Tradições Familiares e a Herança da “Loucura”

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Mental disorders concept - composition for Bipolar disorder

Texto orignalmente publicado pelo Mad in America, traduzido para o português por Letícia Garnica.

Em muitas famílias, as tradições são valorizadas como a cola que une gerações. Elas são passadas como relíquias de família: receitas, rituais, frases e valores — referências compartilhadas que oferecem identidade e continuidade. Mas nem todas as tradições são benignas. Algumas são fios invisíveis de controle, vergonha e amor condicional. Algumas tradições, transmitidas silenciosamente, nos ensinam não como viver, mas como
obedecer, como esconder, como suportar. Como ter sucesso em um mundo injusto e disfuncional.

Essas dinâmicas herdadas podem ser difíceis de enxergar precisamente porque são normalizadas. São absorvidas cedo, muitas vezes sem questionamentos: não responda de volta. Não se emocione demais. Não traga vergonha a família. Erros devem ser punidos. Desvios dos valores familiares devem ser corrigidos. A dor deve ser mantida em segredo. Quando alguém quebra essas regras, algumas famílias reagem impondo papel de bode expiatório ao parente, manipulação ou exclusão. Em algumas, humilhação, manipulação, violência e ameaças de violência são consideradas parte do aprendizado de uma lição. E em outras, até mesmo expressões de amor podem vir com condições — recursos, informações e até mesmo afeto genuíno podem ser retidos até que o ente querido “se endireite e voe corretamente.”

O que isso tem a ver com “loucura”?

Bastante. Porque quando falamos de diagnósticos psiquiátricos que supostamente são “organicamente intrínsecos da família” — como esquizofrenia ou bipolaridade — ainda somos frequentemente solicitados a analisar os genes. Mas o foco na genética não conta toda a história. Embora possa haver algum componente genético, um crescente corpo de pesquisas sugere que a epigenética — o estudo de como a experiência pode alterar a
expressão genética — pode fornecer uma compreensão ainda mais matizada
de como as tradições da angústia são herdadas.

Epigenética refere-se à maneira como fatores externos, como trauma ou estresse, podem alterar a expressão dos genes sem alterar o próprio código genético. Essas mudanças podem afetar a forma como respondemos ao estresse, regulamos as emoções e desenvolvemos problemas de saúde mental. Em vez de focar apenas nos genes herdados, precisamos considerar como as experiências precoces, especialmente aquelas dentro das famílias, podem influenciar mudanças epigenéticas que impactam a saúde mental. Por exemplo, trauma ou estresse crônico podem deixar marcas epigenéticas em genes envolvidos na resposta ao estresse, na regulação emocional e no desenvolvimento do cérebro, predispondo os indivíduos a condições psiquiátricas. Isso sugere que os problemas de saúde mental podem não ser transmitidos apenas pela genética, mas também pela herança de traumas e influências ambientais incorporadas nas tradições familiares.

A saúde mental, assim como a experiência vivida, não existe no vácuo. Os ambientes familiares e sociais em que crescemos moldam profundamente a forma como vivenciamos e expressamos o sofrimento mental. Considere o conselho antigo para animais de estimação que quebram a casa toda: “esfregue o focinho deles na destruição e fale: cachorro mau!”. Embora agora seja uma teoria desmascarada sobre adestramento, ela também tem sido aplicada metaforicamente à correção humana. Em sua essência, trata-se de usar a vergonha e a punição como ferramentas de correção.

Embora frequentemente justificado como “amor difícil”, disciplina ou treinamento, o verdadeiro resultado é dano emocional. Isso transmite a mensagem de que amor e aceitação são condicionais — que você só é amável quando se conforma, não quando simplesmente é você mesmo. E talvez seja injusto esfregar a cara de alguém na confusão da família, para começo de conversa.

Com os cães, a maioria dos treinadores experientes dirá que esfregar o focinho deles em fezes ou urina não ajuda no adestramento. Quebra a confiança. Isso causa confusão. Desencadeia estresse e ansiedade, podendo levar à evitação ou até mesmo à agressão. Pode levar à supressão de sinais naturais. Mais importante ainda, não ensina o comportamento que você realmente deseja. As lições que estão sendo aprendidas não são as que estão sendo ensinadas. Mesmo assim, algumas tradições custam a morrer.

As famílias transmitem esses padrões não apenas por meio de ações diretas, mas também por meio do silêncio, negação e concordância implícita. A frase “É desse jeito que nós fazemos” torna-se um escudo contra a reflexão. Tentativas de questionar ou rejeitar essas tradições frequentemente encontram resistência ou desprezo. Quem se opõe pode se tornar a maçã podre — o “perturbado”, o “problemático” ou, eventualmente, o “doente
mental”. Tais reações destacam o quão profundamente arraigadas essas tradições estão — e o quão resistentes à mudança.

Poderia ser o que a psiquiatria chama de loucura é, em alguns casos, uma rebelião natural contra ser encaixado nessa tradições familiares nocivas? Uma forma de protesto interno contra a insuportável pressão de se conformar, ficar em silêncio, de carregar essa carga emocional acumulada por gerações sem poder extravasar?

O Impacto do Trauma Relacional Precoce

Alguns pesquisadores estudaram como traumas relacionais precoces — especialmente abuso emocional crônico ou negligência — moldam o desenvolvimento cerebral. A pesquisa de Martin Teicher enfatiza como a negligência emocional e física precoce pode causar danos psicológicos duradouros, influenciando o desenvolvimento da saúde mental na idade adulta. Da mesma forma, as orientações de 2025 da Organização Mundial da Saúde (OMS) sobre a reformas psiquiátricas sublinham a importância de apontar os determinação social do processo de saúde/doença, incluindo experiências adversas na infância (EAIs). Essas experiências, que frequentemente ocorrem dentro da unidade familiar, correlacionam-se
significativamente com o aumento dos riscos de transtornos mentais, uso de
substâncias e cronificação.

Em vez de focar na patologia individual, pode ser útil considerar a transmissão intergeracional do trauma. As famílias frequentemente passam padrões emocionais e comportamentais que afetam não apenas seus relacionamentos imediatos, mas também a capacidade dos filhos de lidar com o mundo. Quando as crianças crescem em um ambiente onde o sofrimento emocional é ocultado, o conflito é suprimido e a obediência é
exigida, elas internalizam essas normas, que podem posteriormente se manifestar como depressão, ansiedade ou outros “transtornos mentais”. O corpo e a mente, em sua luta para sobreviver a essas tradições opressivas, podem se rebelar na forma do que é clinicamente rotulado como “loucura”.

Isso nos remete ao contexto familiar em que esses padrões se desenvolvem. Para muitos, esses contextos são moldados por tradições familiares que priorizam o controle em detrimento da saúde emocional, ou o silêncio em detrimento da vulnerabilidade. A expectativa tácita de que as crianças suportem o peso desses fardos pode preparar o terreno para futuras dificuldades psicológicas.

A patologização dos sistemas familiares

No entanto, nossa cultura ainda tem como padrão patologizar o indivíduo ao invés de vez de examinar os sistemas sociais e familiares dos quais ele emergiu. Ao focar unicamente ao diagnóstico profissional ou muleta emocional dos indivíduos, negligenciamos os fatores ambientais nos quais eles estão submergidos — particularmente no ambiente familiar.

Em consonância com as orientações da OMS de 2025, precisamos adotar uma abordagem sistêmica para a saúde mental que leve em consideração todo o escopo da vida de uma pessoa, incluindo a dinâmica intergeracional em jogo. Essa abordagem enfatiza a necessidade de colaboração multissetorial e a abordagem de determinantes sociais e estruturais, que incluem a dinâmica e as tradições familiares. As famílias, em muitos casos,
não são apenas uma fonte de conforto e apoio, ela são um ambiente propício para raízes de disfunções, traumas não curados e negligência emocional.

A socialização que toma espaço nas configurações familiares pode promover resiliência e desenvolvimento emocional saudável, mas quando esses ambientes são carregados de vergonha, privação emocional ou negligência, tornam-se criadouros de condições angustiantes que são diagnosticadas e tratadas. Para abordar as causas profundas, precisamos olhar além do indivíduo, para os sistemas mais amplos dos quais ele faz parte — incluindo as estruturas familiares e culturais que moldam a autoimagem de cada um.

Fontes ocultas de angústia na tradição familiar

A “loucura” pode, às vezes, ser uma resposta natural a expectativas e punições inaturais embebidas nas tradições familiares. Os próprios costumes que prezamos como “valores familiares e tradicionais” frequentemente se desenvolveram como mecanismos de sobrevivência ou sucesso dentro de um contexto mais amplo de disfunção social — e, em vez de nos proteger, podem se tornar fontes ocultas de angústia que, em última análise,
alimentam o que chamamos de loucura. Por exemplo, quando a sobrevivência de uma família depende da manutenção de uma fachada de perfeição ou força, qualquer desvio desses ideais pode ser visto como uma ameaça à identidade e à coesão familiar. Consequentemente, indivíduos que não se encaixam nesse molde — seja por sensibilidade emocional, problemas de saúde mental ou simplesmente por não se conformarem com normas sociais disfuncionais — são frequentemente considerados bodes expiatórios e
rotulados como o “problema”.

Para aqueles que sofrem sob o peso dessas contradições, as feridas mais profundas surgem quando entes queridos — aqueles que deveriam saber mais — se alinham com a narrativa predominantes. E se tornam o rosto dela. Em vez de oferecer refúgio ou compreensão, reforçam as próprias normas que causam danos, tornando-se instrumentos de disfunção na vida de alguém que afirmam amar. Essa traição atinge mais profundamente do que a
rejeição social porque se encobre de preocupação e dever, mascarando a submissão à crueldade.

Falar sobre isso não significa culpar as famílias, mas sim, abrir um espaço para a verdade. Diversas vezes, essas tradições nasceram da sobrevivência — fora do desejo de se adaptar às pressões sociais ou de evitar o estigma. Ou talvez de um impulso para sermos “vencedores” em manter com sucesso a tradição familiar. Elas podem ter sido transmitidas por gerações anteriores, moldadas pela guerra, pobreza ou repressão social. Mas se não as
examinarmos e interrompermos, corremos o risco de preservar o mal em nome da herança.

Papéis sociais e expectativas herdadas

Nós herdamos mais do que genes. Nós herdamos histórias, papéis, expectativas e os motivos pelos quais o amor é conquistado ou negado. A Reforma dos Sistemas de Saúde Mental, envolvem o reconhecimento da interseccionalidade de vários fatores, como dinâmica familiar, práticas culturais e status socioeconômico. Padrões herdados podem moldar a forma como os indivíduos vivenciam o mundo e seu senso de autonomia nele. A pressão para se conformar aos papéis ou expectativas familiares, muitas vezes aprendida na infância, pode ser uma fonte significativa de sofrimento psicológico, particularmente quando eles são rígidos ou tóxicos.

Se sermos sérios em relação a compreensão do sofrimento humano, e a construção de respostas mais humanas a ele, precisamos olhar além do indivíduo. Precisamos considerar como os chamados valores familiares podem, às vezes, servir como vetores do trauma. Essas tradições, frequentemente enraizadas em noções ultrapassadas de disciplina, controle e vergonha — podem impedir que os indivíduos assumam plenamente seu eu
autêntico, o que é essencial para a saúde mental e o bem-estar.

Talvez a cura comece com uma nova tradição: a escuta. Ao promover espaços onde os indivíduos possam compartilhar suas experiências, desmascarando as feridas ocultas transmitidas por gerações, podemos começar a desafiar as convenções que limitam nosso crescimento. O processo terapêutico começa com a escuta e também com o exame das
tradições que há muito tempo são aceitas sem questionamentos. Essas tradições estão nos protegendo ou sutilmente criando diversas vezes as mesmas condições para o sofrimento que rotulamos como loucura?

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O Mad in Brasil hospeda blogs de um grupo diversificado de escritores. Essas postagens são projetadas para servir como um fórum público para uma discussão – em termos gerais – da psiquiatria, saúde mental e seus tratamentos. As opiniões expressas são próprias dos escritores.

Seminário Ecos da Reforma Psiquiátrica: Memórias, Desafios e Avanços da Luta Antimanicomial Brasileira

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A organização do Seminário Ecos da Reforma Psiquiátrica, realizado no Museu de Arte Murilo Mendes, no município de Juiz de Fora em Minas Gerais, Brasil, foi realizada através da mobilização autônoma entre profissionais, estudantes, usuários e participantes de movimentos sociais. Organizado em 3 mesas, respectivamente, homenageando a psicóloga Thais Acácio, o usuário Alceu Rodrigues e o ex-deputado autor da lei 10.216 Paulo Delgado, de Minas Gerais.

O “Corredor da Loucura”, região mineira formada por Barbacena, Juiz de Fora e Belo Horizonte agregou até a década de oitenta, dezenove dos vinte e cinco hospitais psiquiátricos de Minas, 80% dos leitos da saúde mental do Estado. Não sem motivos: a Organização Mundial da Saúde estabelece como referência três internações para cada mil beneficiários no país, mas em 1981, estudos do setor psiquiátrico mineiro revelaram quase cinco internações para cada grupo de mil: “a cada duas consultas e meia, uma pessoa era hospitalizada” (Arbex, 2013, p. 31).

Como fomento artístico, a obra de abertura “Mineiridades” concretizada pelo Projeto Colibri, o qual oferece oficinas de artes, teatro e yoga aos assistidos pela RAPS. Recém inaugurado no ano de dois mil e vinte e cinco, entretanto já potente no município, foi idealizado por Flávia Assis (psicóloga e historiadora), Juliana James (pedagoga e graduanda de psicologia) e Nicole Bem (artista, professora e pesquisadora). As reuniões acontecem semanalmente, abertas a todos a quem interessar, sua sede se situa ao lado do CAPSad (centro de atenção psicossocial álcool e drogas), sendo ferramenta articuladora de cultura, expressão criativa e desenvoltura de habilidades artísticas enquanto dialogam com emoções e vivências. Seu lema se baseia no trabalho com as artes como um dos atores na promoção da saúde mental.

Ademais, o convite aos usuários da Associação Trabalharte unirem-se à mesa de debate, pensando a reinserção social e fortalecimento enquanto sujeito a partir da produção de artesanatos. A associação  pró saúde mental, tem como logo a estampa pintura realizada pelo usuário Alceu no ano de 2000. Buscando reabilitação psicossocial, ela é formada por usuários da saúde mental de Juiz de Fora, familiares e voluntários da comunidade, promovendo através da compra de seus produtos,  a ruptura com o processo de exclusão social e inserção cultural do potencial expressivo e criativo dos atendidos.

Na mesa dois, o convite à “Zine de Saúde Mental”, revista sem fins lucrativos que promove redações distribuídas popularmente pela cidade, impulsionando a reverberação das falas em economia solidária e direitos humanos. A psicóloga Beatriz Guedes, uma das idealizadoras, reitera a importância da fala em saúde mental, diversas vezes percebida como desarticulada, isolada de direitos humanos. Nesse sentido, propagar a fala sobre a garantia de direitos nos espaços, coletivos, fortalece e ramifica possíveis conexões formadas entre pessoas que valorizam a cidadania e coletividade na Rede de Atenção Psicossocial.

A terceira mesa estendeu a discussão para o apontamento de dificuldades da desospitalização e volta do pensamento manicomial, evitar o ensurdecimento dos institucionalizados e pensar a psicologia para não reproduzir violências. Há dez anos o último manicômio foi desativado, pouco tempo a fim de uma revolução no pensamento cultural acerca da loucura e seu espaço social. Hoje, com uma insuficiência na rede, números reduzidos de CAPS, residências terapêuticas (RTs), efetividade do matriciamento junto a atenção primária e contingente profissional, a articulação do que se pode fazer em comunidade, é essencial para o cuidado longitudinal e fim de direitos violados.

Na cidade de Juiz de Fora, o pensamento pró manicomial apresenta uma progressiva resistência expressada pelos movimentos artístico culturais. Nesse período, enquanto aqueles que lutam por recursos, é necessário convidar mais pessoas a ocupar espaços de fala, tal qual o evento realizado. Construir mais locais como a Revista Zine, Coletivo Colibri e a Associação Trabalharte, dessarte, caminha-se  para políticas de garantia de acessos.

Ao decorrer do evento, a elaboração de uma Carta Manifesto direcionada à prefeitura e câmara dos vereadores, convocando aos 150 participantes, expressarem seus desejos para a construção das Políticas em Saúde Mental.”Construção de um fórum permanente de saúde mental, visandoa ampliação da RAPS e sistematização da política municipal”, “Por uma rede fortalecida, democrática e horizontal. Que o direito à escuta e o acesso à saúde mental, sejam devidamente garantidos.”

A programação foi encerrada com a fala de Paulo Amarante, com a abertura de perguntas ao público, na qual debateu-se como a experiência artístico cultural quebra paradigmas psiquiátricos. Viabilizou-se novas possibilidades de vida, expressão e inclusão social para aqueles em sofrimento psíquico, assim como, a construção de um novo lugar social para a loucura.

Acatisia Após Cinco Anos de Redução Gradual: Acorrentada a um Antidepressivo para Sempre

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Texto orignalmente publicado pelo Mad in America, traduzido para o português por Marcos Ferraz*. 

Em meu artigo, “O que aprendi como moderador de um grupo de apoio à redução gradual de antidepressivos”, descrevi trabalhar como assistente social clínico licenciado ao lado de psiquiatras em um hospital psiquiátrico por 18 anos e nunca ter ouvido uma palavra sobre abstinência. Então eu tentei sair de Cymbalta (duloxetina, inibidor da recaptação de serotonina e noradrenalina) e todo o inferno começou.

Descrevi ter feito uma redução gradual de oito meses com 60 mg em 2019 e ter sido espancado com acatisia tardia tão grave que tinha um plano para acabar com minha vida se o restabelecimento do medicamento não funcionasse. (A acatisia pode ser um efeito colateral de medicamentos ou sintomas de abstinência. É um conjunto de sintomas físicos muito angustiantes e uma sensação avassaladora de terror muito pior do que ansiedade.) A reintegração curou a acatisia e comecei uma jornada muito mais lenta para diminuir os 30 mg que havia restabelecido, confiante de que a redução muito lenta seria bem-sucedida.

Quando escrevi meu artigo anterior, eu estava tomando apenas três microgrânulos (termo usado para descrever as pequenas esferas dentro das cápsulas de medicamentos de liberação prolongada), ou 0,81 mg de Cymbalta. Passei os próximos 12 meses reduzindo gradualmente esses três últimos microgrânulos. Mantive o último grânulo por seis meses. Me senti completamente normal durante toda a redução, inclusive com o último microgrânulo. Após seis meses, parei de tomar aquele último grânulo e continuei me sentindo totalmente normal por quatro meses. Nenhum sintoma de abstinência.”

Quando completei quatro meses completamente livre do medicamento, eu comecei a chorar ao elogiar a gentileza de um jovem empacotador para o gerente da loja – para a total confusão dele. ‘Doida do corredor 12’. Eu não queria acreditar que aquilo fosse um sinal de alerta da acatisia que estava por vir. Talvez eu realmente tivesse me emocionado com a bondade do garoto, e não fosse acatisia. Fiquei alimentando essa esperança por 24 horas, até que fiz a coisa prudente e reintroduzi um microgrânulo

 

Desabar em prantos enquanto elogiava alguém também tinha sido o meu único aviso de que a acatisia estava a chegar em 2020, depois da redução demasiado rápida de oito meses. Naquela altura eu não sabia o que significava, mas desta vez sabia. Dado que tinha estado estável com a última microesfera da minha redução gradual durante seis meses, pensei que seria suficiente para manter a acatisia à distância. Funcionou durante uma semana e depois a acatisia voltou com força total.

Quando começava a adormecer, meu corpo acordava como se o sono fosse perigoso. Eu senti como se estivesse tremendo por dentro. Eu não conseguia comer. Eu me forcei a beber sopa e smoothies. Meus braços pareciam estar queimando – não dolorosos, mas quentes e espinhosos (essa sensação de queimação é chamada de parestesia). Na boca do meu estômago havia uma bola de fogo enviando fragmentos elétricos de terror. A bola de fogo e a queimação em meus braços iam e vinham com ondas de pavor. Às vezes, enquanto estava deitado na cama, meu pulso era de 160 bpm.

O ardor, o medo intenso e o tremor interior eram avassaladores. Tudo o que podia fazer era deitar-me na cama e agarrar-me com unhas e dentes à minha sanidade mental, como se fosse um pequeno bote no meio do oceano a ser batido por ondas demasiado grandes para o meu frágil barco, sem qualquer esperança de salvamento.

Tinha estado estável durante seis meses com uma microesfera no final da minha fase de redução. Por que é que já não era suficiente? Não sabia quanto mais repor e tinha medo de tomar a droga excessivamente. Tinha lido recentemente que a dose para o restabelecimento tardio deveria ser de apenas alguns miligramas. Aumentei a dose para 2,7 mg.

A primeira vez que precisei reiniciar a medicação tardiamente por causa da acatisia, estava há dois meses sem o remédio. Agora, após uma retirada gradual de cinco anos, eu estava há quatro meses sem tomar nada. Enviei e-mails para dois renomados especialistas em redução gradual de dose quando os 2,7 mg não estavam fazendo efeito, mas eles não estavam disponíveis. Eu não sabia mais a quem recorrer.

Então, veio-me um estalo de genialidade. Lembrei de uma entrevista do Dr. Stuart Shipko no Mad in America, na qual ele dizia que não abriria clínicas de desmame porque muitas pessoas não conseguiam deixar os antidepressivos. Encontrei seu número no Google e deixei um recado. Ele me retornou a ligação em menos de uma hora.

Minha dosagem original era de 60 mg, e ele disse que, em sua experiência, as pessoas precisavam retomar a dose completa de 60 mg. Ele sabia que havia informações circulando em grupos de apoio sobre retirada gradual sugerindo que apenas uma dose baixa deveria ser usada para reinício tardio, mas ele foi contra essa conduta. Ele também mencionou que já havia ajudado pacientes a reiniciarem com sucesso mesmo após dois anos da interrupção do medicamento, quando ainda sofriam com sintomas prolongados de abstinência.

Ele me deu confiança para aumentar de 2,7 mg para 30 mg. (Eu não quis saltar imediatamente para 60 mg porque, durante minha primeira retomada tardia em 2020, 40 mg piorou muito os sintomas “ativos” da acatisia). No dia seguinte, aumentei para 40 mg, e foi nessa dosagem que me estabilizei. Serei eternamente grata ao Dr. Shipko. Considero que ele salvou minha vida.

Reiniciar a medicação é algo muito delicado. Uma dose alta demais pode piorar os sintomas, enquanto uma dose baixa demais não alivia a acatisia. Já li que, para muitas pessoas, a retomada tardia não funciona porque agrava os sintomas de abstinência. Elas acabam tendo que desistir da tentativa e ficam presas à Síndrome de Abstinência Aguda Prolongada (SAAP).

No meu caso, qualquer quantidade que eu tomava no início – até mesmo aquele único microgrânulo que reiniciei inicialmente – piorava bastante meus sintomas. Porém, após cerca de 24 horas, os sintomas acabavam amenizando. Foi assim que percebi que a retomada estava funcionando. Pergunto-me se algumas pessoas desistem de tentar reiniciar o tratamento prematuramente. O aumento na intensidade dos sintomas, a cada dose que eu tomava, era assustador, e é difícil explicar como eu sabia que deveria persistir. Foi uma semana aterrorizante tentando encontrar a dose certa, seguida por três semanas com novos sintomas a cada dia que me deixavam muito mal – até que finalmente me estabilizei.

Um sinal de melhora foi o intervalo entre as crises de ardência. Os períodos sem aquela sensação de queimação foram ficando cada vez mais longos, até que um dia aconteceu pela última vez – a última vez que precisei me preparar para a onda de agitação incandescente.

As palavras não conseguem descrever o horror da acatisia e o medo de não saber se a retomada da medicação vai funcionar durante a tentativa de estabilização. Embora a experiência do Dr. Shipko com retomada e seus conselhos tenham sido inestimáveis para mim, não há garantias; o cérebro de cada pessoa é completamente imprevisível.

Depois de mergulhar fundo no mundo do desmame de antidepressivos e da abstinência nos últimos seis anos, eu sei demais. Sei que a acatisia pode durar anos ou ser permanente. Dada a intensidade dos meus sintomas e a incapacitação total, tenho certeza de que ficaria acamada por anos em um quarto escuro, mal conseguindo caminhar até o banheiro, se continuasse tentando fazer o desmame. Eu não suportaria tanto sofrimento. Eu sou uma daquelas pessoas que nunca poderá deixar os antidepressivos.

Eu também tenho sintomas de abstinência quando tento trocar de marca, e não tenho ideia se meu cérebro acabaria aceitando e se estabilizando com uma nova marca. Meu cérebro e minha vida dependem de uma empresa farmacêutica na Índia continuar funcionando e fabricando duloxetina genérica até o dia em que eu morrer. Alguns meses atrás, a Eli Lilly anunciou que pararia a produção do Cymbalta, sua marca original. Para alguém como eu, que não consegue trocar de marca, isso é uma crise e deveria ser ilegal. Que terrível e imprevisível controle esses medicamentos podem ter sobre a vida das pessoas.

Os sintomas da acatisia variam de pessoa para pessoa. O sintoma que mais me assustou foi a fadiga. Tenho encefalomielite miálgica/síndrome da fadiga crônica (EM/SFC) há 18 anos. Estou incapacitada por ela há 10 anos. Eu fiquei acamada por anos devido a fadiga profunda e debilitante constante, os sintomas semelhantes aos da gripe e um mal-estar indescritível. Nos últimos 3 anos, encontrei maneiras de reduzir meus sintomas: evitando estresse e voltando a dormir várias vezes para ter 10-12 horas de sono. Não tenho mais os sintomas de gripe. Preciso usar uma cadeira de rodas elétrica para sair de casa porque não tenho energia para andar e basicamente não saio de casa, mas não sinto mais como se fosse morrer por estar tão doente.

É comum que pessoas com EM/SFC (encefalomielite miálgica/síndrome da fadiga crônica) fiquem acamadas por 20 anos e continuem piorando. A doença não tem lógica nem padrão, então, minha prioridade máxima é manter as melhoras no meu estado de saúde. Apesar de ter uma doença que me deixou acamada por anos, com fadiga profunda, nunca senti nada parecido com a fadiga que tive durante a acatisia em 2020. Era como se houvesse pesos de chumbo presos aos meus membros e uma tonelada de concreto me esmagando. Mal conseguia ficar em pé ou caminhar.

Conheço alguém que sofre com essa fadiga. A acatisia dela melhorou em seis meses, mas, algumas semanas depois, ela foi atingida por uma fadiga avassaladora. Ela sente como se estivesse lutando para caminhar na lama e, nos últimos seis anos, ficou quase sempre acamada — só consegue fazer o estritamente necessário antes de cair de volta na cama. Descobriu que esse sintoma prolongado de abstinência se chama “fadiga do sistema nervoso central”. Eu simplesmente não poderia voltar para essa vida. Conheço essa realidade por causa da minha doença. Isso não é viver.

Estudos mostram que a abstinência de antidepressivos pode durar anos e destruir vidas. Algumas pessoas conseguem parar o medicamento, mas outras — como eu — não têm escolha a não ser voltar a tomá-lo após sofrer efeitos terríveis de abstinência.

Estou tomando Cymbalta há 17 anos e estou arrasada por meu desmame de cinco anos não ter me livrado do remédio. Tenho sorte de não ter efeitos colaterais angustiantes. Nem sequer percebo que estou tomando, exceto por um: tenho um apetite enorme e um desejo incontrolável por carboidratos. Isso foi piorando gradualmente nos últimos anos. Tive um aumento de 56% no peso e estou 32 kg acima do meu ideal. Meu estilo de vida extremamente sedentário e meus 68 anos certamente contribuem, mas, no passado, eu não precisava comer um jantar completo antes de dormir nem acordar no meio da noite para comer de novo. Não consigo dormir se estiver com fome, e o sono é vital para evitar os sintomas gripais da minha doença.

Meu apetite é como se carregasse um macaco nas minhas costas e tivesse um monstro no estômago, exigindo ser saciado — e eu odeio isso. Li que antidepressivos podem atrapalhar o sinal do estômago para o cérebro avisando que estamos satisfeitos. Mas, novamente, se esse é meu pior efeito colateral, sou sortuda: há pessoas com reações graves aos psicotrópicos que tomam, mas não podem parar porque mesmo um desmame leve causaria sintomas brutais de abstinência. Elas estão presas em um inferno em vida — sofrendo tanto com efeitos colaterais debilitantes (que às vezes causam danos fisiológicos) quanto com o tormento da abstinência, já que, uma vez que começam a reduzir a dose, não conseguem se estabilizar.

O tempo de uso de um medicamento também não é um indicador confiável para saber se alguém terá abstinência ou quão grave ela será. Já me perguntei se o fato de estar tomando o remédio há 12 anos quando comecei a reduzir foi parte da razão pela qual não consigo parar, e me culpei por ter esperado tanto tempo. Algumas fontes afirmam que pessoas que usam um medicamento por muitos anos terão mais dificuldade em descontinuá-lo. No entanto, pela minha experiência em grupos de apoio para desmame e como moderadora, sei que há muitas pessoas que usaram um medicamento por pouco tempo e ainda assim tiveram graves crises de abstinências.

Em resposta a um comentário que fiz em sua página no Facebook, a Outro (serviço de desmame oferecido por Mark Horowitz e Adele Framer) declarou: “A abstinência de antidepressivos varia significativamente entre indivíduos – não há correlação direta entre tempo de uso e duração da abstinência. Algumas pessoas têm sintomas de abstinência por meses após um uso de curto prazo, enquanto outras que tomaram antidepressivos por mais tempo podem ter sintomas mais leves.” Devo acrescentar que, pela minha experiência, algumas pessoas enfrentam anos de abstinência, não apenas meses, mesmo após um uso de curto prazo.

Quero que as pessoas tenham esperança de que uma retirada lenta e gradual segura, de não mais que 10% ao mês, pode ser bem-sucedida. Para muitos, provavelmente, será bem-sucedida. Infelizmente, sei que minha história assustará alguns que estão pensando em começar sua retirada lenta e gradual. Mas acredito que é importante conhecer os riscos – algumas pessoas, como eu, são incapazes de parar completamente o medicamento e passam por uma abstinência agonizante.

Não me arrependo de ter tentado. Não havia como saber se conseguiria parar meu medicamento com sucesso sem tentar. Poderia ter dado certo, como acontece com muitas pessoas. Você não saberia sem tentar.

 

*Marcos Ferraz: biólogo, psicólogo e doutor em ciências (UERJ),  professor associado do Departamento de Farmacologia e Psicobiologia (IBRAG/UERJ) e coordenador do projeto: Psicofarmacologia, nem panaceia nem dispensável, que discute patologização da vida. 

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Medicalização Infantil: O Perigo dos Diagnósticos Apressados

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Nos últimos anos, houve um aumento significativo no número de diagnósticos de transtornos mentais na infância, especialmente o Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH). Embora seja essencial reconhecer que muitas crianças precisam de suporte por meio de um tratamento, a rapidez com que esses diagnósticos são feitos vem chamando atenção, por trazer consequências severas através medicalização excessiva e precoce, levantando questionamentos sobre os impactos do diagnóstico. Por isso, destaca-se a necessidade de manter o olhar crítico ao interpretar as atitudes infantis como sendo problemas de saúde mental. Dessa forma, podemos respeitar a diversidade do comportamento humano, sem reduzi-lo a uma leitura apenas biomédica da questão.

O uso excessivo de medicamentos de forma precoce pode resultar em sérios efeitos na saúde mental, física e emocional da criança, tanto a curto quanto a longo prazo. Muitas vezes, isso pode levar à dependência de medicamentos, influenciando significativamente a construção da identidade infantil. Como afirma o filósofo austríaco Illich crítico às instituições da cultura moderna:

“A verdade é que o diagnóstico precoce transforma pessoas que se sentem bem em pacientes ansiosos.” – (1975)

Com o passar dos anos, diversas pesquisas indicaram um aumento abrupto no número de crianças diagnosticadas com TDAH. Um estudo publicado na Revista Brasileira de Psiquiatria em 2015 apontava que a prevalência do TDAH no Brasil variava entre 3% e 7% da população infantil (Polanczyk et al., 2015). No entanto, um relatório do Ministério da Saúde, publicado em 2022, indicou que a prevalência do transtorno já alcançava nesse mesmo ano inicialmente aproximadamente 7,6% entre crianças e adolescentes de 6 a 17 anos. Esses dados reforçam a necessidade de uma avaliação mais criteriosa, pois o aumento dos diagnósticos pode estar relacionado a avaliações precipitadas.

Esse excesso de diagnósticos gera uma preocupação crescente, pois comportamentos comuns da infância, como agitação, curiosidade excessiva e dificuldade de concentração, podem estar sendo interpretados de forma equivocada, resultando na prescrição desnecessária de medicamentos. Illich, em sua crítica à medicalização da sociedade, destaca:

“A medicina moderna tende a transformar dificuldades naturais da vida em doenças, promovendo uma dependência excessiva de soluções médicas.”

Esse pensamento se aplica diretamente à infância, onde, muitas vezes, busca-se uma solução rápida para comportamentos que fazem parte do desenvolvimento natural de uma criança. Diante desse cenário, é importante explorar alternativas menos medicalizantes e patologizantes. O crescimento dos diagnósticos e da medicalização está também diretamente ligado à expansão da indústria farmacêutica, como reforça o livro Anatomia de uma Epidemia: pílulas mágicas, drogas psiquiátricas e o aumento assombroso da doença mental do autor Robert Whitaker, que pesquisou esse fenômeno do uso das medicações, demonstrando a influência da psiquiatria moderna ao recorrer rapidamente a medicamentos para “corrigir” comportamentos que podem ser naturais da infância. Isso parece criar uma lógica mercadológica da saúde mental infantil, transformando-a em uma grande fonte de lucro para a indústria.

Um exemplo desse aumento do uso de medicamentos é o metilfenidato (Ritalina) é o caso do Brasil, que se tornou o segundo maior consumidor de metilfenidato do mundo, ficando atrás somente dos Estados Unidos como aponta a pesquisa realizada pela Revista Interdisciplinar em Saúde, Cajazeiras no ano de 2024, estimando assim o possível crescimento alarmante nos próximos anos de tal medicamento. Há a preocupação com a normalização da medicalização, levando os responsáveis das crianças e as próprias crianças a internalizarem a ideia de que precisam de um medicamento para aprender, se concentrar ou se comportar “adequadamente”. Esse processo pode gerar impactos psicológicos graves, contribuindo para a dependência de medicamentos desde cedo.

Diante do aumento expressivo nos diagnósticos de TDAH e da consequente medicalização precoce, é imprescindível uma abordagem mais criteriosa e que seja responsável na avaliação do comportamento infantil, tentando evitar esse grande risco da patologização excessiva e da medicalização precoce, risco esse que não pode e nem deve ser ignorado. Um olhar mais atento, cuidadoso e multidisciplinar pode garantir que as crianças recebam o suporte adequado sem serem rotuladas ou medicadas desnecessariamente.

É nesse sentido que busca-se compreender quais fatores podem estar levando a essa mudança de visão sobre a infância, como por exemplo as novas formas de se relacionar com o trabalho, a rotina, os estudos que exigem cada vez mais adaptação em menos desvios à norma. Portanto, é fundamental que pais, educadores e profissionais da saúde adotem uma postura crítica e responsável, buscando garantir que cada criança receba o suporte adequado sem ser submetida a diagnósticos precipitados e tratamentos desnecessários. Apenas com um olhar multidisciplinar, ético e sensível será possível equilibrar a necessidade de assistência com a preservação da infância, evitando que a medicalização se torne uma resposta automática para desafios que fazem parte do desenvolvimento humano. O desafio, então, é questionar essa relação e buscar alternativas mais saudáveis e eficazes, priorizando abordagens psicossociais e educacionais antes de uma intervenção medicamentosa.

 

Referências

Ivan Illich, na obra “A expropriação da saúde nêmesis da medicina” (1975)

Link do artigo utilizado na revista:  https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/17541055/

Link do relatório do Ministério da Saúde: https://www.gov.br/conitec/pt-br/midias/consultas/relatorios/2022/20220311_relatorio_cp_03_pcdt_tdah.pdf?utm_source=chatgpt.com

Link da pesquisa da revista de cajazeiras: https://www.interdisciplinaremsaude.com.br/Volume_32/Trabalho_91_2024.pdf?utm_source=chatgpt.com

A saúde Mental Virou um Indicador Silencioso de Injustiça Social

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“O indivíduo está constantemente construindo a noção de um corpo individualizado e experienciando vivências que aumentam ou rompem a segurança de suas fronteiras corporais.”

Recentemente, o site operamundi.uol.com.br publicou uma matéria discutindo como a saúde mental se tornou um indicador silencioso de injustiça social. O texto aborda a importância de enfrentarmos a forma como a saúde mental vem sendo atravessada por questões estruturais e políticas. Mark Fisher, crítico cultural britânico e autor do livro Realismo Capitalista, nunca teve receio de encarar o mal-estar contemporâneo sem anestesia. Em seu livro ele propõe críticas importantes para o cenário.

A matéria ressalta como o cotidiano e a tristeza passaram a consumir a sociedade, até que esse sofrimento se tornasse algo aparentemente “normal”. Fisher enfatiza em seu livro: “O sofrimento mental que nos atravessa não é defeito biológico nem fraqueza moral. É consequência direta da forma como estamos sendo forçados a viver.”

O Brasil não está distante dessa realidade. Pelo contrário, ela fica cada vez mais evidente, principalmente quando a ansiedade se torna rotina, quando a exaustão é tratada como falta de disciplina, quando o sono não vem e a culpa não vai embora, o problema não está na química do cérebro, ao contrário do que afirma o discurso técnico da psiquiatria convencional. O que está em jogo é a maneira como a vida foi estruturada para sugar tudo do indivíduo. A partir do olhar de Fisher, percebe-se como a saúde mental se tornou, de fato, um reflexo silencioso das injustiças sociais.

A matéria traz exemplos do dia a dia como uma professora que cuida de três turmas sem tempo para planejamento, o agente de saúde que atende trinta famílias por dia, o técnico administrativo que sustenta um setor inteiro sozinho. Profissionais frequentemente rotulados como “encostados”, quando na verdade estão sobrecarregados. O “adoecimento psíquico” entre trabalhadores não é sinal de fraqueza, mas sim resultado de um estado de esgotamento estrutural.

Essa lógica também se mantém dentro da própria academia: o estagiário sem bolsa, o mestrando que dá aulas em três escolas, o doutorando com mais de quarenta anos que ainda ouve que “precisa se vender melhor no mercado”. A lógica meritocrática transformou o conhecimento em moeda de troca e o desejo de estudar em culpa.

Por fim, a matéria destaca que a saúde mental é atravessada pela forma como organizamos a sociedade. E, se não enfrentarmos essa estrutura coletivamente, a conta continuará sendo cobrada no corpo de cada um.

Autor da matéria: Ricardo Queiroz Pinheiro

Site: https://operamundi.uol.com.br/opiniao/a-saude-mental-virou-um-indicador-silencioso-de-injustica-social/

 

Lançamento do E-book do 8º Seminário Internacional A Epidemia das Drogas Psiquiátricas: os desafios da retirada dos psicofármacos.

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Aconteceu nos dias 5 e 6 de dezembro de 2024 na Fiocruz a oitava edição do Seminário Internacional das Drogas Psiquiátricas. O evento contou com nomes nacionais e internacionais de peso para apresentarem uma perspectiva crítica das questões acerca dos efeitos do uso das medicações psiquiátricas, além das perspectivas atuais em torno da patologização da vida.

O evento foi organizado pelo Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial (LAPS) vinculado à ENSP/Fiocruz e pelo Centro de Estudos Estratégicos (CEE), em parceria com organizações de apoio, além de iniciativas de economia solidária presentes no Seminário.

O e-book conta com a transcrição completa das falas dos palestrantes, e seu lançamento tem como intenção uma contribuição com o debate crítico em torno da saúde mental, os processos atuais da reforma psiquiátrica no Brasil e América Latina, assim como o engajamento pela luta antimanicomial.

LINKS PARA ASSISTIR AO EVENTO:

20/06/2024 – MANHÃ https://www.youtube.com/watch?v=CofnGsjiqyI&t=3s
20/06/2024 – TARDE https://www.youtube.com/watch?v=pk7ZzgyJ2yk&t=3s
21/06/2024 – MANHÃ https://www.youtube.com/watch?v=RH2vLgw46uo
21/06/2024 – TARDE https://www.youtube.com/watch?v=Q_ePb29dkcQ&t=5s

Encontra-se disponível para BAIXAR, gratuitamente, aqui → (https://laps.ensp.fiocruz.br/arquivos/documentos/53)

 

 

Entrando e Saindo de Instituições Psiquiátricas: Experiências Angustiantes de Mulheres Indianas

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Artigo pulicado originalmente no www.madinsouthasia.org, traduzido por Camila Motta e revisado por Paulo Amarante. 

Existem 46 hospitais psiquiátricos estatais na Índia. É comum que mulheres com problemas de saúde mental vivam nessas instituições por períodos muito longos. Elas são chamadas de “mulheres abandonadas” devido as suas estadias de longo prazo em hospitais psiquiátricos devido a falta de apoio familiar. Um novo estudo foi conduzido por Anindita Bhattacharya, David Camacho e Ellen Lukens, que investiga as razões por trás das estadias de longo prazo. Os pesquisadores descobriram que desigualdade de gênero, falta de apoio familiar, pobreza e violência familiar frequentemente levam à admissão de mulheres em instituições psiquiátricas. Além disso, esses fatores também atuam como barreiras a sua reinserção na comunidade.

A maioria das internações hospitalares de mulheres é involuntária. Este não é apenas um cenário indiano, mas também um que foi relatado em Nova York . As famílias admitem mulheres sem seu consentimento devido a uma série de razões, algumas delas incluem dar entrada em divórcios, negar-lhes a custódia dos filhos e tirar suas propriedades. Depois de interná-las em hospitais, as famílias também tendem a fornecer números de telefone e endereços errados para garantir que não haja contato com elas. Em alguns casos, mulheres que fogem de lares abusivos, assim como das armadilhas do tráfico, foram presas pela polícia e colocadas em uma instituição psiquiátrica.

Os pesquisadores descobriram que entre as onze mulheres entrevistadas no estudo:

“ As participantes foram admitidas no hospital psiquiátrico por sua família de origem, família do marido ou pela polícia. Duas mulheres escaparam de famílias abusivas e uma escapou do tráfico de pessoas; essas três participantes relataram que ficaram desabrigadas durante meses, antes da admissão no hospital pela polícia .” 

As internadas em hospitais governamentais por seus familiares foram forçadas a isso devido à pobreza, pois pagar por tratamento psiquiátrico privado era um luxo para elas. Depois de interná-las no hospital, os familiares raramente vinham visitá-las. Embora elas não expressassem raiva pelas internações forçadas, o distanciamento dos familiares causaram sentimentos de profunda mágoa e traição para essas mulheres.

Além disso, de acordo com o recente Indian Mental Health Care Act, a polícia é responsável por localizar a família da pessoa. Apesar deles não estarem autorizados a interná-las em uma instituição psiquiátrica, o consentimento das mulheres nunca foi solicitado pela polícia ou pela equipe do hospital. O Indian Mental Health Care Act também prevê que pessoas que vivem em hospitais psiquiátricos sem apoio familiar sejam transferidas para centros de reabilitação.

O estudo apresenta as experiências de mulheres que vivem em um centro de reabilitação, com foco em sua jornada de admissão no hospital e enfrentamento de desafios para retornar à sociedade.

Experiências de Viver no Hospital

Todas as participantes do estudo falaram sobre as condições de vida lamentáveis e desumanas no hospital. Com enfermarias superlotadas e acesso inadequado a alimentos, roupas e instalações sanitárias, as condições de vida no hospital eram terríveis. As participantes também compartilharam que viviam uma vida monótona, onde a maior parte do dia envolvia ficarem sentadas ociososamente. Além disso, as pacientes percebidas como “violentas” e “agitadas” recebiam punições de reclusão e contenção. Uma participante compartilhou:

No hospital, não havia aulas [comparando suas experiências com centros de reabilitação, onde havia aulas de terapia ocupacional e recreativa]. Elas [enfermeiras] nos davam muito trabalho para fazer e, se fizéssemos bem, elas nos forneceriam comida melhor. Às vezes, as enfermeiras batiam em pacientes que eram “violentos”. No hospital, não sabíamos ou entendíamos se estávamos tomando os medicamentos certos. Cerca de 500 mulheres faziam fila diariamente para receber seus comprimidos. Mas não sabíamos quais comprimidos eles estavam nos dando… era tudo um grande mistério. Às vezes, os médicos vinham em suas rondas e me diziam que eu estava curada, e era uma pena que, apesar de estar bem, minha família não me levava para casa.

Várias mulheres continuam internadas no hospital apesar de estarem curadas devido a falta de apoio das famílias. Além disso, é importante notar que, assim como sua admissão involuntária no hospital, as mulheres não tiveram voz ativa em suas decisões de alta também.

Barreiras para reinserção social

A casa de recuperação esperava reintegrar as mulheres na sociedade dentro dos nove meses de permanência na instituição. A equipe tentou repetidamente localizar as famílias das mulheres por meio da colaboração com a polícia, no entanto, eles enfrentaram vários desafios, o que levou muitas residentes a ficarem mais tempo na instituição.

As moradoras mencionaram vários fatores que as impediram de retornar às suas famílias. Isso incluiu falta de apoio familiar, falta de espaços comunitários alternativos, pobreza, baixo nível educacional e habilidades para conseguir emprego e seu próprio medo de retornar à sociedade.

Falando sobre a falta de apoio familiar, algumas moradoras compartilharam que vivenciaram violência e abuso como mulheres, o que aumentou ainda mais sua angústia e diminuiu suas chances de permanecerem dentro de suas famílias. Uma participante compartilhou:

Ninguém veio me ver aqui ou no hospital psiquiátrico. Então, pense na minha situação. Eu disse a eles [centro de reabilitação] que eu poderia ficar aqui para sempre, mas eu não sabia que eles [centro de reabilitação] não nos manteriam depois de nove meses. Estou preocupada e me sinto tensa, porque se eles me mandarem para casa, meu marido vai me bater de novo. Esta é a razão pela qual eu queria estudar e trabalhar. Estou com extrema necessidade de dinheiro.

Algumas moradoras tinham contato com suas famílias, mas faltava o apoio delas, pois constantemente expressavam sua relutância em levar as mulheres de volta para casa. Além da falta de apoio familiar, suas próprias desvantagens socioeconômicas também se tornaram uma barreira. Sobre a necessidade de dinheiro para viver uma vida independente, uma participante compartilhou:

As aulas que acontecem aqui (sejam de costura ou música) são para nossa terapia, mas não vão nos ajudar a encontrar emprego. As aulas são boas, mas não são relevantes, não vão ajudar as meninas a se tornarem independentes e autossuficientes. A educação é muito importante. Eu quero estudar. Quero me formar e concluir meu bacharelado, independentemente de conseguir um emprego mais tarde ou não. 

Além desses fatores, as participantes também têm seus próprios medos em relação a reinserção social. Desde a falta de habilidades para lidar com conflitos em casa até a perda de acesso aos medicamentos, já que suas casas são geograficamente distantes dos centros de recuperação – o medo de retornar às suas famílias eram significativos e inegáveis.

Identidades Interseccionais Femininas 

As mulheres muitas vezes são colocadas em desvantagem devido ao gênero. Além de sua identidade de gênero, um histórico de vida em um hospital psiquiátrico e o estigma de viver com problemas de saúde mental impactam sua autoestima, conforme relatado de forma semelhante por outro estudo . Elas também acreditam que seu sofrimento mental e emocional as impede de cumprir seus papéis como mães, filhas e esposas. Esta é uma das principais razões pelas quais as famílias muitas vezes veem as mulheres que vivem com problemas de saúde mental como um fardo e optam por “abandoná-las”.

Além disso, a incapacidade de suas famílias de pagar pelo tratamento as deixou sujeitas a condições de vida desumanas no hospital. Em tal situação, os participantes do estudo mencionaram que o emprego é essencial para alcançar a independência financeira, se afastar de famílias abusivas e construir suas próprias vidas.

Conclusão 

Embora o Indian Mental Health Care Act forneça transferência de cuidados de uma instituição para outra, o estudo mostrou que as vidas das participantes não melhoraram quando elas se mudaram dos hospitais governamentais para centros de recuperação. As residentes ficaram ainda mais desanimadas com a possibilidade de voltar para casa. Os autores descrevem como as instituições podem ser espaços mais seguros e enfatizam:

Também é importante reconhecer que as instituições geralmente são espaços mais seguros para mulheres que escapam do tráfico humano, da falta de moradia e de famílias e relacionamentos abusivos. Considerando isso, há uma necessidade de conversas contínuas sobre como as instituições podem ser reimaginadas e transformadas como espaços de cuidado, empoderamento e emancipação para mulheres que são abandonadas por suas famílias. 

Por fim, vale lembrar que dar voz as usuárias é uma das maneiras significativas de promover mudanças na forma como os grupos minoriários são tratadas pela psiquiatria.

***

Bhattacharya, A., Camacho, D., & Lukens, E. (2024). “Esses lugares são fáceis de entrar, mas impossíveis de sair”: Caminhos das mulheres para instituições psiquiátricas e barreiras à reentrada na comunidade na Índia.  Community Mental Health Journal ,  60 (2), 317-329 (Link de acesso)

Informações de contato do pesquisador: Anindita Bhattacharya ( [email protected] )

 

 

A Epidemia de Diagnósticos Psiquiátricos nas Redes Sociais

É público e notório para quem as navega que as redes sociais se tornaram uma verdadeira “feira-livre da saúde mental”, um mercado de ofertas, vendas e barganhas no qual uma grande variedade de soluções milagrosas promete identificar, corrigir, extirpar problemas, dificuldades e todo mal-estar existencial. 

É praticamente impossível passar incólume desta enxurrada de recomendações, dicas, orientações relacionais, existenciais, afetivas, comportamentais e subjetivas das mais diversas e duvidosas fontes. Paralelamente a isso, vemos mudanças sociais e psíquicas profundas a partir dos atravessamentos da virtualidade.  A instauração de novos modos relacionais, assim como novas formas de ser e estar no mundo colocam em check antigos referenciais, considerando o aparato tecnológico que atravessa a subjetividade contemporânea.

A abrangência destes fenômenos influencia tão substancialmente os modos de vida contemporâneos que não seria possível descrever em apenas um artigo. Por isso, traçarei breve e diretamente um panorama daquilo que compreendemos ser muito preocupante: os atravessamentos no campo da saúde mental promovidos pelas redes sociais, entre os quais o drástico aumento da epidemia de diagnósticos psiquiátricos nas redes sociais. Certos elementos incitam o fortalecimento desta epidemia diagnóstica estruturando os alicerces da sua arquitetura. 

No fluxo dos discursos circulantes nas redes, a normalidade passa a estar estreitamente atrelada à noção de plenitude, bem-estar integral e felicidade compulsória. Aquilo que destoa, incomoda, faz sofrer, desconcerta e aponta para as inconsistências, incoerências, imperfeições e opacidades do sujeito, rapidamente é capturado pela lógica patologizante e insígnias de diagnósticos psiquiátricos. Não todos. Apenas alguns.

Verificamos a imensa influência das redes sociais tanto na vasta produção dos conteúdos baseados em nomenclaturas do vocabulário psiquiátrico e a exploração exaustiva de certas categorias psiquiátricas que ampliam o alcance das publicações. Não todas, apenas algumas. Selecionadas, salientadas e reproduzidas à exaustão por aqueles mecanismos de comunicação e usuários, apresentados e disponibilizados de modos diferentes de acordo com as intenções e as ferramentas do aplicativo. Estes conteúdos insurgem como ondas, se avolumam, viram tendências (trends) entre os usuários, sejam profissionais da saúde mental ou não, com o intuito de conseguir maior visibilidade, seguidores, likes, compartilhamentos, engajamento e, na busca por retorno financeiro. Repetidos à exaustão vão adquirindo paulatinamente um certo estatuto de verdade, ao passo que os usuários (profissionais ou não) que surfam essas ondam também conseguem aumentar sua visibilidade.

Entre os elementos específicos destacados para a produção de conteúdo, escolhidos a dedo para serem explicados através de imagens, carrosséis, vídeos curtos, stories, postagens, há o sufocamento de qualquer possibilidade daquilo que se entende por singularidade, pensamento crítico/complexo.  Pelo contrário, a ideia é enxugar, simplificar. Simplificar tanto que, cada vez mais, os conteúdos assim despejados tornam-se desinformativos, fraudulentos e/ou distorcidos.

 Quanto mais simples, direto e objetivo, mais mastigado, melhor. 

Melhor para que (m)? 

Uma forte oposição no campo das redes sociais se apresenta. Por um lado, pessoas (influencers) com muitos seguidores, hypados, engajados, com muitos likes se propõe a falar sobre determinada temática sem ou com o mínimo aprofundamento sobre o assunto, mas conseguem produzir conteúdos virais. Por outro, profissionais com longa trajetória, conhecimento sólido, cujo repertório tecnológico torna-se enfadonho, com baixíssima repercussão comparativamente, não conseguem sequer que seus conteúdos sejam distribuídos pelos algoritmos. 

Um ponto de destaque: há uma busca desenfreada dos usuários por “saúde mental”, seja significando bem-estar, autocuidado, plenitude, anestesia ou até mesmo por promessas virais, palavras que engajam e viralizam que partem do universo psiquiátrico. Há um amplo apelo a divulgação sem critérios sobre saúde mental.

Nesta “feira livre multimidia da saúde mental”, a difusão de diagnósticos psiquiátricos é extremamente vendável, rentável, assim como a propagação de desinformação, produção de notícias e informações falsas, vendas de serviços diversos associados à saúde mental sem medir esforços, vídeos e dancinhas para sua divulgação. Baseados em um modelo privatista, os protocolos de cuidados, testes diversos para autodiagnóstico, venda de kits de tratamento baseados nos  diagnósticos, nichificação de mercado a partir de diagnósticos, vendas de serviços especializados, formações e cursos, combos de tratamento,  técnicas e práticas de cuidados dentro e fora dos registros da medicalização vendidas por especialistas e não especialistas fomentam uma enorme epidemia de diagnósticos nas redes sociais.

Outra forma de conseguir conexão com o interlocutor é a utilização da estrutura comunicacional da “jornada do herói”, através da qual se conta uma história em primeira pessoa, em geral, onde aquele criador de conteúdo consegue superar dificuldades, compreendidas constantemente como sofrimento e “adoecimento mental”. É comum que essas histórias estejam vinculadas às questões emocionais e diagnósticos psiquiátricos como depressão, crises de ansiedade, TDAH, TEA, etc.

Em 2017, no livro “Anatomia de uma epidemia”, Robert Whitaker já denunciava a ocorrência de uma epidemia de transtornos mentais em curso, associada diretamente ao uso desenfreado de psicofármacos. Uma questão importante apontada pelo autora seria: quanto mais se avançam as descobertas científicas acerca das doenças mentais e seus supostos tratamentos, primordialmente medicamentosos e cada vez mais eficientes teoricamente, mais doenças são identificadas. Se tomarmos como exemplo outros campos da medicinas, se esperaria uma redução das doenças, já que são identificadas e tratadas, contudo, no caso das doenças mentais ocorre o oposto, uma absoluta hiperinflação diagnóstica e explorações diversas.

Quase 10 anos após a publicação do livro de Whitaker, retomo as indagações: seria uma praga de doenças mentais espalhada entre adultos e crianças o que estamos vivendo? O que está havendo? Se as doenças mentais passaram a ser identificadas e tratadas cada vez mais precocemente, com substâncias mais eficientes, a que se deve efetivamente o aumento estarrecedor de transtornos mentais? Estes questionamentos nos convocam a pensarmos o que estamos produzindo enquanto sociedade.

Se as categorias diagnósticas em psiquiatria já encontram inúmeros problemas e fragilidades conceituais, instabilidade, estas apresentam-se exacerbadas e sem qualquer critério nas redes sociais em função dos próprios mecanismos de comunicação das redes, passível a edições, recortes, enviesamentos diversos e mascarados como “liberdade”, além de serem fortalecidas e exploradas pelos próprios profissionais de saúde mental em busca de reconhecimento.

 Através de uma linguagem extremamente simplificada, mecanismos diversos de acesso a esse conteúdo de forma praticamente instantânea, organizações algorítimicas, o apelo absoluto ao autocuidado se traduz na busca irrefreável por uma felicidade compulsória, como se tudo que ficasse de fora deste tipo de experiência de plenitude, completude e exímio funcionamento não fizesse parte daquilo que se concebe como “normal”. 

Benedeto Sarraceno já apontava os limites da tradição diagnóstica pautada somente na psicopatologia descritiva. Contudo, a cultura digital se alicerça na difusão de conteúdos, primordialmente, de orientação psicopatológica descritiva pautada no materialismo biológico, na cerebralização do discurso, na patologização e na medicalização. O Outro algorítmico busca aniquilar o sujeito e a singularidade, contudo, até agora, sem sucesso. 

A tentativa de supressão do sujeito não se restringe as descrições, mas a tendência de apresentar certa previsibilidade, estabilidade e coerência para aquilo que não se compreende, seguindo a lógica diagnóstica.

Se os dispositivos móveis são artefatos socioculturais e os aplicativos são objetos digitais, estes são produtos de tomada de decisão humana, sustentados por suposições tácitas, normas e discursos que circulam em contextos sociais e culturais nos quais são engendrados, comercializados e usados. Também vemos a distorção e a seleção dos conteúdos dos manuais psiquiátricos e da saúde mental para ampla divulgação sem critério, de modo irresponsável e sem qualquer regulamentação ou comprometimento ético.  Um campo insalubre, propício para o incremento ainda maior da epidemia diagnóstica em curso.

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O Mad in Brasil hospeda blogs de um grupo diversificado de escritores. Essas postagens são projetadas para servir como um fórum público para uma discussão – em termos gerais – da psiquiatria, saúde mental e seus tratamentos. As opiniões expressas são próprias dos escritores.

Manual de Psiquiatria Crítica, Capítulo 8: Depressão e Mania (Transtornos Afetivos) (Parte quatorze)

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Medications And Pregnancy. Expectant Lady Showing Pills In Hand Touching Belly Standing Over White Background. Shallow Depth, Cropped

Texto originalmente publicado no Mad in America , traduzido para o português por Letícia Paladino e revisado por Camila Motta.

Nota do editor: Nos próximos meses, a Mad in Brasil publicará uma versão serializada do livro de Peter Gøtzsche, Manual de Psiquiatria Crítica. Neste blog, ele aborda como os manuais didáticos discutem o uso de pílulas para depressão na gravidez, bem como como eles abordam a psicoterapia e a psicoeducação. A cada quinze dias, uma nova seção do livro será publicada e todos os capítulos estão arquivados aqui.

 

Gravidez

As pílulas para depressão estão entre as drogas prescritas mais comumente usadas por mulheres em idade reprodutiva. Na Dinamarca, 8% da faixa etária de 18 a 44 anos os utilizam.|263| Isso é preocupante, pois essas drogas parecem aumentar o risco de abortos espontâneos, interrupções voluntárias da gravidez, defeitos de nascimento e anomalias comportamentais em recém-nascidos,|483,484|e causam muitos outros danos sérios na prole.|336|

As orientações sobre gravidez eram inconsistentes e confusas. Os manuais didáticos geralmente colocavam a culpa na doença, não nos medicamentos. Por exemplo, um livro alertou que a depressão dobra o risco de desenvolver doenças cardiovasculares|16:259| e potencialmente aumenta as malformações cardíacas e complicações neonatais.|16:584|

Outro livro era confuso, contraditório e enganoso. Avisava que a depressão aumenta o risco de sangramento anormal durante a gravidez, aborto espontâneo, parto prematuro, morte fetal, eclampsia, outras complicações de nascimento, baixa qualidade de vida para a criança e falta de amamentação.|17:364|  No entanto, na mesma página, os autores notaram que as pílulas para depressão estão possivelmente associadas a um ligeiro aumento do risco de parto prematuro e complicações perinatais, e 13 páginas depois, que essas drogas provavelmente aumentam o risco de malformações.|17:377|

Após mais 291 páginas, este livro se contradisse novamente e tentou abranger os dois lados de uma maneira muito confusa|17:668|: A depressão não tratada pode causar parto prematuro e talvez também malformações. As pílulas para depressão podem aumentar espontaneamente os abortos, mas os estudos mais recentes falam contra malformações. No entanto, os autores notaram que a paroxetina está possivelmente associada a malformações cardíacas e complicações neonatais, e que há um aumento do risco de hipertensão pulmonar em recém-nascidos, o que pode ser fatal.

Se você não sabe o que dizer, é prudente não dizer nada em vez de confundir totalmente seus leitores. Não consigo entender nada do que foi dito acima, e isso piorou. Este livro notou que o Conselho Nacional de Saúde da Dinamarca recomenda sempre considerar a psicoterapia para mulheres grávidas que estão deprimidas.|17:365| De fato; nenhuma delas deveria tomar essas drogas. Mas, veja só, apenas uma página antes, o livro aconselhava que mulheres grávidas que estiveram deprimidas anteriormente devem ser tratadas profilaticamente com pílulas para depressão para reduzir o risco de recaída de cerca de 70% para cerca de 25%.|17:364| É impossível justificar essa recomendação horrível.

O Conselho de Saúde também se contradisse. Recomendou rastreamento rotineiro de depressão em gestantes e subsequente tratamento com pílulas para depressão, embora os dados disponíveis não sustentem essas recomendações.|485| Reconheceu que os ISRS aumentam a ocorrência de abortos espontâneos, diminuem o peso ao nascer, provavelmente aumentam a ocorrência de defeitos de nascimento, aumentam o risco em cinco vezes para desenvolver hipertensão pulmonar, que é um dano letal estimado em ocorrer em 6 a 12 recém-nascidos a cada 1.000, e aumentam complicações neonatais como irritabilidade, tremores, hipertonía e dificuldade para dormir ou amamentar.|485| artigo sobre isso o chamou apropriadamente de síndrome de abstinência neonatal.|486|

Com licença, mas o Conselho de Saúde enlouqueceu? Um grande estudo de coorte dinamarquês com 500.000 crianças mostrou que o risco de defeito do septo cardíaco é dobrado.487 Isso não é trivial, pois 1% dos fetos tratados terá um defeito de septo. Os defeitos cardíacos ao nascer são exatamente o que esperaríamos ver, pois a serotonina desempenha um papel importante no funcionamento do coração. Vimos defeitos valvulares letais e hipertensão pulmonar letal em adultos que tomaram drogas para emagrecimento que aumentam os níveis de serotonina, e essas drogas foram retiradas do mercado.|6:144|

A recomendação do Conselho para rastreamento era tão absurdamente prejudicial que escrevi uma pequena esquete sobre isso,|488| que um psicólogo e eu realizamos espontaneamente como a introdução da minha palestra sobre psiquiatria, lendo-a em voz alta do meu computador. Está no YouTube com legendas em inglês.|489| Entre seus muitos postulados estranhos em relação à gravidez, este livro também afirmava que os riscos de depressão e distúrbios comportamentais aumentam em crianças de 18 anos cujas mães não foram tratadas durante a gravidez por sua depressão.|17:365|

Como não acreditava que isso pudesse ser verdade para drogas que não funcionam, procurei as evidências a que os autores se referiam, que eram uma diretriz clínica de 2014 sobre o uso de drogas psiquiátricas durante a gravidez produzida pela Associação Dinamarquesa de Psiquiatria, pela Sociedade Dinamarquesa de Obstetrícia e Ginecologia, pela Sociedade Dinamarquesa de Pediatria e pela Sociedade Dinamarquesa de Farmacologia Clínica.|490| Com tantas pessoas experientes envolvidas, era esperado que a diretriz fosse confiável, mas pode ser melhor descrita como sendo flagrantemente desonesta.

A diretriz afirmava que há “uma maior incidência de depressão em crianças de 18 anos cujas mães não foram tratadas durante a gravidez por sua depressão (Pearson et al., 2013)” e que “a depressão não tratada durante a gravidez parece aumentar o risco de desenvolver distúrbios comportamentais na criança (Pedersen et al., 2013).”

Nenhuma dessas afirmações era verdadeira. O artigo de Pearson et al. não dizia nada sobre se as mulheres foram tratadas ou não durante sua depressão. O que o artigo mostrou foi que se uma mãe estava deprimida, o risco de sua prole se tornar depressiva aumentava, mas apenas para mães com baixa escolaridade.|491| Isso não tem nada a ver com tratar ou não tratar uma depressão, mas sim com condições de vida precárias, que também são frequentemente o caso da prole. Quando as condições de vida são deprimentes, as pessoas ficam deprimidas. Não há uma grande surpresa aqui.

O artigo de Pedersen et al. não documentou de forma alguma que a depressão não tratada aumenta o risco de distúrbios comportamentais na criança.|492| Isso já era claro no resumo: “A exposição a antidepressivos no período pré-natal não foi associada a escores anormais no SDQ (Questionário de Pontuação de Dificuldades) em comparação com a exposição à depressão prenatal não tratada ou à ausência de exposição.” Mas o resumo também relatou os resultados do que chamamos de uma ‘pescaria estatística’ Quando um resultado é negativo, é uma prática de pesquisa muito ruim relatar subgrupos de pacientes ou itens selecionados em uma escala, mas foi isso que os autores fizeram: “A depressão não tratada foi associada a pontuações anormais no SDQ nas subescalas de conduta [razão de chances ajustada (aOR) 2.3 (IC 95%, 1.2-4.5)] e problemas pró-sociais [aOR 3.0 (IC 95%, 1.2-7.8)] em comparação com crianças não expostas.” Eles não apenas selecionaram itens em uma escala, como também não compararam a depressão não tratada com a depressão tratada, mas com pessoas que não estavam deprimidas e eram saudáveis!

Nas tabelas, não havia uma única diferença significativa entre a pontuação total ou qualquer um dos subitens na pontuação quando mulheres tratadas com depressão foram comparadas com mulheres não tratadas com depressão. Mas os autores novamente foram à pesca para encontrar o que relataram no resumo para conduta: “Incluindo apenas mulheres com pontuação normal de MDI [depressão] no momento do acompanhamento”. Para problemas pró-sociais, não consegui encontrar o odds ratio ajustado de 3,0, que foi alegado ser estatisticamente significativo. Não estava em lugar algum no artigo, mas havia essa informação: “A associação pró-social não era mais estatisticamente significativa, OR 2.2 (IC 95%, 0.8-6.5)” (quando incluídas apenas mulheres com uma pontuação normal de depressão).”

É incrível que esse tipo de lixo, com análises de dados forçadas, possa ser publicado, mas a literatura científica está cheia disso. Uma revisão sistemática descobriu que análises de subgrupos em ensaios eram mais comuns em revistas de alto impacto; e em ensaios sem resultados estatisticamente significativos para o resultado primário, ensaios financiados pela indústria eram duas vezes mais propensos a relatar análises de subgrupos do que ensaios não financiados pela indústria e duas vezes mais propensos a não terem especificado as hipóteses de subgrupo.|493|

Este manual didático observou que o valproato e o carbamazepina são contraindicados devido ao alto risco de defeitos do tubo neural.|17:669| Eu me pergunto por que os autores não alertaram contra todas as drogas antiepilépticos.

Psicoterapia e psicoeducação

A psicoterapia não é uma solução mágica contra os transtornos psiquiátricos. Ela nem sempre funciona, mas é a melhor intervenção que temos.

Os manuais didáticos eram, às vezes, contraditórios e enganosos. Um observou que 50% dos pacientes com depressão não são tratados; que muitos deles provavelmente têm depressão leve; e que a psicoterapia encurtará a fase da doença, previnirá a cronicidade e proporcionará alívio óbvio para os pacientes.|16:257| Infelizmente, o livro aconselhou que ISRS ou tricíclicos poderiam ser usados em vez da psicoterapia para depressão moderada ou em combinação com ela. Para a depressão severa, a psicoterapia não foi aconselhada, mas a internação hospitalar, tricíclicos, tricíclicos mais pílulas para psicose e eletrochoque foram.|16:272|

Esse é um tema familiar. Quanto pior a doença, mais os pacientes sofrerão com tratamentos que não os ajudam. Isso não é medicina baseada em evidências.

O livro, em que todos os autores são psiquiatras, desacreditou a psicoterapia ao afirmar que as pílulas podem ser combinadas com terapia conversacional de forma vantajosa, o que também aumenta a adesão.|18:238| Assim, pílulas primeiro, mesmo que não funcionem, e a psicoterapia tem como único objetivo manter os pacientes usando as pílulas que os prejudicam e que muitos pacientes prefeririam evitar. Quando perguntados sobre o que preferem, seis vezes mais pessoas preferem psicoterapia a pílulas, |494|, mas recebem exatamente o oposto. Uma pesquisa de 2002 com psiquiatras infantis e adolescentes dos EUA mostrou que 91% de seus pacientes eram tratados com drogas psiquiátricas|495|. Apenas nos 9% restantes, a psicoterapia foi usada sem drogas. Na Suécia, o Conselho Nacional de Saúde recomenda que todos os adultos com depressão leve a moderadamente severa sejam oferecidos psicoterapia, mas apenas 1% a recebe|496|.

Isso ilustra que a psiquiatria é uma profissão perversa. Ela não ajuda os pacientes como eles desejam ser ajudados, mas ajuda a si mesma.

Este manual didático recomendou espera vigilante ou conversas de apoio para depressão leve, psicoterapia para depressão moderada e pílulas para depressão mais severa|18:123|. Os autores afirmaram que o efeito preventivo das drogas era mais pronunciado do que o da psicoterapia,|18:126| o que é falso e foi contradito por outro livro, que observou que o efeito da psicoterapia dura mais do que o das drogas|16:277|. Como esperado, estudos com acompanhamento de longo prazo mostram que a psicoterapia tem um efeito duradouro que supera a farmacoterapia,|180,497-501| e quando os psiquiatras acreditam que as pílulas previnem recaídas, eles confundem efeitos de abstinência com recaída (veja os Capítulos 7 e 8).

Um terceiro livro aconselhou psicoterapia para depressão moderada e severa,|17:359,17:363| mas não para depressão severa que requer internação hospitalar|17:359|. Observou-se que a psicoterapia deve ser considerada na maioria das vezes quando o paciente está em remissão|17:363| e afirmou que uma redução pela metade na pontuação da depressão foi obtida em 60% dos pacientes tratados com drogas e psicoterapia|17:359|.

Esta afirmação é sem sentido. Não pode ser interpretada sem saber o que aconteceu com os outros 40% dos pacientes. Se a pontuação deles aumentou marcadamente, o efeito geral pode ser zero. A medicina baseada em evidências não se trata do que aconteceu em algum subgrupo selecionado de pacientes, mas do que aconteceu em média. Esses autores consideraram a psicoterapia uma opção secundária, o que contradisse um capítulo sobre psicoterapia no mesmo livro, onde outros autores notaram que o tamanho do efeito em uma meta-análise era bastante alto e que, em muitos casos, a psicoterapia era custo-efetiva em comparação com as drogas.|17:675| Parece ser correto que a psicoterapia é mais custo-efetiva do que outras formas de terapia|502|.

Um quarto manual também priorizou as pílulas, embora tenha notado que o efeito da psicoterapia e das pílulas era aproximadamente o mesmo para depressão leve e moderada|20:435|. Isso é enganoso porque o efeito também é aproximadamente o mesmo na depressão severa |503|. O livro observou que o Conselho Nacional de Saúde encontrou um efeito melhor de combinar psicoterapia com pílulas do que de pílulas sozinhas, mas não mencionou que a diretriz do Conselho recomendou fortemente oferecer psicoterapia, em combinação com pílulas, a pacientes com depressão moderada ou severa|504|. Isso foi contradito por outro livro, que observou que para depressão leve ou moderada, não havia evidência de um efeito maior da combinação do que de drogas ou psicoterapia sozinhas, embora afirmasse que esse era o caso para depressão crônica |16:278|.

Era totalmente confuso. E por que uma combinação funcionaria para depressão crônica quando não funcionou para depressão moderada, e o que é depressão crônica? A diretriz do Conselho de Saúde tinha uma importante reserva: “A terapia de combinação demonstrou um efeito aumentado em relação à monoterapia, mas os pacientes frequentemente não foram acompanhados além do final da intervenção. O grupo de trabalho deseja esclarecer os efeitos a longo prazo da terapia de combinação consistindo em farmacoterapia antidepressiva e psicoterapia.”

É notável que três manuais didáticos não recomendassem psicoterapia para depressão severa,|16,18,20| e que um quarto não a recomendasse para depressão que requer internação hospitalar|17|. O único manual que aconselhou psicoterapia para depressão severa foi aquele sobre psiquiatria infantil e adolescente,|19:214| mas, infelizmente, este livro aconselhou que a psicoterapia deveria ser combinada com fluoxetina, que é insegura e ineficaz (veja a página 112).

Um manual didático afirmou que o tratamento da bipolaridade em crianças envolve drogas, além da psicoeducação, mas não disse que as drogas deveriam ser usadas apenas se a psicoeducação não funcionasse|19:220|.

Dois outros afirmaram que a psicoeducação pode reduzir pela metade o risco de novas depressões ou manias em pacientes bipolares e reduzir internações hospitalares, mas acrescentaram que isso provavelmente se devia a uma melhor adesão ao tratamento (com drogas)|16:306,17:376|. Um deles deu uma referência a essa afirmação,|17:376| que foi um ensaio randomizado de psicoeducação |505|.

Acontece que as alegações do manual didático sobre melhor adesão ao tratamento com drogas eram falsas.505 Os pesquisadores randomizaram 120 pacientes bipolares em 21 sessões semanais de psicoeducação em grupo ou reuniões de grupo não estruturadas e o efeito foi avaliado de forma cega. Durante o tratamento, 23 vs 36 pacientes tiveram uma recidiva (P < 0,05); ao final do acompanhamento, esses números eram 40 vs 55 (P < 0,001); e houve significativamente menos dias de internação, 4,8 vs 14,8 (P < 0,05).

No acompanhamento de 2 anos, uma pequena diferença foi encontrada nos níveis de lítio, 0,76 vs 0,68 mEq/L (P = 0,03), enquanto não houve diferenças nos níveis de valproato ou carbamazepina, e nenhuma diferença em relação ao tratamento com drogas.

Os autores escreveram na discussão que, “comparados aos pacientes de controle, os pacientes psicoeducados tinham níveis de lítio mais altos no acompanhamento de 2 anos, o que pode sugerir um efeito da psicoeducação na adesão à farmacoterapia.”

Assim, os autores do ensaio não sugeriram que a pequena diferença nos níveis de lítio poderia explicar os pronunciados efeitos que encontraram da psicoeducação. É distorcer os dados ao extremo quando os autores do manual didático escrevem que isso era provável, em vez de apenas aceitar que a psicoeducação é altamente eficaz.

Um manual didático observou que, embora os estudos de PET sejam preliminares, há muito a sugerir que a redução de sintomas durante a psicoterapia pode normalizar o metabolismo em certas áreas cerebrais afetadas durante a depressão|16:269|. Estudos de imagem cerebral são altamente não confiáveis (veja o Capítulo 3), mas esta foi uma rara ocasião em que não foram usados para promover drogas, mas sim a psicoterapia.

 

Para ver a lista de todas as referências citadas, clique aqui.

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Mad in Brasil (Texto original do site Mad in America ) hospeda blogs de um grupo diversificado de escritores. Essas postagens são projetadas para servir como um fórum público para uma discussão – em termos gerais – da psiquiatria, saúde mental e seus tratamentos. As opiniões expressas são próprias dos escritores.

As Big Techs e os Desafios para a Política Nacional de Saúde Mental Antimanicomial

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Para Fernando Freitas

Na terça-feira (07/01/2025), assistimos ao anúncio de Zuckerberg sobre alterações relacionadas aos algoritmos das redes sociais que comanda, dentre essas mudanças, o CEO fez questão de anunciar a liberação de se associar questões de sexualidade a transtornos mentais. Uma mudança radical na postura das BigTech que vendiam a vibe “descoladas e moderninhas, abertas à diversidade”. O recuo ideológico aponta para nós, lutadoras e lutadores antimanicomiais um cenário complexo, de avanço da patologização, agora declaradamente apoiado pelas redes sociais, que exigirá organização da luta e
resistência.

Em momentos de agudização da crise, o Capital não se furta em lançar mão de suas pautas fascistas e eugenista na garantia de manutenção do status quo. O duplo retrocesso nas redes sociais sobre a pauta LGBTQIA+ e da pauta da saúde mental é prova de que o avanço da extrema direita, de ideais nazifascistas não são ao acaso, mas é sim um projeto articulado pelas grandes potências econômicas
mundiais.

Mas, o que isso impacta nossa política nacional de Saúde Mental e em nosso dia-a-dia?

É preciso retomar um pouco a história da psiquiatria para que possamos entender esses impactos. A psiquiatria denominada científica, como uma especialidade das ciências médicas, tem um marco importante no final do século XIX com Kraeplin e seu sistema nosológico. Naquela ocasião, Kraepelin (1887/2005) discutia a crise da psiquiatria (1886) justamente por ela não conseguir responder aos problemas aos quais se dedicava, com a mesma “eficácia” de outras especialidades médicas. A solução, para o autor, era a utilização dos métodos da Psicologia Experimental de Wundt como base das investigações psiquiátricas.

Seguindo esses passos, Kraepelin desenvolve um sistema nosológico que tem embasado a psiquiatria desde então. Principalmente, a partir da terceira edição do DSM. Muito embora, atualmente, apenas parte das ideias kraepelinianas ainda se encontram presentes nas formulações diagnósticas em saúde mental baseadas no DSM, há um elemento fundante que permanece na lógica de se fazer diagnóstico na psiquiatria hegemônica: o modelo biomédico, radicado em um ideal eugênico e higienista de saúde; como bem nos chama atenção o “SPK Fazer da doença uma arma” (movimento de paciente/usuárias/os alemães
da década de 70 “Coletivo Solcialista de Pacientes de Heidelberg) em seu manifesto. De acordo com eles: “Saúde é um conceito totalmente burguês. O capital como um todo estabelece uma norma média de exploração da mercadoria força de trabalho [da mercadoria ser humana]. (…) Ser saudável significa ser explorável.” (SPK, 2024 p. 38).

A ideologia burguesa, pode-se dizer, constitui a base da psiquiatria hegemônica (e das ciências médicas e da saúde em geral) dando a tônica não apenas nos modos de se fazer diagnóstico em Saúde Mental, como também, nos modos de atenção às pessoas em sofrimento psíquico. Não à toa é o nome de Kraepelin que é tratado como “pai da psiquiatria”, um eugenista convicto, que junto com Wundt compôs um movimento de resistência ao processo democrático que se instaurava na Alemanha naquela época, pois acreditava que um líder escolhido pela maioria das população não seria alguém preparado para governar, pois os governantes aristocráticos haviam herdado essa capacidade de seus antepassados, herdando as melhores características de forma hereditária. Assim, o autor afirma:

A ascensão de certas classes a posições confortáveis e importantes na vida deve ter dependido desde o início de que elas provassem sua coragem na luta por existência (Dasein Kampf). A luta garantiu-lhes uma posição superior em seu ambiente. Além disso, pode-se supor que seus traços positivos foram herdados e, portanto, que as gerações posteriores de uma antiga linhagem familiar que defendeu sua posição ao longo
dos séculos manteve, até certo ponto, aquelas características que uma vez facilitaram sua existência Por outro lado, parece óbvio que os ancestrais daqueles pertencentes às classes mais baixas não possuíam, em geral, características que os equipassem para realizações extraordinárias e, portanto, não poderiam transmitir tais características. (Kraepelin, 1919 p. 181 apud Engstrom, 1991 p. 150).

Kraepelin entendia que a “degeneração”, a tendência à criminalidade e ao desenvolvimento de sofrimentos psíquicos era uma questão hereditária (a genética naquele momento era uma ciência incipiente).

A ciência, é importante lembrar, não é descolada de ideologias e de seu contexto histórico, político, social… a ideologia impregnada nas formulações diagnósticas de Kraepelin, a importação dessas ideias ao modelos diagnósticos atuais cumprem funções sociais que, de forma hegemônica, tem bases eugênicas e, portanto, higienistas. Hobsbawm, um dos maiores historiadores de último século, anuncia as validações dos ideais eugênicos
pela via do que hoje, como ciência mais desenvolvida do que na época de Kraepelin, denomina-se genética:

O que tornou a eugenia “científica” foi justamente o surgimento da genética após 1900, que parecia sugerir a exclusão total das influências ambientais na hereditariedade e a determinação, por um único gene, da maioria ou de todas as características; isto é, que o cruzamento seletivo dos seres humanos segundo o processo mendeliano era possível. (Hobsbawm, 2012 p. nd. – Versão para Apple Books – gritos nossos).

Contudo, no campo de estudos da genética mesmo, é sabido e largamente estudado a interação do organismo com o meio e como isso afeta os fenótipos, o que chamamos “epigenética”, aquilo que está sobre a genética. Para nós, seres humanos/os o meio social e a sociabilidade nos é imprescindível, somos seres sociais em essência, nosso organismo biológico é dotado de plasticidade (como a maioria dos organismos multicelulares) e nosso processo saúde e doença deve ser entendido a partir das determinações sociais-históricas e não apenas biológicas.

Isso quer dizer que, nossa herança genética, como afirmam Lewins e Levontin (1985), dá conta de características básicas como cor dos olhos, cabelos, estatura, etc. Mas, as formas mais complexas de nosso comportamento, desenvolvimento, nossa consciência são produtos de nossas interações sociais, de nossa sociabilidade, ao longo da história de nossa vida. Então, é preciso entender que a nossa constituição enquanto seres humanas/os perpassa pelo contexto social, histórico e, consequentemente, político (Furtado, 2024). Não somos indivíduos autogeridos, somos seres que dependemos do chão da história, expresso na sociabilidade constituída coletivamente/socialmente.

Como Marx (2011) já dizia: “Os homens [e mulheres] fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha, e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, ligadas e transmitidas pelo passado.” (p. Nd. Versão para kindle). O que temos diante de nós agora, os meios pelos quais deveremos conduzir nossa história, ante o explícito avanço do neoliberalismo e as expressões ultraconservadoras diante da iminente falência do modelo capitalista, será nossa luta e resistência nas trincheiras da luta antimanicomial, para não deixar que nossa política (e soberania nacional) sejam assoladas. O que não se construirá apenas a partir de nossa pauta, mas de organização coletiva.

A falência do capital, no sentido da impossibilidade de sua manutenção da forma como está, se expressará, para quem ainda não pôde construir seu bunker, pela barbárie, como já anunciavam alguns intelectuais franceses do grupo Socialismo ou Barbárie, inspirados por Rosa Luxemburgo. Eis o que se apresenta diante de nós: a barbárie! Que instrumentalizando as pautas da psiquiatria e da criminalidade (e a associação entre as duas), retoma seus fundamentos eugênicos sobre os quais se ergueu. Essa realidade já se expressa em na nossa política nacional, com a aprovação pela câmara dos deputados
federais do PL 551/2024, inserido no PL 1637/2024 que altera a lei 10.216, e agora segue para o senado com grandes chances de aprovação, se não nos mobilizarmos. Em uma contra ofensiva à decisão do CNJ de acabar com os manicômios judiciários.

E é aqui que a fala do dono da Meta nos implica como militantes da luta antimanicomial. Ao informar a retirada do filtro que associa questões LGBTQIA+ às questões de saúde mental, ele remonta aos princípios conservadores kraepelinianos.

Qual o interesse nisso?

Podemos citar dois interesses que de pronto nos levam às tentativas de manutenção e expansão do capital, baseado no aumento da exploração-opressão da “mais-valia”. Sim, isso mesmo, eis o fim posto desse sistema: manter e aumentar o lucro dos super ricos, enquanto esmagam até o suco, doutrinam, dopam, medicalizam, dominam e exploram a classe trabalhadora.

Na selva do capital, a arma ideológica do processo de exploração, compõe com as expressões das opressões uma unidade poderosa, para diminuir, discriminar e patologizar todas aquelas formas de comportamentos que fogem ao padrão do ethos burguês (do homem, branco, cis, patriarcal, hétero e dono dos meios de produção)(Pinheiro, 2022). O que serve para justificar uma política de maior expropriaçãocdas forças de trabalho quanto mais as pessoas se distanciam desse padrão estético da classe exploradora.

O esgarçamento dos limites do capitalismo cada vez mais evidentes, convoca os super ricos a se reposicionarem também em pautas ideológicas, assistiremos as grandes marcas revogarem suas políticas de diversidade e se alinharem ao processo ultra-conservador que se desenha diante dos nossos olhos. Mas, a discriminação “do diferente”, a eliminação da diversidade humana e a redução ideológica que classifica como “humano” apenas aqueles que mais se aproximam “do padrão”, ao passo que desqualifica quem é diferente, encontra na psicopatologizacão dessa diferença e na sua medicalização uma forma de aumentar ainda mais o lucro da indústria farmacêutica. A psicopatolização mercantiliza o sofrimento humano produzido pela exploração e opressão.

Para se ter noção da importância das farmacêuticas na economia mundial, o mercado dos medicamentos responde hoje pelo terceiro maior setor da economia norte-americana, correspondente à US$ 840 bilhões de receita (R$4,2 trilhões), sendo responsável pela maior parte da produção de medicamento no mundo: 40% (De acordo com dados da ABRADILAN, 2024). Nessa esteira, os psicofármacos se tornam “queridinhos” da indústria e dos investimentos estatais, a importância do desenvolvimento de pesquisas sobre o cérebro e produtos que tenham como alvo o aumento do rendimento intelectual, emocional, enfim, da produtividade da classe trabalhadora, foi comparado por Barack Obama (2012) à corrida espacial. Com duas grandes potências econômicas nessa corrida: União Europeia e Estados Unidos.

Assim, não deve nos restar dúvidas sobre os interesses econômicos no processo de patologização da vida. E, como todo interesse econômico, este não está direcionado para o processo de cuidado de seres humanas e seres humanos, mas sim, em aumentar sua capacidade e necessidade de consumir e, sobretudo, sua capacidade produtiva para continuarem sendo exploradas e oprimidas e manter a máquina do lucro funcionando. O interesse, não nos enganemos, não é relacionado ao desenvolvimento humano, mas sim voltado para o desenvolvimento dos lucros e manutenção do capital.

As redes sociais, nesse ponto, têm assumido papel importante no impulsionamento da ind. farmacêutica, capturando os princípios dos movimentos identitários revolucionários, promovendo, no campo da saúde mental, um processo de identitarismo com os diagnósticos psicopatológicos. Substituindo, assim, a luta histórica de usuárias e usuários de não serem reduzidas aos seus diagnósticos, para a de sujeitos que se apresentam a partir de seu diagnóstico. Desta forma, onde havia uma condição passível de superação,
agora se apresenta como uma identidade (como é o caso do TDAH, por exemplo), o que engendra a cronificação dos sofrimentos psíquicos e quase que “naturalmente” justifica a medicalização das condições socialmente fabricadas.

A conformação de identidades psicopatológicas ratificam as noções biomédicas, apoiadas pela hereditariedade com a autoridade do discurso médico da genética; reduz a complexidade do ser social ao biológico e incute um discurso fatalista e da impossibilidade de superação de determinadas condições. Ainda que diversos estudos, desde a década de 1930 (com a crítica de Vigotski (1931/2006) ao diagnóstico, por exemplo), demonstrem o limite do biologicismo para se apreender os sofrimentos psíquicos. Estes estudos, cabe ressaltar, passam a ser invalidados, mesmo invisibilizados.

O conservadorismo avança a passos largos e tomará conta de todos os aspectos de nossas vidas, inclusive no campo da saúde, com auxílio das redes sociais, a manipulação das informações tomará contornos cada vez mais violentos, hostis e discriminatórios a todas aquelas e aqueles que não compõem “o padrão”. Serão tempos duros, que nos exigirá resistência e ainda mais força para lutar.

A defesa dos princípios antimanicomiais, despatologizantes e desmedicalizante exigirá de nós ainda mais capacidade de mobilização, para manter acesa a chama da luta pelo reconhecimento de nossa humanidade para além de nossos diagnósticos, para que sejamos pessoas de ativo enfrentamento ao contexto ideológico, para que não sejamos medicalizadas, exploradas e oprimidas. Urge, como Paulo Amarante e outros/as intelectuais tem apontado, de retomarmos de forma retumbante os princípios da luta. Uma sociedade livre dos manicômios é também uma sociedade que nos liberte da exploração-opressão de seres humanos/as por outros/as seres humanos/as. o Enfrentamento ( com “ E” maiúsculo) ao modelo eugenista biomédico tem que ser agora, portanto: Trabalhadoras, trabalhadores, usuárias, usuários e familiares da
Saúde Mental uni-vos!

Referências Bibliográficas:
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FURTADO, V.C. (2024) Determinação Social da Esquizofrenia: Fundamentos Ontológicos para o
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HOBSBAWM, E. (2012) A Era dos Impérios. São Paulo: Paz e Terra.
KRAEPELIN, E. (1887/2005). The directions of psychiatric research. (“Classic Text No. 63”, tradução e
notas de E. J. Engstrom e M. M. Weber). History of Psychiatry, v. 16, n. 3, p. 350-364. Disponível em:
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MARX, K (2011) Os 18 de brumários de Luís Bonaparte. São Paulo: Boitempo editorial.
MOYSÉS, M. A. A., & COLLARES, C. A. L. (2007). Medicalização: elemento de desconstrução dos
direitos humanos. Direitos Humanos: O que temos a ver com isso, 153-168.
PINHEIRO, P. W. M. (2022) Entre os Rios que tudo Arrastam e as Margens que os Oprimem: as
determinações ontológicas da unidade exploração-opressão. (Tese de Doutorado) Universidade de
Brasília.
PSK (1971/2024) Fazer da doença uma arma. São Paulo: Ubu editora
VYGOTSKI, L. S (1931-1933/2006) Obras Escogidas – IV: Psicologia infantil. Madrid: Antonio

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