Lançamento do E-book do 8º Seminário Internacional A Epidemia das Drogas Psiquiátricas: os desafios da retirada dos psicofármacos.

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Aconteceu nos dias 5 e 6 de dezembro de 2024 na Fiocruz a oitava edição do Seminário Internacional das Drogas Psiquiátricas. O evento contou com nomes nacionais e internacionais de peso para apresentarem uma perspectiva crítica das questões acerca dos efeitos do uso das medicações psiquiátricas, além das perspectivas atuais em torno da patologização da vida.

O evento foi organizado pelo Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial (LAPS) vinculado à ENSP/Fiocruz e pelo Centro de Estudos Estratégicos (CEE), em parceria com organizações de apoio, além de iniciativas de economia solidária presentes no Seminário.

O e-book conta com a transcrição completa das falas dos palestrantes, e seu lançamento tem como intenção uma contribuição com o debate crítico em torno da saúde mental, os processos atuais da reforma psiquiátrica no Brasil e América Latina, assim como o engajamento pela luta antimanicomial.

LINKS PARA ASSISTIR AO EVENTO:

20/06/2024 – MANHÃ https://www.youtube.com/watch?v=CofnGsjiqyI&t=3s
20/06/2024 – TARDE https://www.youtube.com/watch?v=pk7ZzgyJ2yk&t=3s
21/06/2024 – MANHÃ https://www.youtube.com/watch?v=RH2vLgw46uo
21/06/2024 – TARDE https://www.youtube.com/watch?v=Q_ePb29dkcQ&t=5s

Encontra-se disponível para BAIXAR, gratuitamente, aqui → (https://laps.ensp.fiocruz.br/arquivos/documentos/53)

 

 

Entrando e Saindo de Instituições Psiquiátricas: Experiências Angustiantes de Mulheres Indianas

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Artigo pulicado originalmente no www.madinsouthasia.org, traduzido por Camila Motta e revisado por Paulo Amarante. 

Existem 46 hospitais psiquiátricos estatais na Índia. É comum que mulheres com problemas de saúde mental vivam nessas instituições por períodos muito longos. Elas são chamadas de “mulheres abandonadas” devido as suas estadias de longo prazo em hospitais psiquiátricos devido a falta de apoio familiar. Um novo estudo foi conduzido por Anindita Bhattacharya, David Camacho e Ellen Lukens, que investiga as razões por trás das estadias de longo prazo. Os pesquisadores descobriram que desigualdade de gênero, falta de apoio familiar, pobreza e violência familiar frequentemente levam à admissão de mulheres em instituições psiquiátricas. Além disso, esses fatores também atuam como barreiras a sua reinserção na comunidade.

A maioria das internações hospitalares de mulheres é involuntária. Este não é apenas um cenário indiano, mas também um que foi relatado em Nova York . As famílias admitem mulheres sem seu consentimento devido a uma série de razões, algumas delas incluem dar entrada em divórcios, negar-lhes a custódia dos filhos e tirar suas propriedades. Depois de interná-las em hospitais, as famílias também tendem a fornecer números de telefone e endereços errados para garantir que não haja contato com elas. Em alguns casos, mulheres que fogem de lares abusivos, assim como das armadilhas do tráfico, foram presas pela polícia e colocadas em uma instituição psiquiátrica.

Os pesquisadores descobriram que entre as onze mulheres entrevistadas no estudo:

“ As participantes foram admitidas no hospital psiquiátrico por sua família de origem, família do marido ou pela polícia. Duas mulheres escaparam de famílias abusivas e uma escapou do tráfico de pessoas; essas três participantes relataram que ficaram desabrigadas durante meses, antes da admissão no hospital pela polícia .” 

As internadas em hospitais governamentais por seus familiares foram forçadas a isso devido à pobreza, pois pagar por tratamento psiquiátrico privado era um luxo para elas. Depois de interná-las no hospital, os familiares raramente vinham visitá-las. Embora elas não expressassem raiva pelas internações forçadas, o distanciamento dos familiares causaram sentimentos de profunda mágoa e traição para essas mulheres.

Além disso, de acordo com o recente Indian Mental Health Care Act, a polícia é responsável por localizar a família da pessoa. Apesar deles não estarem autorizados a interná-las em uma instituição psiquiátrica, o consentimento das mulheres nunca foi solicitado pela polícia ou pela equipe do hospital. O Indian Mental Health Care Act também prevê que pessoas que vivem em hospitais psiquiátricos sem apoio familiar sejam transferidas para centros de reabilitação.

O estudo apresenta as experiências de mulheres que vivem em um centro de reabilitação, com foco em sua jornada de admissão no hospital e enfrentamento de desafios para retornar à sociedade.

Experiências de Viver no Hospital

Todas as participantes do estudo falaram sobre as condições de vida lamentáveis e desumanas no hospital. Com enfermarias superlotadas e acesso inadequado a alimentos, roupas e instalações sanitárias, as condições de vida no hospital eram terríveis. As participantes também compartilharam que viviam uma vida monótona, onde a maior parte do dia envolvia ficarem sentadas ociososamente. Além disso, as pacientes percebidas como “violentas” e “agitadas” recebiam punições de reclusão e contenção. Uma participante compartilhou:

No hospital, não havia aulas [comparando suas experiências com centros de reabilitação, onde havia aulas de terapia ocupacional e recreativa]. Elas [enfermeiras] nos davam muito trabalho para fazer e, se fizéssemos bem, elas nos forneceriam comida melhor. Às vezes, as enfermeiras batiam em pacientes que eram “violentos”. No hospital, não sabíamos ou entendíamos se estávamos tomando os medicamentos certos. Cerca de 500 mulheres faziam fila diariamente para receber seus comprimidos. Mas não sabíamos quais comprimidos eles estavam nos dando… era tudo um grande mistério. Às vezes, os médicos vinham em suas rondas e me diziam que eu estava curada, e era uma pena que, apesar de estar bem, minha família não me levava para casa.

Várias mulheres continuam internadas no hospital apesar de estarem curadas devido a falta de apoio das famílias. Além disso, é importante notar que, assim como sua admissão involuntária no hospital, as mulheres não tiveram voz ativa em suas decisões de alta também.

Barreiras para reinserção social

A casa de recuperação esperava reintegrar as mulheres na sociedade dentro dos nove meses de permanência na instituição. A equipe tentou repetidamente localizar as famílias das mulheres por meio da colaboração com a polícia, no entanto, eles enfrentaram vários desafios, o que levou muitas residentes a ficarem mais tempo na instituição.

As moradoras mencionaram vários fatores que as impediram de retornar às suas famílias. Isso incluiu falta de apoio familiar, falta de espaços comunitários alternativos, pobreza, baixo nível educacional e habilidades para conseguir emprego e seu próprio medo de retornar à sociedade.

Falando sobre a falta de apoio familiar, algumas moradoras compartilharam que vivenciaram violência e abuso como mulheres, o que aumentou ainda mais sua angústia e diminuiu suas chances de permanecerem dentro de suas famílias. Uma participante compartilhou:

Ninguém veio me ver aqui ou no hospital psiquiátrico. Então, pense na minha situação. Eu disse a eles [centro de reabilitação] que eu poderia ficar aqui para sempre, mas eu não sabia que eles [centro de reabilitação] não nos manteriam depois de nove meses. Estou preocupada e me sinto tensa, porque se eles me mandarem para casa, meu marido vai me bater de novo. Esta é a razão pela qual eu queria estudar e trabalhar. Estou com extrema necessidade de dinheiro.

Algumas moradoras tinham contato com suas famílias, mas faltava o apoio delas, pois constantemente expressavam sua relutância em levar as mulheres de volta para casa. Além da falta de apoio familiar, suas próprias desvantagens socioeconômicas também se tornaram uma barreira. Sobre a necessidade de dinheiro para viver uma vida independente, uma participante compartilhou:

As aulas que acontecem aqui (sejam de costura ou música) são para nossa terapia, mas não vão nos ajudar a encontrar emprego. As aulas são boas, mas não são relevantes, não vão ajudar as meninas a se tornarem independentes e autossuficientes. A educação é muito importante. Eu quero estudar. Quero me formar e concluir meu bacharelado, independentemente de conseguir um emprego mais tarde ou não. 

Além desses fatores, as participantes também têm seus próprios medos em relação a reinserção social. Desde a falta de habilidades para lidar com conflitos em casa até a perda de acesso aos medicamentos, já que suas casas são geograficamente distantes dos centros de recuperação – o medo de retornar às suas famílias eram significativos e inegáveis.

Identidades Interseccionais Femininas 

As mulheres muitas vezes são colocadas em desvantagem devido ao gênero. Além de sua identidade de gênero, um histórico de vida em um hospital psiquiátrico e o estigma de viver com problemas de saúde mental impactam sua autoestima, conforme relatado de forma semelhante por outro estudo . Elas também acreditam que seu sofrimento mental e emocional as impede de cumprir seus papéis como mães, filhas e esposas. Esta é uma das principais razões pelas quais as famílias muitas vezes veem as mulheres que vivem com problemas de saúde mental como um fardo e optam por “abandoná-las”.

Além disso, a incapacidade de suas famílias de pagar pelo tratamento as deixou sujeitas a condições de vida desumanas no hospital. Em tal situação, os participantes do estudo mencionaram que o emprego é essencial para alcançar a independência financeira, se afastar de famílias abusivas e construir suas próprias vidas.

Conclusão 

Embora o Indian Mental Health Care Act forneça transferência de cuidados de uma instituição para outra, o estudo mostrou que as vidas das participantes não melhoraram quando elas se mudaram dos hospitais governamentais para centros de recuperação. As residentes ficaram ainda mais desanimadas com a possibilidade de voltar para casa. Os autores descrevem como as instituições podem ser espaços mais seguros e enfatizam:

Também é importante reconhecer que as instituições geralmente são espaços mais seguros para mulheres que escapam do tráfico humano, da falta de moradia e de famílias e relacionamentos abusivos. Considerando isso, há uma necessidade de conversas contínuas sobre como as instituições podem ser reimaginadas e transformadas como espaços de cuidado, empoderamento e emancipação para mulheres que são abandonadas por suas famílias. 

Por fim, vale lembrar que dar voz as usuárias é uma das maneiras significativas de promover mudanças na forma como os grupos minoriários são tratadas pela psiquiatria.

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Bhattacharya, A., Camacho, D., & Lukens, E. (2024). “Esses lugares são fáceis de entrar, mas impossíveis de sair”: Caminhos das mulheres para instituições psiquiátricas e barreiras à reentrada na comunidade na Índia.  Community Mental Health Journal ,  60 (2), 317-329 (Link de acesso)

Informações de contato do pesquisador: Anindita Bhattacharya ( [email protected] )

 

 

A Epidemia de Diagnósticos Psiquiátricos nas Redes Sociais

É público e notório para quem as navega que as redes sociais se tornaram uma verdadeira “feira-livre da saúde mental”, um mercado de ofertas, vendas e barganhas no qual uma grande variedade de soluções milagrosas promete identificar, corrigir, extirpar problemas, dificuldades e todo mal-estar existencial. 

É praticamente impossível passar incólume desta enxurrada de recomendações, dicas, orientações relacionais, existenciais, afetivas, comportamentais e subjetivas das mais diversas e duvidosas fontes. Paralelamente a isso, vemos mudanças sociais e psíquicas profundas a partir dos atravessamentos da virtualidade.  A instauração de novos modos relacionais, assim como novas formas de ser e estar no mundo colocam em check antigos referenciais, considerando o aparato tecnológico que atravessa a subjetividade contemporânea.

A abrangência destes fenômenos influencia tão substancialmente os modos de vida contemporâneos que não seria possível descrever em apenas um artigo. Por isso, traçarei breve e diretamente um panorama daquilo que compreendemos ser muito preocupante: os atravessamentos no campo da saúde mental promovidos pelas redes sociais, entre os quais o drástico aumento da epidemia de diagnósticos psiquiátricos nas redes sociais. Certos elementos incitam o fortalecimento desta epidemia diagnóstica estruturando os alicerces da sua arquitetura. 

No fluxo dos discursos circulantes nas redes, a normalidade passa a estar estreitamente atrelada à noção de plenitude, bem-estar integral e felicidade compulsória. Aquilo que destoa, incomoda, faz sofrer, desconcerta e aponta para as inconsistências, incoerências, imperfeições e opacidades do sujeito, rapidamente é capturado pela lógica patologizante e insígnias de diagnósticos psiquiátricos. Não todos. Apenas alguns.

Verificamos a imensa influência das redes sociais tanto na vasta produção dos conteúdos baseados em nomenclaturas do vocabulário psiquiátrico e a exploração exaustiva de certas categorias psiquiátricas que ampliam o alcance das publicações. Não todas, apenas algumas. Selecionadas, salientadas e reproduzidas à exaustão por aqueles mecanismos de comunicação e usuários, apresentados e disponibilizados de modos diferentes de acordo com as intenções e as ferramentas do aplicativo. Estes conteúdos insurgem como ondas, se avolumam, viram tendências (trends) entre os usuários, sejam profissionais da saúde mental ou não, com o intuito de conseguir maior visibilidade, seguidores, likes, compartilhamentos, engajamento e, na busca por retorno financeiro. Repetidos à exaustão vão adquirindo paulatinamente um certo estatuto de verdade, ao passo que os usuários (profissionais ou não) que surfam essas ondam também conseguem aumentar sua visibilidade.

Entre os elementos específicos destacados para a produção de conteúdo, escolhidos a dedo para serem explicados através de imagens, carrosséis, vídeos curtos, stories, postagens, há o sufocamento de qualquer possibilidade daquilo que se entende por singularidade, pensamento crítico/complexo.  Pelo contrário, a ideia é enxugar, simplificar. Simplificar tanto que, cada vez mais, os conteúdos assim despejados tornam-se desinformativos, fraudulentos e/ou distorcidos.

 Quanto mais simples, direto e objetivo, mais mastigado, melhor. 

Melhor para que (m)? 

Uma forte oposição no campo das redes sociais se apresenta. Por um lado, pessoas (influencers) com muitos seguidores, hypados, engajados, com muitos likes se propõe a falar sobre determinada temática sem ou com o mínimo aprofundamento sobre o assunto, mas conseguem produzir conteúdos virais. Por outro, profissionais com longa trajetória, conhecimento sólido, cujo repertório tecnológico torna-se enfadonho, com baixíssima repercussão comparativamente, não conseguem sequer que seus conteúdos sejam distribuídos pelos algoritmos. 

Um ponto de destaque: há uma busca desenfreada dos usuários por “saúde mental”, seja significando bem-estar, autocuidado, plenitude, anestesia ou até mesmo por promessas virais, palavras que engajam e viralizam que partem do universo psiquiátrico. Há um amplo apelo a divulgação sem critérios sobre saúde mental.

Nesta “feira livre multimidia da saúde mental”, a difusão de diagnósticos psiquiátricos é extremamente vendável, rentável, assim como a propagação de desinformação, produção de notícias e informações falsas, vendas de serviços diversos associados à saúde mental sem medir esforços, vídeos e dancinhas para sua divulgação. Baseados em um modelo privatista, os protocolos de cuidados, testes diversos para autodiagnóstico, venda de kits de tratamento baseados nos  diagnósticos, nichificação de mercado a partir de diagnósticos, vendas de serviços especializados, formações e cursos, combos de tratamento,  técnicas e práticas de cuidados dentro e fora dos registros da medicalização vendidas por especialistas e não especialistas fomentam uma enorme epidemia de diagnósticos nas redes sociais.

Outra forma de conseguir conexão com o interlocutor é a utilização da estrutura comunicacional da “jornada do herói”, através da qual se conta uma história em primeira pessoa, em geral, onde aquele criador de conteúdo consegue superar dificuldades, compreendidas constantemente como sofrimento e “adoecimento mental”. É comum que essas histórias estejam vinculadas às questões emocionais e diagnósticos psiquiátricos como depressão, crises de ansiedade, TDAH, TEA, etc.

Em 2017, no livro “Anatomia de uma epidemia”, Robert Whitaker já denunciava a ocorrência de uma epidemia de transtornos mentais em curso, associada diretamente ao uso desenfreado de psicofármacos. Uma questão importante apontada pelo autora seria: quanto mais se avançam as descobertas científicas acerca das doenças mentais e seus supostos tratamentos, primordialmente medicamentosos e cada vez mais eficientes teoricamente, mais doenças são identificadas. Se tomarmos como exemplo outros campos da medicinas, se esperaria uma redução das doenças, já que são identificadas e tratadas, contudo, no caso das doenças mentais ocorre o oposto, uma absoluta hiperinflação diagnóstica e explorações diversas.

Quase 10 anos após a publicação do livro de Whitaker, retomo as indagações: seria uma praga de doenças mentais espalhada entre adultos e crianças o que estamos vivendo? O que está havendo? Se as doenças mentais passaram a ser identificadas e tratadas cada vez mais precocemente, com substâncias mais eficientes, a que se deve efetivamente o aumento estarrecedor de transtornos mentais? Estes questionamentos nos convocam a pensarmos o que estamos produzindo enquanto sociedade.

Se as categorias diagnósticas em psiquiatria já encontram inúmeros problemas e fragilidades conceituais, instabilidade, estas apresentam-se exacerbadas e sem qualquer critério nas redes sociais em função dos próprios mecanismos de comunicação das redes, passível a edições, recortes, enviesamentos diversos e mascarados como “liberdade”, além de serem fortalecidas e exploradas pelos próprios profissionais de saúde mental em busca de reconhecimento.

 Através de uma linguagem extremamente simplificada, mecanismos diversos de acesso a esse conteúdo de forma praticamente instantânea, organizações algorítimicas, o apelo absoluto ao autocuidado se traduz na busca irrefreável por uma felicidade compulsória, como se tudo que ficasse de fora deste tipo de experiência de plenitude, completude e exímio funcionamento não fizesse parte daquilo que se concebe como “normal”. 

Benedeto Sarraceno já apontava os limites da tradição diagnóstica pautada somente na psicopatologia descritiva. Contudo, a cultura digital se alicerça na difusão de conteúdos, primordialmente, de orientação psicopatológica descritiva pautada no materialismo biológico, na cerebralização do discurso, na patologização e na medicalização. O Outro algorítmico busca aniquilar o sujeito e a singularidade, contudo, até agora, sem sucesso. 

A tentativa de supressão do sujeito não se restringe as descrições, mas a tendência de apresentar certa previsibilidade, estabilidade e coerência para aquilo que não se compreende, seguindo a lógica diagnóstica.

Se os dispositivos móveis são artefatos socioculturais e os aplicativos são objetos digitais, estes são produtos de tomada de decisão humana, sustentados por suposições tácitas, normas e discursos que circulam em contextos sociais e culturais nos quais são engendrados, comercializados e usados. Também vemos a distorção e a seleção dos conteúdos dos manuais psiquiátricos e da saúde mental para ampla divulgação sem critério, de modo irresponsável e sem qualquer regulamentação ou comprometimento ético.  Um campo insalubre, propício para o incremento ainda maior da epidemia diagnóstica em curso.

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O Mad in Brasil hospeda blogs de um grupo diversificado de escritores. Essas postagens são projetadas para servir como um fórum público para uma discussão – em termos gerais – da psiquiatria, saúde mental e seus tratamentos. As opiniões expressas são próprias dos escritores.

Manual de Psiquiatria Crítica, Capítulo 8: Depressão e Mania (Transtornos Afetivos) (Parte quatorze)

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Medications And Pregnancy. Expectant Lady Showing Pills In Hand Touching Belly Standing Over White Background. Shallow Depth, Cropped

Texto originalmente publicado no Mad in America , traduzido para o português por Letícia Paladino e revisado por Camila Motta.

Nota do editor: Nos próximos meses, a Mad in Brasil publicará uma versão serializada do livro de Peter Gøtzsche, Manual de Psiquiatria Crítica. Neste blog, ele aborda como os manuais didáticos discutem o uso de pílulas para depressão na gravidez, bem como como eles abordam a psicoterapia e a psicoeducação. A cada quinze dias, uma nova seção do livro será publicada e todos os capítulos estão arquivados aqui.

 

Gravidez

As pílulas para depressão estão entre as drogas prescritas mais comumente usadas por mulheres em idade reprodutiva. Na Dinamarca, 8% da faixa etária de 18 a 44 anos os utilizam.|263| Isso é preocupante, pois essas drogas parecem aumentar o risco de abortos espontâneos, interrupções voluntárias da gravidez, defeitos de nascimento e anomalias comportamentais em recém-nascidos,|483,484|e causam muitos outros danos sérios na prole.|336|

As orientações sobre gravidez eram inconsistentes e confusas. Os manuais didáticos geralmente colocavam a culpa na doença, não nos medicamentos. Por exemplo, um livro alertou que a depressão dobra o risco de desenvolver doenças cardiovasculares|16:259| e potencialmente aumenta as malformações cardíacas e complicações neonatais.|16:584|

Outro livro era confuso, contraditório e enganoso. Avisava que a depressão aumenta o risco de sangramento anormal durante a gravidez, aborto espontâneo, parto prematuro, morte fetal, eclampsia, outras complicações de nascimento, baixa qualidade de vida para a criança e falta de amamentação.|17:364|  No entanto, na mesma página, os autores notaram que as pílulas para depressão estão possivelmente associadas a um ligeiro aumento do risco de parto prematuro e complicações perinatais, e 13 páginas depois, que essas drogas provavelmente aumentam o risco de malformações.|17:377|

Após mais 291 páginas, este livro se contradisse novamente e tentou abranger os dois lados de uma maneira muito confusa|17:668|: A depressão não tratada pode causar parto prematuro e talvez também malformações. As pílulas para depressão podem aumentar espontaneamente os abortos, mas os estudos mais recentes falam contra malformações. No entanto, os autores notaram que a paroxetina está possivelmente associada a malformações cardíacas e complicações neonatais, e que há um aumento do risco de hipertensão pulmonar em recém-nascidos, o que pode ser fatal.

Se você não sabe o que dizer, é prudente não dizer nada em vez de confundir totalmente seus leitores. Não consigo entender nada do que foi dito acima, e isso piorou. Este livro notou que o Conselho Nacional de Saúde da Dinamarca recomenda sempre considerar a psicoterapia para mulheres grávidas que estão deprimidas.|17:365| De fato; nenhuma delas deveria tomar essas drogas. Mas, veja só, apenas uma página antes, o livro aconselhava que mulheres grávidas que estiveram deprimidas anteriormente devem ser tratadas profilaticamente com pílulas para depressão para reduzir o risco de recaída de cerca de 70% para cerca de 25%.|17:364| É impossível justificar essa recomendação horrível.

O Conselho de Saúde também se contradisse. Recomendou rastreamento rotineiro de depressão em gestantes e subsequente tratamento com pílulas para depressão, embora os dados disponíveis não sustentem essas recomendações.|485| Reconheceu que os ISRS aumentam a ocorrência de abortos espontâneos, diminuem o peso ao nascer, provavelmente aumentam a ocorrência de defeitos de nascimento, aumentam o risco em cinco vezes para desenvolver hipertensão pulmonar, que é um dano letal estimado em ocorrer em 6 a 12 recém-nascidos a cada 1.000, e aumentam complicações neonatais como irritabilidade, tremores, hipertonía e dificuldade para dormir ou amamentar.|485| artigo sobre isso o chamou apropriadamente de síndrome de abstinência neonatal.|486|

Com licença, mas o Conselho de Saúde enlouqueceu? Um grande estudo de coorte dinamarquês com 500.000 crianças mostrou que o risco de defeito do septo cardíaco é dobrado.487 Isso não é trivial, pois 1% dos fetos tratados terá um defeito de septo. Os defeitos cardíacos ao nascer são exatamente o que esperaríamos ver, pois a serotonina desempenha um papel importante no funcionamento do coração. Vimos defeitos valvulares letais e hipertensão pulmonar letal em adultos que tomaram drogas para emagrecimento que aumentam os níveis de serotonina, e essas drogas foram retiradas do mercado.|6:144|

A recomendação do Conselho para rastreamento era tão absurdamente prejudicial que escrevi uma pequena esquete sobre isso,|488| que um psicólogo e eu realizamos espontaneamente como a introdução da minha palestra sobre psiquiatria, lendo-a em voz alta do meu computador. Está no YouTube com legendas em inglês.|489| Entre seus muitos postulados estranhos em relação à gravidez, este livro também afirmava que os riscos de depressão e distúrbios comportamentais aumentam em crianças de 18 anos cujas mães não foram tratadas durante a gravidez por sua depressão.|17:365|

Como não acreditava que isso pudesse ser verdade para drogas que não funcionam, procurei as evidências a que os autores se referiam, que eram uma diretriz clínica de 2014 sobre o uso de drogas psiquiátricas durante a gravidez produzida pela Associação Dinamarquesa de Psiquiatria, pela Sociedade Dinamarquesa de Obstetrícia e Ginecologia, pela Sociedade Dinamarquesa de Pediatria e pela Sociedade Dinamarquesa de Farmacologia Clínica.|490| Com tantas pessoas experientes envolvidas, era esperado que a diretriz fosse confiável, mas pode ser melhor descrita como sendo flagrantemente desonesta.

A diretriz afirmava que há “uma maior incidência de depressão em crianças de 18 anos cujas mães não foram tratadas durante a gravidez por sua depressão (Pearson et al., 2013)” e que “a depressão não tratada durante a gravidez parece aumentar o risco de desenvolver distúrbios comportamentais na criança (Pedersen et al., 2013).”

Nenhuma dessas afirmações era verdadeira. O artigo de Pearson et al. não dizia nada sobre se as mulheres foram tratadas ou não durante sua depressão. O que o artigo mostrou foi que se uma mãe estava deprimida, o risco de sua prole se tornar depressiva aumentava, mas apenas para mães com baixa escolaridade.|491| Isso não tem nada a ver com tratar ou não tratar uma depressão, mas sim com condições de vida precárias, que também são frequentemente o caso da prole. Quando as condições de vida são deprimentes, as pessoas ficam deprimidas. Não há uma grande surpresa aqui.

O artigo de Pedersen et al. não documentou de forma alguma que a depressão não tratada aumenta o risco de distúrbios comportamentais na criança.|492| Isso já era claro no resumo: “A exposição a antidepressivos no período pré-natal não foi associada a escores anormais no SDQ (Questionário de Pontuação de Dificuldades) em comparação com a exposição à depressão prenatal não tratada ou à ausência de exposição.” Mas o resumo também relatou os resultados do que chamamos de uma ‘pescaria estatística’ Quando um resultado é negativo, é uma prática de pesquisa muito ruim relatar subgrupos de pacientes ou itens selecionados em uma escala, mas foi isso que os autores fizeram: “A depressão não tratada foi associada a pontuações anormais no SDQ nas subescalas de conduta [razão de chances ajustada (aOR) 2.3 (IC 95%, 1.2-4.5)] e problemas pró-sociais [aOR 3.0 (IC 95%, 1.2-7.8)] em comparação com crianças não expostas.” Eles não apenas selecionaram itens em uma escala, como também não compararam a depressão não tratada com a depressão tratada, mas com pessoas que não estavam deprimidas e eram saudáveis!

Nas tabelas, não havia uma única diferença significativa entre a pontuação total ou qualquer um dos subitens na pontuação quando mulheres tratadas com depressão foram comparadas com mulheres não tratadas com depressão. Mas os autores novamente foram à pesca para encontrar o que relataram no resumo para conduta: “Incluindo apenas mulheres com pontuação normal de MDI [depressão] no momento do acompanhamento”. Para problemas pró-sociais, não consegui encontrar o odds ratio ajustado de 3,0, que foi alegado ser estatisticamente significativo. Não estava em lugar algum no artigo, mas havia essa informação: “A associação pró-social não era mais estatisticamente significativa, OR 2.2 (IC 95%, 0.8-6.5)” (quando incluídas apenas mulheres com uma pontuação normal de depressão).”

É incrível que esse tipo de lixo, com análises de dados forçadas, possa ser publicado, mas a literatura científica está cheia disso. Uma revisão sistemática descobriu que análises de subgrupos em ensaios eram mais comuns em revistas de alto impacto; e em ensaios sem resultados estatisticamente significativos para o resultado primário, ensaios financiados pela indústria eram duas vezes mais propensos a relatar análises de subgrupos do que ensaios não financiados pela indústria e duas vezes mais propensos a não terem especificado as hipóteses de subgrupo.|493|

Este manual didático observou que o valproato e o carbamazepina são contraindicados devido ao alto risco de defeitos do tubo neural.|17:669| Eu me pergunto por que os autores não alertaram contra todas as drogas antiepilépticos.

Psicoterapia e psicoeducação

A psicoterapia não é uma solução mágica contra os transtornos psiquiátricos. Ela nem sempre funciona, mas é a melhor intervenção que temos.

Os manuais didáticos eram, às vezes, contraditórios e enganosos. Um observou que 50% dos pacientes com depressão não são tratados; que muitos deles provavelmente têm depressão leve; e que a psicoterapia encurtará a fase da doença, previnirá a cronicidade e proporcionará alívio óbvio para os pacientes.|16:257| Infelizmente, o livro aconselhou que ISRS ou tricíclicos poderiam ser usados em vez da psicoterapia para depressão moderada ou em combinação com ela. Para a depressão severa, a psicoterapia não foi aconselhada, mas a internação hospitalar, tricíclicos, tricíclicos mais pílulas para psicose e eletrochoque foram.|16:272|

Esse é um tema familiar. Quanto pior a doença, mais os pacientes sofrerão com tratamentos que não os ajudam. Isso não é medicina baseada em evidências.

O livro, em que todos os autores são psiquiatras, desacreditou a psicoterapia ao afirmar que as pílulas podem ser combinadas com terapia conversacional de forma vantajosa, o que também aumenta a adesão.|18:238| Assim, pílulas primeiro, mesmo que não funcionem, e a psicoterapia tem como único objetivo manter os pacientes usando as pílulas que os prejudicam e que muitos pacientes prefeririam evitar. Quando perguntados sobre o que preferem, seis vezes mais pessoas preferem psicoterapia a pílulas, |494|, mas recebem exatamente o oposto. Uma pesquisa de 2002 com psiquiatras infantis e adolescentes dos EUA mostrou que 91% de seus pacientes eram tratados com drogas psiquiátricas|495|. Apenas nos 9% restantes, a psicoterapia foi usada sem drogas. Na Suécia, o Conselho Nacional de Saúde recomenda que todos os adultos com depressão leve a moderadamente severa sejam oferecidos psicoterapia, mas apenas 1% a recebe|496|.

Isso ilustra que a psiquiatria é uma profissão perversa. Ela não ajuda os pacientes como eles desejam ser ajudados, mas ajuda a si mesma.

Este manual didático recomendou espera vigilante ou conversas de apoio para depressão leve, psicoterapia para depressão moderada e pílulas para depressão mais severa|18:123|. Os autores afirmaram que o efeito preventivo das drogas era mais pronunciado do que o da psicoterapia,|18:126| o que é falso e foi contradito por outro livro, que observou que o efeito da psicoterapia dura mais do que o das drogas|16:277|. Como esperado, estudos com acompanhamento de longo prazo mostram que a psicoterapia tem um efeito duradouro que supera a farmacoterapia,|180,497-501| e quando os psiquiatras acreditam que as pílulas previnem recaídas, eles confundem efeitos de abstinência com recaída (veja os Capítulos 7 e 8).

Um terceiro livro aconselhou psicoterapia para depressão moderada e severa,|17:359,17:363| mas não para depressão severa que requer internação hospitalar|17:359|. Observou-se que a psicoterapia deve ser considerada na maioria das vezes quando o paciente está em remissão|17:363| e afirmou que uma redução pela metade na pontuação da depressão foi obtida em 60% dos pacientes tratados com drogas e psicoterapia|17:359|.

Esta afirmação é sem sentido. Não pode ser interpretada sem saber o que aconteceu com os outros 40% dos pacientes. Se a pontuação deles aumentou marcadamente, o efeito geral pode ser zero. A medicina baseada em evidências não se trata do que aconteceu em algum subgrupo selecionado de pacientes, mas do que aconteceu em média. Esses autores consideraram a psicoterapia uma opção secundária, o que contradisse um capítulo sobre psicoterapia no mesmo livro, onde outros autores notaram que o tamanho do efeito em uma meta-análise era bastante alto e que, em muitos casos, a psicoterapia era custo-efetiva em comparação com as drogas.|17:675| Parece ser correto que a psicoterapia é mais custo-efetiva do que outras formas de terapia|502|.

Um quarto manual também priorizou as pílulas, embora tenha notado que o efeito da psicoterapia e das pílulas era aproximadamente o mesmo para depressão leve e moderada|20:435|. Isso é enganoso porque o efeito também é aproximadamente o mesmo na depressão severa |503|. O livro observou que o Conselho Nacional de Saúde encontrou um efeito melhor de combinar psicoterapia com pílulas do que de pílulas sozinhas, mas não mencionou que a diretriz do Conselho recomendou fortemente oferecer psicoterapia, em combinação com pílulas, a pacientes com depressão moderada ou severa|504|. Isso foi contradito por outro livro, que observou que para depressão leve ou moderada, não havia evidência de um efeito maior da combinação do que de drogas ou psicoterapia sozinhas, embora afirmasse que esse era o caso para depressão crônica |16:278|.

Era totalmente confuso. E por que uma combinação funcionaria para depressão crônica quando não funcionou para depressão moderada, e o que é depressão crônica? A diretriz do Conselho de Saúde tinha uma importante reserva: “A terapia de combinação demonstrou um efeito aumentado em relação à monoterapia, mas os pacientes frequentemente não foram acompanhados além do final da intervenção. O grupo de trabalho deseja esclarecer os efeitos a longo prazo da terapia de combinação consistindo em farmacoterapia antidepressiva e psicoterapia.”

É notável que três manuais didáticos não recomendassem psicoterapia para depressão severa,|16,18,20| e que um quarto não a recomendasse para depressão que requer internação hospitalar|17|. O único manual que aconselhou psicoterapia para depressão severa foi aquele sobre psiquiatria infantil e adolescente,|19:214| mas, infelizmente, este livro aconselhou que a psicoterapia deveria ser combinada com fluoxetina, que é insegura e ineficaz (veja a página 112).

Um manual didático afirmou que o tratamento da bipolaridade em crianças envolve drogas, além da psicoeducação, mas não disse que as drogas deveriam ser usadas apenas se a psicoeducação não funcionasse|19:220|.

Dois outros afirmaram que a psicoeducação pode reduzir pela metade o risco de novas depressões ou manias em pacientes bipolares e reduzir internações hospitalares, mas acrescentaram que isso provavelmente se devia a uma melhor adesão ao tratamento (com drogas)|16:306,17:376|. Um deles deu uma referência a essa afirmação,|17:376| que foi um ensaio randomizado de psicoeducação |505|.

Acontece que as alegações do manual didático sobre melhor adesão ao tratamento com drogas eram falsas.505 Os pesquisadores randomizaram 120 pacientes bipolares em 21 sessões semanais de psicoeducação em grupo ou reuniões de grupo não estruturadas e o efeito foi avaliado de forma cega. Durante o tratamento, 23 vs 36 pacientes tiveram uma recidiva (P < 0,05); ao final do acompanhamento, esses números eram 40 vs 55 (P < 0,001); e houve significativamente menos dias de internação, 4,8 vs 14,8 (P < 0,05).

No acompanhamento de 2 anos, uma pequena diferença foi encontrada nos níveis de lítio, 0,76 vs 0,68 mEq/L (P = 0,03), enquanto não houve diferenças nos níveis de valproato ou carbamazepina, e nenhuma diferença em relação ao tratamento com drogas.

Os autores escreveram na discussão que, “comparados aos pacientes de controle, os pacientes psicoeducados tinham níveis de lítio mais altos no acompanhamento de 2 anos, o que pode sugerir um efeito da psicoeducação na adesão à farmacoterapia.”

Assim, os autores do ensaio não sugeriram que a pequena diferença nos níveis de lítio poderia explicar os pronunciados efeitos que encontraram da psicoeducação. É distorcer os dados ao extremo quando os autores do manual didático escrevem que isso era provável, em vez de apenas aceitar que a psicoeducação é altamente eficaz.

Um manual didático observou que, embora os estudos de PET sejam preliminares, há muito a sugerir que a redução de sintomas durante a psicoterapia pode normalizar o metabolismo em certas áreas cerebrais afetadas durante a depressão|16:269|. Estudos de imagem cerebral são altamente não confiáveis (veja o Capítulo 3), mas esta foi uma rara ocasião em que não foram usados para promover drogas, mas sim a psicoterapia.

 

Para ver a lista de todas as referências citadas, clique aqui.

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Mad in Brasil (Texto original do site Mad in America ) hospeda blogs de um grupo diversificado de escritores. Essas postagens são projetadas para servir como um fórum público para uma discussão – em termos gerais – da psiquiatria, saúde mental e seus tratamentos. As opiniões expressas são próprias dos escritores.

As Big Techs e os Desafios para a Política Nacional de Saúde Mental Antimanicomial

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Para Fernando Freitas

Na terça-feira (07/01/2025), assistimos ao anúncio de Zuckerberg sobre alterações relacionadas aos algoritmos das redes sociais que comanda, dentre essas mudanças, o CEO fez questão de anunciar a liberação de se associar questões de sexualidade a transtornos mentais. Uma mudança radical na postura das BigTech que vendiam a vibe “descoladas e moderninhas, abertas à diversidade”. O recuo ideológico aponta para nós, lutadoras e lutadores antimanicomiais um cenário complexo, de avanço da patologização, agora declaradamente apoiado pelas redes sociais, que exigirá organização da luta e
resistência.

Em momentos de agudização da crise, o Capital não se furta em lançar mão de suas pautas fascistas e eugenista na garantia de manutenção do status quo. O duplo retrocesso nas redes sociais sobre a pauta LGBTQIA+ e da pauta da saúde mental é prova de que o avanço da extrema direita, de ideais nazifascistas não são ao acaso, mas é sim um projeto articulado pelas grandes potências econômicas
mundiais.

Mas, o que isso impacta nossa política nacional de Saúde Mental e em nosso dia-a-dia?

É preciso retomar um pouco a história da psiquiatria para que possamos entender esses impactos. A psiquiatria denominada científica, como uma especialidade das ciências médicas, tem um marco importante no final do século XIX com Kraeplin e seu sistema nosológico. Naquela ocasião, Kraepelin (1887/2005) discutia a crise da psiquiatria (1886) justamente por ela não conseguir responder aos problemas aos quais se dedicava, com a mesma “eficácia” de outras especialidades médicas. A solução, para o autor, era a utilização dos métodos da Psicologia Experimental de Wundt como base das investigações psiquiátricas.

Seguindo esses passos, Kraepelin desenvolve um sistema nosológico que tem embasado a psiquiatria desde então. Principalmente, a partir da terceira edição do DSM. Muito embora, atualmente, apenas parte das ideias kraepelinianas ainda se encontram presentes nas formulações diagnósticas em saúde mental baseadas no DSM, há um elemento fundante que permanece na lógica de se fazer diagnóstico na psiquiatria hegemônica: o modelo biomédico, radicado em um ideal eugênico e higienista de saúde; como bem nos chama atenção o “SPK Fazer da doença uma arma” (movimento de paciente/usuárias/os alemães
da década de 70 “Coletivo Solcialista de Pacientes de Heidelberg) em seu manifesto. De acordo com eles: “Saúde é um conceito totalmente burguês. O capital como um todo estabelece uma norma média de exploração da mercadoria força de trabalho [da mercadoria ser humana]. (…) Ser saudável significa ser explorável.” (SPK, 2024 p. 38).

A ideologia burguesa, pode-se dizer, constitui a base da psiquiatria hegemônica (e das ciências médicas e da saúde em geral) dando a tônica não apenas nos modos de se fazer diagnóstico em Saúde Mental, como também, nos modos de atenção às pessoas em sofrimento psíquico. Não à toa é o nome de Kraepelin que é tratado como “pai da psiquiatria”, um eugenista convicto, que junto com Wundt compôs um movimento de resistência ao processo democrático que se instaurava na Alemanha naquela época, pois acreditava que um líder escolhido pela maioria das população não seria alguém preparado para governar, pois os governantes aristocráticos haviam herdado essa capacidade de seus antepassados, herdando as melhores características de forma hereditária. Assim, o autor afirma:

A ascensão de certas classes a posições confortáveis e importantes na vida deve ter dependido desde o início de que elas provassem sua coragem na luta por existência (Dasein Kampf). A luta garantiu-lhes uma posição superior em seu ambiente. Além disso, pode-se supor que seus traços positivos foram herdados e, portanto, que as gerações posteriores de uma antiga linhagem familiar que defendeu sua posição ao longo
dos séculos manteve, até certo ponto, aquelas características que uma vez facilitaram sua existência Por outro lado, parece óbvio que os ancestrais daqueles pertencentes às classes mais baixas não possuíam, em geral, características que os equipassem para realizações extraordinárias e, portanto, não poderiam transmitir tais características. (Kraepelin, 1919 p. 181 apud Engstrom, 1991 p. 150).

Kraepelin entendia que a “degeneração”, a tendência à criminalidade e ao desenvolvimento de sofrimentos psíquicos era uma questão hereditária (a genética naquele momento era uma ciência incipiente).

A ciência, é importante lembrar, não é descolada de ideologias e de seu contexto histórico, político, social… a ideologia impregnada nas formulações diagnósticas de Kraepelin, a importação dessas ideias ao modelos diagnósticos atuais cumprem funções sociais que, de forma hegemônica, tem bases eugênicas e, portanto, higienistas. Hobsbawm, um dos maiores historiadores de último século, anuncia as validações dos ideais eugênicos
pela via do que hoje, como ciência mais desenvolvida do que na época de Kraepelin, denomina-se genética:

O que tornou a eugenia “científica” foi justamente o surgimento da genética após 1900, que parecia sugerir a exclusão total das influências ambientais na hereditariedade e a determinação, por um único gene, da maioria ou de todas as características; isto é, que o cruzamento seletivo dos seres humanos segundo o processo mendeliano era possível. (Hobsbawm, 2012 p. nd. – Versão para Apple Books – gritos nossos).

Contudo, no campo de estudos da genética mesmo, é sabido e largamente estudado a interação do organismo com o meio e como isso afeta os fenótipos, o que chamamos “epigenética”, aquilo que está sobre a genética. Para nós, seres humanos/os o meio social e a sociabilidade nos é imprescindível, somos seres sociais em essência, nosso organismo biológico é dotado de plasticidade (como a maioria dos organismos multicelulares) e nosso processo saúde e doença deve ser entendido a partir das determinações sociais-históricas e não apenas biológicas.

Isso quer dizer que, nossa herança genética, como afirmam Lewins e Levontin (1985), dá conta de características básicas como cor dos olhos, cabelos, estatura, etc. Mas, as formas mais complexas de nosso comportamento, desenvolvimento, nossa consciência são produtos de nossas interações sociais, de nossa sociabilidade, ao longo da história de nossa vida. Então, é preciso entender que a nossa constituição enquanto seres humanas/os perpassa pelo contexto social, histórico e, consequentemente, político (Furtado, 2024). Não somos indivíduos autogeridos, somos seres que dependemos do chão da história, expresso na sociabilidade constituída coletivamente/socialmente.

Como Marx (2011) já dizia: “Os homens [e mulheres] fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha, e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, ligadas e transmitidas pelo passado.” (p. Nd. Versão para kindle). O que temos diante de nós agora, os meios pelos quais deveremos conduzir nossa história, ante o explícito avanço do neoliberalismo e as expressões ultraconservadoras diante da iminente falência do modelo capitalista, será nossa luta e resistência nas trincheiras da luta antimanicomial, para não deixar que nossa política (e soberania nacional) sejam assoladas. O que não se construirá apenas a partir de nossa pauta, mas de organização coletiva.

A falência do capital, no sentido da impossibilidade de sua manutenção da forma como está, se expressará, para quem ainda não pôde construir seu bunker, pela barbárie, como já anunciavam alguns intelectuais franceses do grupo Socialismo ou Barbárie, inspirados por Rosa Luxemburgo. Eis o que se apresenta diante de nós: a barbárie! Que instrumentalizando as pautas da psiquiatria e da criminalidade (e a associação entre as duas), retoma seus fundamentos eugênicos sobre os quais se ergueu. Essa realidade já se expressa em na nossa política nacional, com a aprovação pela câmara dos deputados
federais do PL 551/2024, inserido no PL 1637/2024 que altera a lei 10.216, e agora segue para o senado com grandes chances de aprovação, se não nos mobilizarmos. Em uma contra ofensiva à decisão do CNJ de acabar com os manicômios judiciários.

E é aqui que a fala do dono da Meta nos implica como militantes da luta antimanicomial. Ao informar a retirada do filtro que associa questões LGBTQIA+ às questões de saúde mental, ele remonta aos princípios conservadores kraepelinianos.

Qual o interesse nisso?

Podemos citar dois interesses que de pronto nos levam às tentativas de manutenção e expansão do capital, baseado no aumento da exploração-opressão da “mais-valia”. Sim, isso mesmo, eis o fim posto desse sistema: manter e aumentar o lucro dos super ricos, enquanto esmagam até o suco, doutrinam, dopam, medicalizam, dominam e exploram a classe trabalhadora.

Na selva do capital, a arma ideológica do processo de exploração, compõe com as expressões das opressões uma unidade poderosa, para diminuir, discriminar e patologizar todas aquelas formas de comportamentos que fogem ao padrão do ethos burguês (do homem, branco, cis, patriarcal, hétero e dono dos meios de produção)(Pinheiro, 2022). O que serve para justificar uma política de maior expropriaçãocdas forças de trabalho quanto mais as pessoas se distanciam desse padrão estético da classe exploradora.

O esgarçamento dos limites do capitalismo cada vez mais evidentes, convoca os super ricos a se reposicionarem também em pautas ideológicas, assistiremos as grandes marcas revogarem suas políticas de diversidade e se alinharem ao processo ultra-conservador que se desenha diante dos nossos olhos. Mas, a discriminação “do diferente”, a eliminação da diversidade humana e a redução ideológica que classifica como “humano” apenas aqueles que mais se aproximam “do padrão”, ao passo que desqualifica quem é diferente, encontra na psicopatologizacão dessa diferença e na sua medicalização uma forma de aumentar ainda mais o lucro da indústria farmacêutica. A psicopatolização mercantiliza o sofrimento humano produzido pela exploração e opressão.

Para se ter noção da importância das farmacêuticas na economia mundial, o mercado dos medicamentos responde hoje pelo terceiro maior setor da economia norte-americana, correspondente à US$ 840 bilhões de receita (R$4,2 trilhões), sendo responsável pela maior parte da produção de medicamento no mundo: 40% (De acordo com dados da ABRADILAN, 2024). Nessa esteira, os psicofármacos se tornam “queridinhos” da indústria e dos investimentos estatais, a importância do desenvolvimento de pesquisas sobre o cérebro e produtos que tenham como alvo o aumento do rendimento intelectual, emocional, enfim, da produtividade da classe trabalhadora, foi comparado por Barack Obama (2012) à corrida espacial. Com duas grandes potências econômicas nessa corrida: União Europeia e Estados Unidos.

Assim, não deve nos restar dúvidas sobre os interesses econômicos no processo de patologização da vida. E, como todo interesse econômico, este não está direcionado para o processo de cuidado de seres humanas e seres humanos, mas sim, em aumentar sua capacidade e necessidade de consumir e, sobretudo, sua capacidade produtiva para continuarem sendo exploradas e oprimidas e manter a máquina do lucro funcionando. O interesse, não nos enganemos, não é relacionado ao desenvolvimento humano, mas sim voltado para o desenvolvimento dos lucros e manutenção do capital.

As redes sociais, nesse ponto, têm assumido papel importante no impulsionamento da ind. farmacêutica, capturando os princípios dos movimentos identitários revolucionários, promovendo, no campo da saúde mental, um processo de identitarismo com os diagnósticos psicopatológicos. Substituindo, assim, a luta histórica de usuárias e usuários de não serem reduzidas aos seus diagnósticos, para a de sujeitos que se apresentam a partir de seu diagnóstico. Desta forma, onde havia uma condição passível de superação,
agora se apresenta como uma identidade (como é o caso do TDAH, por exemplo), o que engendra a cronificação dos sofrimentos psíquicos e quase que “naturalmente” justifica a medicalização das condições socialmente fabricadas.

A conformação de identidades psicopatológicas ratificam as noções biomédicas, apoiadas pela hereditariedade com a autoridade do discurso médico da genética; reduz a complexidade do ser social ao biológico e incute um discurso fatalista e da impossibilidade de superação de determinadas condições. Ainda que diversos estudos, desde a década de 1930 (com a crítica de Vigotski (1931/2006) ao diagnóstico, por exemplo), demonstrem o limite do biologicismo para se apreender os sofrimentos psíquicos. Estes estudos, cabe ressaltar, passam a ser invalidados, mesmo invisibilizados.

O conservadorismo avança a passos largos e tomará conta de todos os aspectos de nossas vidas, inclusive no campo da saúde, com auxílio das redes sociais, a manipulação das informações tomará contornos cada vez mais violentos, hostis e discriminatórios a todas aquelas e aqueles que não compõem “o padrão”. Serão tempos duros, que nos exigirá resistência e ainda mais força para lutar.

A defesa dos princípios antimanicomiais, despatologizantes e desmedicalizante exigirá de nós ainda mais capacidade de mobilização, para manter acesa a chama da luta pelo reconhecimento de nossa humanidade para além de nossos diagnósticos, para que sejamos pessoas de ativo enfrentamento ao contexto ideológico, para que não sejamos medicalizadas, exploradas e oprimidas. Urge, como Paulo Amarante e outros/as intelectuais tem apontado, de retomarmos de forma retumbante os princípios da luta. Uma sociedade livre dos manicômios é também uma sociedade que nos liberte da exploração-opressão de seres humanos/as por outros/as seres humanos/as. o Enfrentamento ( com “ E” maiúsculo) ao modelo eugenista biomédico tem que ser agora, portanto: Trabalhadoras, trabalhadores, usuárias, usuários e familiares da
Saúde Mental uni-vos!

Referências Bibliográficas:
AMARANTE, P. (2007) Saúde Mental e Atenção Psicossocial. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz.
FURTADO, V.C. (2024) Determinação Social da Esquizofrenia: Fundamentos Ontológicos para o
Desvendamento do Desenvolvimento da Esquizofrenia. (Tese de Doutorado) UFRN.
HOBSBAWM, E. (2012) A Era dos Impérios. São Paulo: Paz e Terra.
KRAEPELIN, E. (1887/2005). The directions of psychiatric research. (“Classic Text No. 63”, tradução e
notas de E. J. Engstrom e M. M. Weber). History of Psychiatry, v. 16, n. 3, p. 350-364. Disponível em:
https://doi.org/10.1177/0957154X05056763.
KRAEPELIN, E. (1908/2007). On the Question of Degeneration’. History of Psychiatry, 18(3),399-404.
LEVINS, R. e LEWONTIN, R. (1985/2009) The Dialectical Biologist. Aakar Books.
MARX, K (2011) Os 18 de brumários de Luís Bonaparte. São Paulo: Boitempo editorial.
MOYSÉS, M. A. A., & COLLARES, C. A. L. (2007). Medicalização: elemento de desconstrução dos
direitos humanos. Direitos Humanos: O que temos a ver com isso, 153-168.
PINHEIRO, P. W. M. (2022) Entre os Rios que tudo Arrastam e as Margens que os Oprimem: as
determinações ontológicas da unidade exploração-opressão. (Tese de Doutorado) Universidade de
Brasília.
PSK (1971/2024) Fazer da doença uma arma. São Paulo: Ubu editora
VYGOTSKI, L. S (1931-1933/2006) Obras Escogidas – IV: Psicologia infantil. Madrid: Antonio

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Mad in Brasil hospeda blogs de um grupo diversificado de escritores. Essas postagens são projetadas para servir como um fórum público para uma discussão – em termos gerais – da psiquiatria, saúde mental e seus tratamentos. As opiniões expressas são próprias dos escritores.

Manual de Psiquiatria Crítica, Capítulo 8: Depressão e Mania (Transtornos Afetivos) (Parte treze)

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Doctor receiving bribe from businessman on black background, closeup

Texto originalmente publicado no Mad in America , traduzido para o português por Letícia Paladino e revisado por Camila Motta.

Nota do editor: Nos próximos meses, a Mad in Brasil publicará uma versão serializada do livro de Peter Gøtzsche, Manual de Psiquiatria Crítica. Neste blog, ele discute como as meta-análises em rede manipulam os dados sobre antidepressivos, especialmente quando financiadas pela indústria farmacêutica. A cada quinze dias, uma nova seção do livro será publicada e todos os capítulos estão arquivados aqui

 

Os diferentes tratamentos e combinações

Em caso de resposta insuficiente em pacientes com depressão ou ansiedade, um manual sugeriu adicionar outra droga (chamada de “combinação”), por exemplo, mirtazapina à noite se o paciente não consegue dormir|17:661| Observou-se que a combinação com lítio, tiroxina ou lamotrigina é reservado para médicos com experiência particular, e sugeriu-se que uma pílula para depressão pode ser combinada com uma para psicose, sendo que frequentemente é um problema que os pacientes estejam subdosados. Esse conselho aumenta os danos das drogas sem trazer benefício.

A literatura está cheia de estudos e meta-análises que afirmam que algumas pílulas para depressão são melhores que outras. Quase todos são financiados pela indústria farmacêutica, direta ou indiretamente. Muitos dos autores acadêmicos estão na folha de pagamento da indústria como consultores, conselheiros ou palestrantes e têm pouca participação na redação do manuscrito, apenas emprestando seus nomes conhecidos a ele|2,6,7|. Isso é chamado de autoria convidada, e os que escrevem o manuscrito muitas vezes são autores fantasmas, pois seus nomes não aparecem na lista de autores|140|. Quando alguém é reconhecido por sua ajuda sem especificar em quê, ou é agradecido pela “assistência editorial”, essa pessoa geralmente é a verdadeira autora do artigo.

Mencionarei uma recente meta-análise em rede de Cipriani e colaboradores, pois recebeu enorme atenção na mídia. Foi publicada em 2018 na The Lancet|271|, considerada por muitos uma revista altamente prestigiada. Os autores incluíram 522 estudos, mas a maior parte dos dados veio de relatórios de estudos publicados. Eles relataram um tamanho de efeito de 0,30 para as drogas em comparação com o placebo, muito similar a meta-análises anteriores|268,269|. Contudo, mesmo tendo encontrado um efeito muito abaixo do que é clinicamente relevante (ver página 97), eles classificaram as drogas de acordo com seu efeito (taxa de resposta) e aceitabilidade (desistência por qualquer motivo), que foram os dois desfechos principais.

Isso é inútil, e quando vi pela primeira vez essa meta-análise em rede, minha primeira impressão foi que os autores haviam recompensado as empresas que mais trapacearam com seus estudos, como indiquei no título quando publiquei minhas observações|456|. Minha suspeita foi reforçada ao ver os resultados no resumo. Os autores afirmaram que, em estudos comparativos diretos, agomelatina, escitalopram e vortioxetina são mais eficazes do que outras drogas e que também são mais bem toleradas. Não é preciso ser farmacologista clínico para saber que é extremamente improvável que isso seja verdade. Então, olhei mais de perto para essas três drogas.

Agomelatina foi promovida na Lancet como um medicamento excepcional por dois autores|457|, um dos quais era o psiquiatra australiano Ian Hickie, que tinha numerosos conflitos de interesse financeiros. Eles alegaram que menos pacientes recaíram com agomelatina (24%) do que com placebo (50%), mas uma revisão sistemática de outros psiquiatras não encontrou efeito na prevenção de recaídas; nenhum efeito quando avaliado na escala de Hamilton; e também que nenhum dos estudos negativos havia sido publicado|458|.Três páginas de cartas – o que é extraordinário – na Lancet apontaram as muitas falhas na revisão de Hickie.

Escitalopram e vortioxetina são vendidos pela Lundbeck. É absurdo acreditar que escitalopram pode ser melhor que citalopram, pois a substância ativa é a mesma. Como já mencionado, citalopram é um isômero estereoisomérico, consistindo de uma parte ativa e uma molécula-espelho inativa, e escitalopram contém apenas a substância ativa.

Quando estudado pela Lundbeck em seus próprios estudos comparativos diretos e meta-analisado sob o controle da Lundbeck, com Jack M. Gorman como primeiro autor, a molécula ativa foi considerada melhor do que ela mesma|459|. Os três autores da meta-análise trabalhavam para a Forest, parceira da Lundbeck nos EUA, um como consultor e os outros dois na empresa|7:224|. O que devemos pensar de um artigo publicado em um suplemento comprado para uma revista que, além disso, foi editado por uma pessoa – o primeiro autor do artigo – que também foi comprado pela empresa? |459| Absolutamente nada.

Mesmo que se acredite na meta-análise da Lundbeck de seus próprios estudos, não havia diferenças relevantes entre o medicamento original e o “remédio reembalado” |7:225,460|. Quatro revisões independentes das evidências – pela FDA, o grupo consultivo americano Micromedex, o Conselho Médico de Estocolmo e o Instituto Dinamarquês de Terapia Medicamentosa Racional – concluíram que escitalopram não oferece benefícios significativos sobre sua molécula-mãe|461|.

A revisão Cochrane sobre escitalopram é lamentável. É de 2009 e não foi atualizada, mesmo que seu conteúdo seja totalmente enganoso: “Foi demonstrado que o escitalopram é significativamente mais eficaz que o citalopram em obter resposta aguda (OR 0,67, IC 95% 0,50 a 0,87). Escitalopram também foi mais eficaz que citalopram em termos de remissão (OR 0,53, IC 95% 0,30 a 0,93)” |462|. Seu primeiro autor é Andrea Cipriani, que também estava por trás das meta-análises em rede não confiáveis de pílulas para depressão publicadas na The Lancet (ver páginas 102 e 163).

A tarefa oficial do Instituto para Terapia Medicamentosa Racional, financiado pelo governo, é informar os médicos dinamarqueses sobre medicamentos de forma baseada em evidências. Em 2002, o instituto observou que o escitalopram não tinha vantagens claras sobre a droga antiga|463|. A Lundbeck reclamou ruidosamente sobre isso na imprensa e disse que estava além da competência do instituto fazer declarações que poderiam afetar a competição internacional e prejudicar as exportações de medicamentos dinamarqueses                  |464|. Não estava além da competência do instituto, mas ele foi repreendido pelo Ministro da Saúde, Lars Løkke Rasmussen, que mais tarde se tornou Primeiro-Ministro. Nosso altamente elogiado instituto governamental só pôde dizer a verdade sobre medicamentos importados, não sobre os medicamentos que exportamos. Princípios só são válidos se não custarem muito.

Dois anos depois, o instituto anunciou que o escitalopram era melhor que o citalopram e poderia ser tentado se o efeito do citalopram não tivesse sido satisfatório|465|. O instituto deve ter feito um grande esforço para encontrar uma maneira politicamente correta de se expressar|466|. Ri bastante ao ver as quatro referências em apoio às declarações positivas|7:226|. Ri novamente quando uma funcionária do instituto foi entrevistada no telejornal. Ela foi pressionada pelo jornalista, que lhe perguntou se não poderia imaginar alguma situação em que seria vantajoso que a droga funcionasse mais rápido. Desesperada por encontrar uma resposta apropriada, ela disse: “Sim, se um paciente está prestes a se jogar pela janela!” Isso foi duplamente irônico, já que os ISRSs aumentam o risco de suicídio. 

Em 2003, a Lundbeck violou o código de prática da indústria do Reino Unido em sua publicidade em cinco pontos, notavelmente ao afirmar que “Cipralex [escitalopram] é significativamente mais eficaz que Cipramil [citalopram] no tratamento da depressão”|461|. A Lundbeck também atribuiu danos ao citalopram em sua literatura sobre o escitalopram que não foram mencionados no material promocional do citalopram. Isso confirmou o ditado de que é surpreendente como um bom medicamento se torna ruim rapidamente quando a patente expira.

Em 2013, a Comissão Europeia impôs uma multa de €94 milhões à Lundbeck e multas totais de €52 milhões a vários produtores de citalopram genérico, que, em troca de dinheiro, haviam concordado com a Lundbeck em 2002 em atrasar a entrada do medicamento no mercado, em violação das regras antitruste da UE|467|. A Lundbeck também comprou o estoque dos genéricos com o único propósito de destruí-lo.

Quando pesquisadores independentes fizeram uma meta-análise baseada em comparações indiretas, escitalopram versus placebo, e citalopram versus placebo, não houve diferença|468|. Seus resultados são reveladores. Para a comparação indireta ajustada de 10 estudos controlados por placebo de citalopram e 12 de escitalopram (2.984 e 3.777 pacientes, respectivamente), o escitalopram não foi melhor que o citalopram, OR (odds ratio) indireto 1,03 (0,82 a 1,30). Os pesquisadores também fizeram uma meta-análise de sete estudos diretos (2.174 pacientes), e a eficácia foi agora significativamente melhor para o escitalopram do que para o citalopram, OR 1,60 (1,05 a 2,46). Uma discrepância semelhante foi encontrada para a aceitabilidade do tratamento.

Tais resultados nos dizem que devemos desconfiar das meta-análises em rede das drogas para depressão. A fraude é abrangente e óbvia. Um medicamento que contém a mesma substância ativa da molécula que está fora de patente é afirmado como mais eficaz e melhor tolerado. Quão idiota a Lundbeck acha que os médicos são? Muito idiota, de fato. A Lundbeck tornou o medicamento rejuvenescido um sucesso comercial por meio de um enorme esquema de fraude, onde os resultados dos ensaios já estavam estabelecidos antes do início dos mesmos|6:229|.

Quando a parceira americana da Lundbeck, a Forest, realizou um ensaio com citalopram para o transtorno de compra compulsiva, Gorman apareceu como especialista no Good Morning America e disse que 80% dos compradores compulsivos haviam diminuído suas compras com o medicamento|131|. Os telespectadores foram informados de que esse novo transtorno poderia afetar até 20 milhões de americanos, dos quais 90% eram mulheres|120|.

Em 2010, a Forest se declarou culpada por obstrução da justiça e promoção ilegal de citalopram e escitalopram para uso no tratamento de crianças e adolescentes com depressão|469|. A Forest concordou em pagar mais de $300 milhões para resolver responsabilidades criminais e civis decorrentes desses assuntos e enfrentou vários processos judiciais de pais de crianças que haviam cometido suicídio ou tentado suicídio|470|.

A Forest mentiu para o Congresso e manteve ensaios negativos fora da vista pública|469,471,472|. A Forest tinha 19.000 chamados membros de conselhos consultivos|472| e a revista periódica Pharmaceutical Marketing forneceu a resposta sobre por que tantos consultores são necessários|473|:

O processo consultivo é um dos meios mais poderosos de se aproximar das pessoas e influenciá-las. Não só ajuda a moldar a educação médica em geral, mas também pode ajudar no processo de avaliar como os indivíduos podem ser melhor utilizados, motivando-os a querer trabalhar com você – enquanto a venda subliminar de mensagens-chave continua o tempo todo.

Os médicos corruptos mais importantes são pagos com quantias obscenas de dinheiro por fazer muito pouco ou nada|6:78|. Um professor de psiquiatria declarou:

“É muito decepcionante encontrar psiquiatras acadêmicos que até então se respeitava apoiando um medicamento numa segunda-feira e outro na terça… Posso pensar em um psiquiatra britânico bem conhecido que encontrei e disse: ‘Como você está?’ Ele disse: ‘Que dia é hoje? Estou apenas tentando descobrir qual medicamento estou apoiando hoje’”|341,369|.

Os generosos honorários por palestras atraem um grande exército de “educadores” médicos. Uma pesquisa de 2002 constatou que psiquiatras americanos recebiam cerca de $3.000 por uma palestra em simpósio, e alguns ganhavam até $10.000|369|. Médicos que trabalham para várias empresas são chamados de prostitutas de drogas pelos representantes de medicamentos|343|, e seu trabalho como palestrantes ou consultores é às vezes usado como “retorno” pela participação em ensaios, o que permite aos médicos dizer que não tinham conflitos de interesse financeiros enquanto realizavam o ensaio|474|.

Um psiquiatra relatou quão generosa a Wyeth era ao vender seu medicamento, venlafaxina (Effexor), para colegas|475|:

Recebemos todos envelopes ao sairmos da sala de conferências. Dentro havia cheques de $750. Era hora de nos divertirmos na cidade… Receber cheques de $750 por conversar com alguns médicos durante um intervalo para o almoço era dinheiro tão fácil que me deixou tonto. Como um vício, foi muito difícil desistir. 

Quando ele disse em uma palestra que outras drogas poderiam ser igualmente eficazes como o Effexor, foi imediatamente visitado pelo gerente distrital da Wyeth, que lhe perguntou se ele estava doente. O médico-vendedor então abandonou sua lucrativa carreira como prostituto acadêmico, além de sua prática privada.

A Forest usou subornos ilegais para induzir médicos e outros a prescreverem Celexa e Lexapro, que supostamente incluíam pagamentos em dinheiro disfarçados como bolsas ou honorários de consultoria, refeições caras e entretenimento extravagante. A reação da Lundbeck aos crimes foi: “Sabemos que a Forest é uma empresa decente e eticamente responsável e, portanto, temos certeza de que este é um erro isolado”|470|. Claro. Aos olhos daqueles que coletam o dinheiro|471|, o crime organizado é “um erro isolado.”

A corrupção era total. A Forest recrutou cerca de 2.000 empurradores de drogas (psiquiatras e médicos de cuidados primários) que a empresa treinou para “servir como corpo docente para o Programa de Palestrantes Lexapro”|476|. Era obrigatório que os palestrantes usassem o kit de slides preparado pela Forest. A Forest forneceu “bolsas irrestritas” para sociedades profissionais, incluindo a Associação Americana de Psiquiatria, para que pudessem desenvolver diretrizes de “prática adequada”, e a Forest se tornou patrocinadora corporativa do Academia Americana de Médicos, “o que proporciona oportunidades adicionais de marketing”, e essa organização também estava envolvida no desenvolvimento das diretrizes de “prática adequada.”

A vortioxetina parece ser uma droga excepcionalmente ruim. Todos os autores de todos os ensaios publicados de curto prazo tinham vínculos comerciais significativos com a Lundbeck, o que é uma maneira certeira de uma empresa controlar que o que é publicado apoie suas ambições de marketing. Mas quando pesquisadores independentes compararam a vortioxetina com a duloxetina e a venlafaxina em meta-análises, descobriram que essas drogas eram significativamente mais eficazes do que a vortioxetina em três dos quatro níveis de dose testados|477|.

Foi documentado que as meta-análises em rede (NMA -Network Meta-Analysis) de dados de ensaios publicados não são confiáveis. Em um estudo robusto sobre isso, os autores usaram dados de 74 ensaios registrados na FDA e controlados por placebo de 12 pílulas para depressão e suas 51 publicações correspondentes|478|. Para cada conjunto de dados, a NMA foi usada para estimar os tamanhos de efeito para 66 comparações pareadas possíveis dessas 12 drogas. Para avaliar como o viés de publicação que afeta apenas um medicamento pode influenciar a classificação de todos os medicamentos, os pesquisadores realizaram 12 NMA diferentes onde usaram dados publicados para um medicamento e dados da FDA para os outros 11 medicamentos. Eles descobriram que os tamanhos do efeito para os medicamentos derivados da meta-análise em rede dos dados publicados, em comparação com aqueles derivados dos dados da FDA, diferiram em valor absoluto em pelo menos 100% em 30 de 66 comparações pareadas. Isso representa um viés enorme.

A NMA do Lancet, realizada por Cipriani et al., não continha nada de novo e o que foi alegado como novo era não confiável. No entanto, Cipriani promoveu o artigo de forma extrema, por exemplo, na BBC News|479|:

“Este estudo é a resposta final para uma controvérsia de longa data sobre se os antidepressivos funcionam para a depressão… Cientistas dizem ter resolvido um dos maiores debates da medicina depois que um grande estudo descobriu que os antidepressivos funcionam. O estudo mostrou grandes diferenças em quão eficaz cada medicamento é. Os autores do artigo disseram que mostraram que muitas mais pessoas poderiam se beneficiar dos medicamentos. O Royal College of Psychiatrists disse que o estudo ‘finalmente encerra a controvérsia sobre os antidepressivos’. Pesquisadores acrescentaram pelo menos mais um milhão de pessoas no Reino Unido se beneficiariam de tratamentos, incluindo antidepressivos.”

A média da pontuação de gravidade na linha de base na Escala de Avaliação da Depressão de Hamilton foi de 25,7, que é considerada depressão muito severa|270|. Assim, confirmou-se mais uma vez que a alegação frequentemente ouvida de que essas drogas funcionam para depressão muito severa está errada, pois o efeito médio estava muito abaixo da diferença mínima clinicamente relevante.

A NMA não relatou a taxa média de desistência, mas estava muito próxima de 1, o que também é um resultado enganoso. Como mencionado acima, quando meu grupo de pesquisa usou os relatórios de estudos clínicos dos reguladores de medicamentos europeus, descobrimos 12% mais desistências com o medicamento do que com o placebo (P < 0,000,01), portanto, se um milhão de pessoas a mais no Reino Unido deve se beneficiar, o tratamento deveria ser placebo|301|.

Mais tarde, meu grupo de pesquisa mostrou que os dados de resultado relatados no Lancet diferiam dos relatórios de estudos clínicos em 12 dos 19 ensaios que examinaram|480|.

A meta-análise do Lancet foi um exemplo extremo de lixo entrando, lixo saindo, o que é surpreendente considerando quem eram os autores. Entre os 17 co-autores de Cipriani estavam dois com os quais publiquei as diretrizes para relato de meta-análises em rede|217|, e um terceiro autor foi o estatístico da Cochrane, Julian Higgins, editor do Cochrane Handbook of Systematic Reviews of Interventions que descreve em mais de 636 páginas como fazer revisões Cochrane|481|. Isso sugere que alguns dos co-autores mais experientes não contribuíram muito para o artigo. Nenhum desses três estava entre os 12 autores que selecionaram os artigos e extrairam os dados, quatro dos quais declararam ter recebido dinheiro de empresas farmacêuticas.

Na Dinamarca, a meta-análise em rede foi extremamente promovida na página inicial de uma das cinco regiões, que fez referência a um artigo de jornal|482|: “A conclusão é clara: os antidepressivos funcionam. E aqueles que fizeram o estudo afirmam que alguns antidepressivos funcionam melhor do que outros. Uma desses ‘pílulas da felicidade’ que pode aliviar melhor a depressão é, por exemplo, o Cipralex.”

Claro. O Cipralex contém escitalopram, comercializado pela Lundbeck, e a exportação de medicamentos dinamarqueses é a maior fonte de renda nacional. Supera a agricultura, embora tenhamos quatro porcos para cada cidadão, e também tenhamos fazendas de porcos no exterior, por exemplo, na Espanha.

Não apenas os autores da Cochrane, mas também Poul Videbech atuaram como idiotas úteis da Lundbeck. Videbech elogiou a NMA da maneira mais bizarra|482|. Ele observou que o “estudo muito grande” era “muito mais credível” do que um estudo dinamarquês publicado um ano antes|268|, que ele alegou ter concluído que os medicamentos não têm efeito significativo. Ele também afirmou que Cipriani levou em conta as fontes de erro que os pesquisadores dinamarqueses não conheciam.

Como tantas vezes antes, o que é claro também no manual didático que ele editou|18|, Videbech foi altamente manipulador. Primeiro, não houve erros na meta-análise dinamarquesa de Jakobsen et al., que foi exemplar e altamente rigorosa, e Cipriani et al. não apontaram erros. Eles nem sequer citaram a meta-análise dinamarquesa, embora esta tenha sido publicada 12 meses antes da deles.

Em segundo lugar, a NMA foi muito menos credível do que a meta-análise dinamarquesa, que incluiu apenas comparações com placebo, o que é a razão para o menor número de pacientes. Como já foi observado, comparações diretas são notoriamente não confiáveis e não são pesquisa, mas marketing disfarçado de pesquisa|6,7|.

Em terceiro lugar, é falso que a meta-análise dinamarquesa não tenha encontrado um efeito significativo das drogas. O efeito foi altamente significativo (P < 0,000,01), como os pesquisadores relataram.

Em quarto lugar, o efeito na meta-análise dinamarquesa foi aproximadamente o mesmo que o encontrado na NMA; os tamanhos de efeito foram 0,26 e 0,30, respectivamente.

A principal diferença entre as duas meta-análises foi como os pesquisadores interpretaram seus resultados. No resumo, Jakobsen et al. concluíram: “Os ISRS podem ter efeitos estatisticamente significativos nos sintomas depressivos, mas todos os ensaios estavam em alto risco de viés e a significância clínica parece questionável. Os ISRS aumentam significativamente o risco de eventos adversos tanto graves quanto não graves. Os potenciais pequenos efeitos benéficos parecem ser superados por efeitos nocivos.”

Em contraste, Cipriani et al. concluíram: “Todos os antidepressivos foram mais eficazes do que o placebo em adultos com transtorno depressivo maior”, sem ressalvas sobre o risco de viés e absolutamente nada sobre os danos dos medicamentos. A única coisa que relataram foi a proporção de pacientes que desistiram precocemente devido a eventos adversos, que foi maior para todos os medicamentos ativos do que para o placebo. 

Todo esse episódio foi extremamente embaraçoso para Cipriani et al., para a Cochrane e para o Lancet. As duas NMA de Cipriani sobre depressão, uma para adultos|271| e outra para crianças e adolescentes|297| (ver páginas 112 e 163) e inúmeras outras meta-análises, por exemplo, virtualmente todas as revisões da Cochrane, são seriamente tendenciosas e devem ser desconfiadas. Esta é a conclusão indiscutível quando comparamos com os resultados obtidos em estudos baseados em relatórios de estudos clínicos submetidos aos reguladores de medicamentos|279,300,314,315,326,378|.

Essa importante mensagem não estava nos manuais didáticos. Os principais psiquiatras não querem ouvir a verdade sobre as drogas psiquiátricas. Eles preferem ser enganados pela indústria farmacêutica e por colegas corruptos e propagar declarações falsas sobre os medicamentos em seus livros e em outros lugares.

 

Para ver a lista de todas as referências citadas, clique aqui.

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Mad in Brasil (Texto original do site Mad in America ) hospeda blogs de um grupo diversificado de escritores. Essas postagens são projetadas para servir como um fórum público para uma discussão – em termos gerais – da psiquiatria, saúde mental e seus tratamentos. As opiniões expressas são próprias dos escritores.

Centenário de Frantz Fanon

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Texto originalmente publicado em Viento Sur (12/04/2025) a qual agradecemos, como também ao autor, a autorização de reprodução no MIB.

Faz cem anos do nascimento de Frantz Fanon (1925-1961), o autor cultuado da descolonização cuja obra fez parte da bagagem dos revolucionários da década de 1960, como Ernesto Che Guevara, Patrice Lumumba e Nelson Mandela, e contribuiu para forjar a ideologia de resistência e as lutas revolucionárias do Sul Global.

 

Nascido na Martinica quando a ilha ainda era uma colônia francesa, Fanon atendeu a três condições: ser negro, psiquiatra e membro da Frente de Libertação Nacional (FLN) durante a guerra de independência da Argélia. Ainda adolescente, aderiu ao movimento cultural e político da Negritude, promovido por Aimé Césaire — um compatriota que foi seu professor de literatura —, Leopold Sédar Senghor e Léon-Gontran Damas. Césaire, um grande poeta, político e comunista, teria uma profunda influência sobre Fanon, especialmente em seu primeiro livro, Pele Negra, Máscaras Brancas, onde ele aborda a alienação dos negros na sociedade branca por meio de observações clínicas, diagnosticando os sintomas patológicos do racismo na vida cotidiana. Analisa relações neuróticas onde o conceito de raça é reproduzido e naturalizado. Sua análise desvenda uma civilização na qual o sujeito dominado deve se submeter às máscaras brancas do colonizador, adotar seus significados (branquitude) e renunciar aos seus próprios (negritude). Nesse processo de alienação, todos tem pressa para se assemelhar ao branco, imersos em uma angústia de identidade. É na sua reivindicação da negritude que Fanon se diferencia de seus mestres, os ideólogos da nação negra, porque ele coloca a revolução social antes do seu antirracismo, a luta por outra sociedade sem opressores ou oprimidos, onde a cor da pele não importa, onde a diferença é aceita.

Fanon estudou medicina em Lyon com uma bolsa de estudos por ter lutado com as forças aliadas contra os nazistas. Especializado em psiquiatria, ele foi trabalhar, depois de alguns anos na França, com François Tosquelles – um psiquiatra catalão exilado após a Guerra Civil, cofundador do POUM e precursor da psicoterapia institucional – na Argélia, como diretor médico do hospital psiquiátrico Blida-Joinville, com mais de dois mil pacientes em condições desumanas e uma equipe médica escassa.

Fanon chegou à Argélia pouco antes da guerra de independência, onde sua filiação inicial à FLN o forçou a combinar seu trabalho como terapeuta com o ativismo clandestino, usando o hospital como refúgio e clínica para insurgentes. Em sua prática, ele trata vítimas e perpetradores da colonização, casos clínicos de sujeitos afetados pela guerra, colonos e colonizados, torturadores e torturados. Torturadores que vão ao seu escritório depois das sessões de tortura, queixando-se de várias doenças não relacionadas ao seu trabalho, digamos.

Como psiquiatra, Fanon vai além do que aprendeu em Saint Alban, antecipando-se a Franco Basaglia — que recorreria ao exemplo de Blida em sua negação da instituição psiquiátrica — ao propor que o microcosmo social da psicoterapia institucional torna o interno crônico, que o confinamento sempre limita o valor desalienante da terapia e que o meio socioterapêutico autêntico é a sociedade. Isso o leva a buscar tratamento fora do hospital psiquiátrico, promovendo uma terapia que confronta o sujeito com o conflito que causou a crise, com a toxicidade da realidade. Essa mesma realidade o obrigou, como militante clandestino, a se exilar na Tunísia, onde fundou o primeiro hospital-dia da África e atuou como estrategista e teórico da revolução, porta-voz em toda a África negra do Governo Provisório da República da Argélia. Uma revolução que Fanon aspira que se torne a vanguarda da revolução de toda a África.

Foi seu último livro, Os Condenados da Terra (cujo título faz referência à primeira estrofe de A Internacional), escrito já sofrendo de leucemia – ele morreu aos 36 anos, em 1961 – que lhe traria reconhecimento mundial. Nele, ele nos mostra que a violência da barbárie colonial não se manifesta apenas em massacres genocidas, mas, sobretudo, na imposição aos povos e raças colonizados de uma dependência servil e degradante. Por esta mesma razão, porque a privação e a submissão estão revestidas de humilhação, a resposta libertadora, a emancipação, sempre terá que ser uma insurgência violenta.

Mais de seis décadas se passaram desde a morte de Fanon, e a lacuna entre riqueza e pobreza no mundo foi reconfigurada, assim como o colonialismo, persistindo em formas de racismo, xenofobia e exploração, exceto na Palestina, onde a ocupação permanece de fato. Uma ocupação genocida que o governo israelense defende como um direito para salvaguardar a civilização ocidental, baseado na crença profundamente enraizada de que esse direito prevalece sobre o de outros povos que podem ser exterminados. Enquanto a Europa pede que o país “se abstenha de massacres” e o mantenha como parceiro comercial, inclusive em armas.

Hoje, muitos de nós concordaríamos com Fanon quando ele rejeita a Europa, uma Europa que engana seus valores, aqueles que ele foi defender nas trincheiras quando adolescente, e cuja verdadeira face ele espalha por todo o mundo ocidental.

Faz séculos – escreve naquela que foi talvez a sua última carta, que conclui Os Condenados da Terra e que nos parece premonitória – uma antiga colônia europeia decidiu imitar a Europa. Isso foi tão bem sucedido que os Estados Unidos da América se tornaram um monstro no qual as falhas, as doenças e a desumanidade da Europa atingiram dimensões terríveis.

O fato é que, com as imagens de Gaza naturalizando a desumanidade dia após dia, as bandeiras nacionais fechando fronteiras e apoiando uma extrema direita claramente fascista, ao reler Fanon quando diz: “O colonialismo não pode ser compreendido sem a possibilidade de tortura, estupro ou assassinato” (Fanon F., Por la revolución africana., México, FCE, 1974, p. 71), não se pode deixar de pensar que as democracias liberais em que vivemos, e que mantemos, não podem ser compreendidas sem a exploração, a alienação social e a guerra inerentes ao capitalismo que as constitui.

A habitabilidade social deste planeta só será possível através da subversão da ordem existente, e isso requer consciência coletiva.

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Mad in Brasil hospeda blogs de um grupo diversificado de escritores. Essas postagens são projetadas para servir como um fórum público para uma discussão – em termos gerais – da psiquiatria, saúde mental e seus tratamentos. As opiniões expressas são próprias dos escritores.

 

Manual de Psiquiatria Crítica, Capítulo 8: Depressão e Mania (Transtornos Afetivos) (Parte doze)

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Businessman running on increasing graph. Growth concept

Texto originalmente publicado no Mad in America , traduzido para o português por Letícia Paladino e revisado por Camila Motta.

Nota do editor: Nos próximos meses, a Mad in Brasil publicará uma versão serializada do livro de Peter Gøtzsche, Manual de Psiquiatria Crítica. Neste blog, ele discute que as pílulas para depressão aumentam a mortalidade e que a psiquiatria confunde os efeitos de abstinência com recaída. A cada quinze dias, uma nova seção do livro será publicada e todos os capítulos estão arquivados aqui

Pílulas para depressão aumentam substancialmente a mortalidade total

Em 2015, tentei descobrir quantas pessoas são mortas pelos três principais grupos de drogas: pílulas para depressão, benzodiazepínicos e drogas similares, e pílulas para psicose|7:307|. Utilizei a pesquisa mais confiável que consegui encontrar e restringi minhas análises a pacientes com pelo menos 65 anos de idade. O número estimado de mortes por medicamentos na Dinamarca (população de 5,8 milhões) com base no uso atual foi de 2831 para pílulas para depressão, 721 para tranquilizantes menores e 141 para tranquilizantes maiores. Estimei que a fluoxetina, sozinha, havia matado 311.000 pessoas em todo o mundo na faixa etária acima de 65 anos até 2004.

O alto número de mortes associadas a pílulas para depressão pode ser surpreendente. Isso se deve, em parte, ao fato de que tantas pessoas idosas as tomam (12% na faixa etária de 65 a 79 anos e 19% em pessoas com pelo menos 80 anos)|7:310|. Um estudo de coorte no Reino Unido com 60.746 pacientes com mais de 65 anos mostrou que os ISRS levam a quedas mais frequentes do que quando a depressão não é tratada, e que as drogas matam 3,6% dos pacientes tratados por um ano|447|. O estudo foi realizado com muito cuidado; por exemplo, os pacientes foram seus próprios controles em uma das análises, o que é uma boa maneira de eliminar o efeito de fatores de confusão.

Um manual didático aconselhou que, em idosos, deveríamos tentar uma droga para depressão mesmo diante de uma vaga suspeita do quadro, pois pode ser difícil distinguir entre demência e depressão, e porque as consequências para os pacientes são muito sérias se negligenciarmos “essa condição tratável”|18:121|. Este conselho é mortal. Mesmo que o risco de morte no estudo do Reino Unido tenha sido exagerado por algum motivo, é a melhor evidência que temos, e temos a obrigação de seguir a evidência.

Os psiquiatras não estão dispostos a ouvir sobre quão mortais são suas drogas, e não comunicaram nenhum dado sobre isso em seus manuais didáticos. Absolutamente nada.

Em outubro de 2017, fui convidado a dar duas palestras no 17º Congresso Mundial de Psiquiatria da Associação Mundial de Psiquiatria em Berlim|8:27|. O congresso foi organizado por Peter Lehmann, um reformador alemão que deseja tornar a psiquiatria mais humana, com autodeterminação e menos uso de medicamentos tóxicos. Ele contatou o comitê consultivo internacional e pediu que convidassem “usuários/sobreviventes da psiquiatria” como palestrantes, o que fizeram, e também me convidaram.

Falei em dois simpósios. Um deles foi um simpósio Internacional sobre desmame que destacou a crescente lacuna entre o conhecimento sobre problemas de desmame e a falta de apoio para isso. O outro foi respondendo à assustadora redução da expectativa de vida dos pacientes psiquiátricos.

Quando falei sobre o desmame de drogas psiquiátricas, havia cerca de 150 psiquiatras na plateia. A atmosfera era hostil, e várias pessoas fizeram perguntas irrelevantes, como se eu não acreditasse que o lítio funcionava?

Quinze minutos depois, falei no outro simpósio e meu título foi “Por que os medicamentos psiquiátricos são a terceira principal causa de morte após doenças cardíacas e câncer?”7 Três psiquiatras, dos mais de 10.000 presentes no congresso, compareceram. Eles se recusaram a dar entrevistas e evitaram cuidadosamente ser filmados por uma equipe de documentário que me seguia em Berlim, como se estivessem a caminho de ver um filme pornô. Essa era uma zona proibida. Um tabu.

Se você ler as bulas ou procurar artigos publicados relevantes, perceberá que as drogas psiquiátricas têm efeitos adversos que podem levar a quedas e acidentes de trânsito|448-453|. Esses danos incluem sedação, tontura, hipotensão ortostática, confusão e coordenação e equilíbrio prejudicados. As pílulas para depressão dobram o risco de quedas e fraturas de quadril em uma relação dependente da dose|452,453|, e dentro de um ano após uma fratura de quadril, cerca de um quinto dos pacientes estará morto.

Esses danos não serão percebidos pelos médicos, pois muitas pessoas caem e quebram o quadril de qualquer maneira. As drogas são, portanto, assassinas silenciosas, e os médicos não aprendem nada com sua frequentemente supervalorizada experiência clínica, que, na psiquiatria, os leva a erros com mais frequência do que a acertos.

Pílulas para depressão não previnem recaídas

É complicado que os sintomas de abstinência e os sintomas da doença sejam muitas vezes os mesmos. Se uma droga é interrompida abruptamente ou em um curto período de tempo, e o paciente fica deprimido, isso não significa que a doença voltou.

No entanto, quando os pacientes tentam parar de tomar a droga devido aos seus danos ou porque sentem que ela não funciona, psiquiatras, outros médicos, assistentes sociais e parentes geralmente dizem a eles que os sintomas demonstram que ainda precisam da droga.

É uma batalha difícil tentar parar de tomar pílulas para depressão|8|,mas geralmente, o que estamos vendo é o que eu chamo de depressão de abstinência. Este termo é uma descrição precisa do que acontece, mas posso ser a única pessoa a usar esse termo. Uma busca no PubMed com “depressão de abstinência” no campo de Título não resultou em registros, e nem mesmo uma busca no Google encontrou algo. Explicarei a seguir por que é correto dizer que os pacientes se tornam dependentes de drogas para depressão, embora a psiquiatria convencional continue a negar isso|7,8,90|.

Meu novo conceito deveria se tornar parte da linguagem usada pelos psiquiatras e ser incluído nos manuais de doenças. Defino a depressão de abstinência como uma depressão que ocorre em um paciente que não está atualmente deprimido, mas cuja droga para depressão é interrompida abruptamente ou ao longo de algumas semanas. Sua característica principal é que os sintomas semelhantes à depressão surjam rapidamente (dependendo da meia-vida da droga ou de seus metabólitos ativos) e desapareçam em algumas horas quando a dose completa é retomada. Reintroduzir a droga pode, portanto, ser considerado um teste diagnóstico para diferenciar uma depressão de abstinência de uma depressão verdadeira, pois depressões verdadeiras não respondem rapidamente às drogas para depressão. 

Um estudo de 1998 com 242 pacientes com depressão em remissão ilustra a diferença entre uma depressão de abstinência e uma depressão verdadeira|45|. Depois de se recuperarem, os pacientes receberam terapia de manutenção aberta com fluoxetina, sertralina ou paroxetina por 4-24 meses. Em seguida, tiveram a terapia alterada repentinamente para um placebo duplo-cego por 5-8 dias, mas o momento da interrupção do tratamento era desconhecido para eles e para seus médicos.

Os pesquisadores desenvolveram uma lista de 43 itens com base nos sintomas de abstinência relatados na literatura, e após o período de placebo, os pacientes foram questionados se haviam experimentado algum desses sintomas. Essa abordagem com lista de verificação tende a exagerar os sintomas de abstinência, e o estudo foi financiado pela Eli Lilly, fabricante da fluoxetina, que tinha um claro interesse em mostrar que a fluoxetina causa menos sintomas de abstinência do que as outras duas drogas, devido à meia-vida muito longa de seu metabólito ativo, cerca de uma a duas semanas.

Os três sintomas de abstinência mais comuns foram piora do humor, irritabilidade e agitação, que não são sinais de uma recaída da depressão. Como esperado, relativamente poucas pessoas apresentaram sintomas com a fluoxetina.

 

fluoxetina

(n=63)

sertralina

(n=63)

paroxetina

(n=59)

Piora do humor 22% 28% 45%
Irritabilidade 17% 38% 35%
Agitação 16% 37% 31%
Aumento na escala de Hamilton ≥ 8 6% 39% 36%

Sintomas de retirada em pacientes com depressão em remissão durante um período de uso do placebo de 5-8 dias.

Em uso de sertralina ou paroxetina, 40 dos 122 pacientes apresentaram um aumento de pelo menos 8 pontos na pontuação Hamilton, o que representa um aumento clinicamente relevante.

Haveria muito mais sintomas de abstinência se as drogas tivessem sido interrompidas por 2-3 semanas, especialmente com fluoxetina. Contudo, mesmo com uma interrupção de apenas 5-8 dias, 25 dos 122 pacientes em uso de sertralina ou paroxetina atenderam aos critérios dos autores para depressão.

Esse estudo mostra por que os médicos interpretam erroneamente a situação ao acreditar que a doença retornou. Poderíamos perguntar quantos pacientes poderiam desenvolver uma depressão verdadeira em uma semana aleatória em um grupo de 122 pacientes com depressão em remissão. Fiz esse cálculo com base em um estudo com 362 estudantes do ensino médio que já haviam tido um ou mais episódios de depressão|454|. Entre os pacientes que se recuperaram, 5% tiveram recaída em seis meses e 12% em um ano, sugerindo uma taxa de recaída relativamente constante ao longo do tempo. Usando esses dados, calculei o número esperado de pacientes que apresentariam recaída: 122 x 12% x 6,5/365 = 0,03, o que sugere que nenhum dos 25 pacientes que “recaíram” no estudo da Lilly teria recaído se não tivessem sido submetidos a uma interrupção abrupta.

Dois anos depois, a Eli Lilly realizou outro ensaio não ético com um design semelhante, que causou danos aos pacientes|305|. Os sintomas de abstinência após a retirada da paroxetina foram severos. Os pacientes experimentaram “piora estatisticamente significativa em náusea, sonhos incomuns, cansaço ou fadiga, irritabilidade, humor instável ou em rápida mudança, dificuldade de concentração, dores musculares, sensação de tensão, calafrios, problemas para dormir, agitação e diarreia durante a substituição por placebo.”

Os diversos danos sofridos pelos pacientes devido ao desenho cruel do ensaio da Lilly aumentam o risco de suicídio, violência e homicídio|7|. Isso era conhecido muito antes dos ensaios serem realizados|2,7,21|.

Não surpreendentemente, os pacientes prejudicados após a retirada da paroxetina relataram “deterioração estatisticamente significativa no funcionamento no trabalho, relacionamentos, atividades sociais e no funcionamento geral”|21|.

Foi apenas em ensaios de interrupção abrupta que observei esses resultados. De acordo com o manual de doenças da Associação Americana de Psiquiatria, DSM-5, a depressão maior está presente quando o paciente apresenta 5 ou mais dos 9 sintomas que “causam sofrimento clinicamente significativo ou prejuízo nas áreas social, ocupacional ou outras áreas importantes de funcionamento”|8|. Considerando como o transtorno é definido, não faz sentido que os ensaios de drogas evitem usar esses desfechos, que são muito mais importantes e relevantes do que uma pontuação em uma escala de classificação. A razão, obviamente, é que a indústria farmacêutica sabe que suas drogas não têm efeitos positivos nesses desfechos essenciais.

Como os psiquiatras geralmente confundem sintomas de abstinência com recaída, não é surpreendente que dois manuais tenham afirmado que, se a droga for interrompida precocemente|16:276,17:661|, o risco de recaída aumenta, e um outro observou que pelo menos 50% dos pacientes terão recaída|16:276|.

Essa concepção errada leva a orientações prejudiciais sobre o tratamento a longo prazo. Aconselha-se uma fase de continuação de 6-12 meses após a remissão|16:276,18:12| e, quanto mais longa, melhor|16:276|, por exemplo, em casos de depressão grave com risco iminente de suicídio|18:126|. Esse conselho é mortal. As drogas podem empurrar um paciente em perigo iminente de suicídio para o extremo. O mesmo manual afirmou, sem referências, que o efeito preventivo da psicoterapia não é tão pronunciado quanto o das drogas|18:126|. Essa informação falsa também é letal|7,272,381,382,384,385|, pois a psicoterapia reduz pela metade o risco de suicídio|272|.

Se um paciente teve dois episódios de depressão em cinco anos, o médico deve considerar continuar com a droga por mais um ano; se foram três episódios, por 5-10 anos ou pelo resto da vida|18:127|. Se o início ocorreu após os 50-60 anos, o tratamento deve ser contínuo, pois o risco de recorrência é quase 100%. Foi afirmado que com isso se obtém um excelente efeito preventivo dos antidepressivos. Esse conselho também é letal devido à alta taxa de mortalidade entre idosos que usam antidepressivos|7:310,447|.

As absurdidades são infinitas. Um terceiro manual recomendou continuar com a droga pelo mesmo número de anos que o número de episódios depressivos|17:360| Mesmo se imaginarmos que houvesse uma droga eficaz para a depressão que prevenisse novos episódios, isso seria bizarro. O conselho significa que, quanto menor o efeito, incluindo nenhum efeito, mais tempo o paciente deve tomar a droga. Se forem sete episódios, o paciente estaria “condenado” a mais sete anos de uso e seria considerado resistente ao tratamento. Isso evoca conotações ao direito penal. Quanto mais resistente ao tratamento for um criminoso, ou seja, mais ofensas e sentenças, mais longa será a última sentença.

Algumas páginas depois, o mesmo livro afirmou que o risco de recaída em casos de transtorno bipolar é de cerca de 85%, mas apenas 35% com tratamento médico|17:377|. Isso também está errado. Todos os estudos de manutenção são gravemente falhos, pois medem os efeitos da abstinência no grupo placebo, não a recaída.

Foi afirmado que a quetiapina reduz significativamente a recaída da mania — o que é improvável — e que tal efeito não foi demonstrado para outras pílulas para psicose|16:305|. É ainda menos provável que apenas uma droga para psicose, e não todas as outras, funcione. Isso está completamente errado|436|.

Esse manual recomendou tratamento de manutenção após apenas um episódio maníaco, por 2-10 anos ou pelo resto da vida, a menos que seja causado por drogas psicoativas|16:305|. Não ficou claro se isso inclui apenas drogas ilícitas ou também drogas prescritas, mas muitas drogas psiquiátricas podem causar mania, incluindo pílulas para depressão e drogas para TDAH|7|. 

O livro explicou que a interrupção abrupta sempre aumenta o risco de recaída, pois espera-se que a doença dure muito tempo|16:306|. Essa afirmação é absurda. Não é porque a doença durará muito tempo, mas porque os pacientes têm sintomas de abstinência. Isso foi descrito para todas as classes de drogas psiquiátricas|135|.

Aconselha-se uma interrupção gradual em pelo menos quatro semanas |16:584,19:295| ou alguns meses|18:239|, mas apenas um manual aconselhou mudanças particularmente pequenas na dose ao final|19:295|. Um manual ofereceu orientações perigosamente enganosas, postulando que os sintomas de abstinência poderiam ser evitados se as drogas fossem descontinuadas ao longo de duas semanas|17:360|. Em outra parte deste manual|17:660|, os autores recomendaram o que chamaram de “retirada lenta” em 1-2 meses, o que não é lento|8,136|.

Segundo os manuais, cerca de 20-30%|18:239| ou um terço|16:584| sofrerão sintomas de abstinência com a interrupção abrupta. Isso também não é correto. Metade dos pacientes sofrerá tais sintomas ao interromper o uso de pílulas para depressão, e em metade desses, eles serão muito graves|136|.

As informações sobre sintomas de abstinência variaram, incluindo tontura, dor de cabeça, cansaço, sintomas gastrointestinais, sintomas semelhantes à gripe, insônia, ansiedade, irritabilidade, agitação, sudorese, tristeza, aumento dos sonhos, contrações musculares e sensações de choques elétricos nas extremidades|16:584,17:360,17:660,18:239,19:295| Faltaram os danos mais graves: acatisia, aumento do risco de suicídio e violência, e depressão de abstinência.

Dois manuais didáticos afirmaram que os pacientes não se tornam dependentes das pílulas para depressão|17:661,18:239|, e um deles observou que, por causa disso, a recaída não deve ser confundida com sintomas de abstinência, acrescentando que a recorrência geralmente ocorre várias semanas após a interrupção do tratamento|18:239|. Um terceiro manual observou que os sintomas de abstinência geralmente ocorrem dentro de alguns dias, variando de um dia a duas semanas, e que a duração varia de alguns dias a várias semanas|19:295| Essas afirmações também estão erradas. Pílulas para depressão levam à dependência (ver página 107), e os sintomas de abstinência podem ocorrer muito mais tarde, após meses, por exemplo, se o paciente ficar estressado, e podem durar anos|8,136|. Outro manual observou que um terço teria sintomas de abstinência se o medicamento fosse interrompido abruptamente e recomendou redução gradual em pelo menos quatro semanas, mas não explicou como|16:584|.

Em um dos manuais, os autores alertaram que cerca de 40% dos pacientes com transtorno bipolar interrompem o tratamento e que isso acarreta um grande risco de novos episódios|16:296|. Obviamente, os pacientes não gostam dos medicamentos, mas os psiquiatras não se importam.

A negação profissional generalizada dos danos que as drogas causam aos pacientes foi exibida quando mencionei no noticiário da TV em 2011 que pílulas para depressão podem alterar a personalidade. Em um comentário sobre isso, o presidente da Associação Psiquiátrica Dinamarquesa escreveu que é enganoso focar em um efeito colateral tão assustador para os pacientes e que é extremamente raro|455|.

Não é. Seis anos antes, psiquiatras dinamarqueses publicaram um estudo em que 43% de 493 pacientes concordaram que o tratamento poderia alterar sua personalidade e 42% que tinham menos controle sobre seus pensamentos e sentimentos 89 82%. concordaram que, enquanto tomavam as pílulas, não sabiam realmente se eram necessários. As respostas dos pacientes correspondem de perto ao que outros pesquisadores encontraram|308|, mas os psiquiatras dinamarqueses se recusaram terminantemente a acreditar no que os pacientes lhes disseram. Eles chamaram os pacientes de ignorantes e escreveram que eles precisavam de “psicoeducação.” No entanto, os familiares tinham a mesma opinião que os pacientes sobre as drogas. Talvez eles também devessem ser ensinados de que estavam errados?

 

Para ver a lista de todas as referências citadas, clique aqui.

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Mad in Brasil (Texto original do site Mad in America ) hospeda blogs de um grupo diversificado de escritores. Essas postagens são projetadas para servir como um fórum público para uma discussão – em termos gerais – da psiquiatria e seus tratamentos. As opiniões expressas são próprias dos escritores.

Poesia Sobre o que é Desmedicalizar enviado por uma Psicóloga e Escritora

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Poesia enviada por Thalita Guimarães: 

“Essa escrita foi atravessada sobre um caso apresentado onde o cuidado era um dos pilares para entender o que é desmedicalizar”.

Por favor, não me diga o que eu tenho! Não me ofereça pílulas para anestesiar o que sinto. Eu conheço bem as minhas emoções, e elas não se resumem a essa tal “TAG” que espalham por aí. Também não são um simples conjunto de letras em um livro empoeirado. Isso não define o que estou vivendo. O que sinto é tão profundo que não pode ser reduzido a três categorias. Eu não me encaixo em nenhuma delas, pois tenho meu próprio molde, minha própria forma, e a considero tão bonita. Você não acha bonita também? Deveria achar, porque essa forma carrega um pouco de você. Afinal, você cruzou meu caminho, e sua forma também leva algo de mim. Não se pode criar uma forma sem que você se encontre em mim, e eu em você. Talvez eu seja avassaladora, porque mexo muito com você; percebo como você estremece quando me aproximo. Mas é que sinto tudo tão intensamente, com tanta beleza, que quero te contar. Desculpe, talvez eu tenha te atravessado. Mas aprendi que, na vida, se não soubermos atravessar com cuidado, podemos ser atropelados. E eu não quero ser atropelada — isso não é bom. Eu penso um pouco diferente, mas isso não é ruim. É um cuidado amoroso. Estou possibilitando o meu encontro com o sentir; sou construtora também! Estou estruturando o ser e desvelando a construção e desconstrução do meu próprio existir.

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Humanizar a Psiquiatria através da Escuta

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Communicating a message

“Tudo flui, nada permanece.”

Heráclito de Éfeso

Eu acredito que a evolução de um conhecimento e suas aplicações práticas depende de uma atitude de constante revisão e reflexão. Eu acredito também que devemos olhar para o que fazemos com condescendência e humildade. Sinto falta de debates na Psiquiatria a respeito de como estamos praticando e quais resultados estamos colhendo com o que fazemos.

No momento, tudo se passa como se houvesse uma ortodoxia na Psiquiatria que vem aplicando uma doutrinação no sentido de privilegiar a nomeação de um diagnóstico psiquiátrico e associar a ele alguma medicação como se houvesse uma correspondência entre uma coisa e outra. Como isso foi se instalando até se tornar uma prática disseminada? E como ela se sustenta? A ligação do diagnóstico psiquiátrico e as medicações entraram no imaginário da população de modo que a visão daquilo que o psiquiatra faz é somente prescrever medicações. Como chegamos a essa condição?

No meu questionamento encontro um ponto crucial para começarmos a entender o contexto, qual seja, a qualidade do encontro profissional-paciente. Penso que há dificuldades nesse quesito e que a melhora deve vir de dentro da Psiquiatria e não o contrário. É nossa responsabilidade assumir que algumas coisas não estão dando certo e precisam mudar para melhorar.

Muito já se escreveu sobre a relação profissional-paciente. Minhas considerações não trarão novidades conceituais nem nada que já não tenha sido dito por outros profissionais. Pretendo usar este espaço para atualizar o debate e expandir a consciência sobre o que vivenciamos no dia-a-dia. Talvez a escolha dos pontos e seu arranjo possa ser uma contribuição nesse sentido. Também quero destacar que os conceitos que vou utilizar vão além da Psiquiatria e podem ser estendidos a todos aqueles que estão na situação profissional de prestar ajuda a outro ser humano.

Hoje um dos argumentos mais frequentes entre profissionais é que eles não têm tempo para escutar o paciente. Como seria possível trabalhar com foco nas pessoas sem tempo para ouvi-las? Para a nossa saúde e a de nosso trabalho, precisamos rever o fator tempo. Cada um deveria analisar este ponto com carinho. O tempo é inexorável e se não construímos em nossas vidas um caminho com sentido no que fazemos, podemos deixar a correria esvaziar nosso trabalho. Por que tanta pressa?

A escuta requer tempo simplesmente porque o que está em jogo na interação é a conexão entre seres humanos, alcançar melhor compreensão sobre seus problemas e, às vezes, navegar águas turvas em que raramente podemos contar com as palavras

como remos da embarcação para nos levar adiante. Com frequência, os problemas são emocionais e de dificílima verbalização.

Quantos(as) pacientes que me procuram, alegando que numa única consulta de poucos minutos receberam diagnóstico psiquiátrico e saíram com uma receita sem entender o que se passou no encontro. Considero esta realidade preocupante. Há fortes indícios de que nessas horas ocorre uma precipitação das conclusões por haver em parte a prévia doutrinação para diagnosticar, mas sobretudo por não se permitir o não saber. Utiliza-se apenas a cognição e a racionalidade, em detrimento da capacidade empática para a identificação das emoções perturbadoras. Não quero aqui generalizar, mas posso afirmar que a condição citada é muito frequente.

Gosto do conceito da visão binocular de Wilfred Bion|1|. Ao estar com uma pessoa em nosso consultório é preciso reconhecer que um mistério nos está sendo apresentado. O conceito/atitude da “visão binocular” de Bion implica que devemos, ao mesmo tempo, utilizar do saber e do não-saber para ir integrando um mosaico. Apesar desta ideia ser apresentada no âmbito da Psicanálise, creio que aqui podemos com muita propriedade estender para além do encontro psicanalítico. Diz respeito, como Bion escreveu, a ambos, paciente e profissional, estarem “assustados” com o encontro. Um mistério ali colocado que não pode ser simplificado, muito menos banalizado. Precisamos assumir que pouco sabemos sobre quem está à nossa frente e ter a tranquilidade de estar nesta posição. Não há nada de errado em não saber, ao contrário, é o esperado. Creio que acomodar o não-saber em nossas entrevistas pode melhorar a percepção, pois abrimos uma trilha para o saber. O binocular tem um sentido integrativo, assim como nossa visão monocular é integrada para uma visão melhor, ampla, com percepção de profundidade, binocular. Saber e não-saber devem andar juntos, delimitando o progresso da interação.

Para melhorar, a Psiquiatria precisa ir além das queixas. Se algo não está bem com uma pessoa, por que é o cérebro que está desarranjado? Creio que caímos num erro categórico importante. A mente não é passível de ser completamente abordada por métodos da ciência experimental e não deve ser resumida ao funcionamento biológico cerebral, como algo puramente mecânico. O estudo da mente, ao meu ver, pertence principalmente a outras áreas como a Filosofia, a Antropologia, a Sociologia e a História. As comunicações que são feitas dentro de um encontro são de várias ordens e precisamos estar atentos a isto. Vejo na prática clínica que as queixas são muitas vezes a ponta de um iceberg. Os problemas que elas expressam, sim, são da mais alta relevância.

Quando pensamos sobre um encontro com um(a) paciente frequentemente, consciente ou inconscientemente, absorvemos as impressões que eles nos causam. Há que se incluir na formação dos profissionais noções básicas sobre as emoções nas interações. Normalmente há uma carga emocional trazida pelo(a) paciente que certamente afeta de alguma forma o profissional e o que ele sente diz algo sobre a interação. As fragilidades podem pertencer a um lado, ao outro ou a ambos. Esta percepção que parece vir do senso comum é frequentemente ignorada pelos profissionais|2|. Atender pessoas sempre vai envolver emoções, nem sempre agradáveis. Portanto, o manejo de emoções torna-se fundamental para que uma avaliação siga bem. Apesar de esta ideia ser enfatizada na Psicanálise, reitero que é um conceito amplo, tão antigo quanto a filosofia estóica do século III a.C. Portanto, não estou falando de psicologizar a relação, mas sim humanizar, prestar tributo e utilizar dessa sabedoria para conduzir tanto a vida como uma entrevista clínica.

A teoria classificatória que está aí em nosso cotidiano, pressupõe o conhecimento da pessoa. Um erro grave. Não conhecemos as pessoas e se quisermos realizar um trabalho mais humano e menos desviado das necessidades das pessoas, precisamos assumir que é o paciente que detém o conhecimento que precisamos para tentar ajudá-lo. Neste momento, seria tão bom descartar uma classificação pouco útil e nos abrir para conhecer melhor aquela pessoa específica que está conosco naquele momento singular. Com o aumento progressivo de categorias diagnósticas, as entidades nosológicas tornaram-se confusas, senão até um artifício irreal, prejudicando a vivência do encontro.

A consequência do tempo curto e a classificação do tipo “check list”, entre outras coisas não menos importantes mas não abordadas aqui, levaram a uma distorção da escuta. Não bastasse isso, há, na sequência, a prescrição irracional de medicações. Eu atribuo a este desvio, o fato de muitos profissionais deixarem de ouvir com mais calma essas pessoas. Quando se ultrapassa a barreira dos sintomas, consegue-se enxergar as reais necessidades das pessoas que nos procuram. A minha prática clínica e de muitos outros pelo mundo mostram que se alguém precisa de medicamentos, normalmente é por curto período. O uso prolongado de medicamentos psicotrópicos tem sido considerado danoso na maioria dos casos.

A situação atual é que não há trabalhos mostrando qual o melhor modo de apoiar as pessoas com problemas no uso e na retirada dessas medicações. Por isso, mais uma vez, precisamos ouvir as pessoas. O conhecimento pode vir delas e juntos podemos enxergar uma direção a seguir. A revisão das práticas podem lançar luz sobre este terreno, desde que se assuma a postura de aprendiz diante dos problemas dos(as) pacientes. Nós não temos a resposta para todos os problemas, mas podemos estimular a proposição de soluções. Quem sabe quando passarmos a acreditar na possibilidade de um tratamento psiquiátrico sem remédio, alternativas mais interessantes também fiquem claras, uma vez que ao invés de valorizarmos apenas o diagnóstico, passamos a escutar os problemas reais anunciados através dos sintomas. Enxergando além dos rótulos, podemos também pensar melhor nas possíveis soluções.

Neste sentido, aprecio a proposta de Steve de Shazer e sua esposa Insoo Kim Berg|3| que na década de oitenta desenvolveram uma abordagem focada em soluções. Trata-se de uma atitude prática (sem foco em diagnóstico) e muito respeitosa com as pessoas, com forte crença na capacidade de cada um oferecer uma possível “solução” para seus problemas|4|. Resumidamente, podemos dizer que as intervenções estimulam a criatividade, instilam esperança e promovem a colaboração, sem julgamentos. Entende-se que pequenos passos levam a grandes mudanças.

A prática clínica sugere que as soluções precisam passar pela participação dos(as) pacientes. A começar pela linguagem e cultura, a elaboração das soluções dependerá de uma codificação adequada. Na abordagem focada em “soluções” usa-se de princípios elementares como o que dá certo é estimulado, o que não dá, deve ser mudado ou substituído. Esse tipo de interação não deixa de ser uma forma de modificar o atual desequilíbrio no balanço do poder na consulta onde o profissional coloca-se como detentor do conhecimento e o(a) paciente como receptor(a) passivo(a), aliviando um certo peso colocado no profissional para oferecer soluções.

Por fim, entendo que a melhor administração do tempo, o processo empático, a conexão, o manejo emocional em consulta e a construção conjunta de soluções constituem a condição da possível humanização da escuta. Eu poderia até dizer que assim estabeleceríamos uma sintonia de experiência com os pacientes. Este tipo de escuta leva a uma compreensão de “dentro para fora” porque fornece uma via de conhecimento sutil, complexa e quase visceral das pessoas. O que está faltando no treinamento psiquiátrico é este tipo de escuta. Ela soma no avaliador as representações motoras e viscero-motoras, sugerindo que a maneira que as pessoas experimentam suas próprias ações, emoções e formas de vitalidade favorecem a percepção do seguinte fenômeno: a reciprocidade das vivências humanas|5|. Sentimos e entendemos melhor como as pessoas em geral experimentam as mesmas ações, emoções e formas de vitalidade quando observamos esses elementos ativos em nós e em outras pessoas. Creio que esta possa ser uma forma de enriquecer a atual condição do encontro profissional-paciente.

São Carlos, 24-III-24.

1 Apud Patrick Casement, Aprendendo com o Paciente, Imago, Rio de Janeiro, 1987, p.21

2 Optei em não utilizar conceitos da teoria psicanalítica como contratransferência e identificação projetiva porque estão associados à relação psicanalítica em si. No entanto, as reações emocionais ocorrem em todos os contextos de interação e é esperado que psiquiatras compreendam o significado e o mínimo manejo das mesmas. Para aqueles que ficaram curiosos sobre o tema na Psicanálise, recomendo a leitura dos trabalhos de Ralph R. Greenson.

3 Vide Steve de Shazer , Yvonne Dolan – More than Miracles – The State of the Art of Solution Focused Brief Therapy, Routledge, New York, 2007.

4 Aqui entende-se “solução” como um conceito bem amplo, incluindo aprender habilidades, interromper padrões problemáticos de ação, equilibrar relações, construir estrutura de vida, amadurecer emocionalmente, aceitar limites, etc.

5 Para se inteirar de como a ciência explorou este fenômeno, veja os achados sobre os “mirror neurons”. Recomendo, para começar, a seguinte revisão: Mirror neurons 30 years later: implications and applications, Luca Bonini et al, Trends Cogn Sci, 2022, Sept(9):767-781 (acesso livre).

 

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