabalhos mostrando qual o melhor modo de apoiar as pessoas com problemas no uso e na retirada dessas medicações. Por isso, mais uma vez, precisamos ouvir as pessoas. O conhecimento pode vir delas e juntos podemos enxergar uma direção a seguir. A revisão das práticas podem lançar luz sobre este terreno, desde que se assuma a postura de aprendiz diante dos problemas dos(as) pacientes. Nós não temos a resposta para todos os problemas, mas podemos estimular a proposição de soluções. Quem sabe quando passarmos a acreditar na possibilidade de um tratamento psiquiátrico sem remédio, alternativas mais interessantes também fiquem claras, uma vez que ao invés de valorizarmos apenas o diagnóstico, passamos a escutar os problemas reais anunciados através dos sintomas. Enxergando além dos rótulos, podemos também pensar melhor nas possíveis soluções.
Neste sentido, aprecio a proposta de Steve de Shazer e sua esposa Insoo Kim Berg|3| que na década de oitenta desenvolveram uma abordagem focada em soluções. Trata-se de uma atitude prática (sem foco em diagnóstico) e muito respeitosa com as pessoas, com forte crença na capacidade de cada um oferecer uma possível “solução” para seus problemas|4|. Resumidamente, podemos dizer que as intervenções estimulam a criatividade, instilam esperança e promovem a colaboração, sem julgamentos. Entende-se que pequenos passos levam a grandes mudanças.
A prática clínica sugere que as soluções precisam passar pela participação dos(as) pacientes. A começar pela linguagem e cultura, a elaboração das soluções dependerá de uma codificação adequada. Na abordagem focada em “soluções” usa-se de princípios elementares como o que dá certo é estimulado, o que não dá, deve ser mudado ou substituído. Esse tipo de interação não deixa de ser uma forma de modificar o atual desequilíbrio no balanço do poder na consulta onde o profissional coloca-se como detentor do conhecimento e o(a) paciente como receptor(a) passivo(a), aliviando um certo peso colocado no profissional para oferecer soluções.
Por fim, entendo que a melhor administração do tempo, o processo empático, a conexão, o manejo emocional em consulta e a construção conjunta de soluções constituem a condição da possível humanização da escuta. Eu poderia até dizer que assim estabeleceríamos uma sintonia de experiência com os pacientes. Este tipo de escuta leva a uma compreensão de “dentro para fora” porque fornece uma via de conhecimento sutil, complexa e quase visceral das pessoas. O que está faltando no treinamento psiquiátrico é este tipo de escuta. Ela soma no avaliador as representações motoras e viscero-motoras, sugerindo que a maneira que as pessoas experimentam suas próprias ações, emoções e formas de vitalidade favorecem a percepção do seguinte fenômeno: a reciprocidade das vivências humanas|5|. Sentimos e entendemos melhor como as pessoas em geral experimentam as mesmas ações, emoções e formas de vitalidade quando observamos esses elementos ativos em nós e em outras pessoas. Creio que esta possa ser uma forma de enriquecer a atual condição do encontro profissional-paciente.
São Carlos, 24-III-24.
1 Apud Patrick Casement, Aprendendo com o Paciente, Imago, Rio de Janeiro, 1987, p.21
2 Optei em não utilizar conceitos da teoria psicanalítica como contratransferência e identificação projetiva porque estão associados à relação psicanalítica em si. No entanto, as reações emocionais ocorrem em todos os contextos de interação e é esperado que psiquiatras compreendam o significado e o mínimo manejo das mesmas. Para aqueles que ficaram curiosos sobre o tema na Psicanálise, recomendo a leitura dos trabalhos de Ralph R. Greenson.
3 Vide Steve de Shazer , Yvonne Dolan – More than Miracles – The State of the Art of Solution Focused Brief Therapy, Routledge, New York, 2007.
4 Aqui entende-se “solução” como um conceito bem amplo, incluindo aprender habilidades, interromper padrões problemáticos de ação, equilibrar relações, construir estrutura de vida, amadurecer emocionalmente, aceitar limites, etc.
5 Para se inteirar de como a ciência explorou este fenômeno, veja os achados sobre os “mirror neurons”. Recomendo, para começar, a seguinte revisão: Mirror neurons 30 years later: implications and applications, Luca Bonini et al, Trends Cogn Sci, 2022, Sept(9):767-781 (acesso livre).
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