A Política de Saúde Mental em Perigo no Brasil !

Apesar dos avanços alcançados em décadas de lutas do Movimento da Reforma Psiquiátrica, desde 2015 um onda de retrocesso vem tentando destruir as bases da Atenção Psicossocial e os direitos dos usuários.

0
1309

O Caderno do CEAS publicou recentemente o artigo A violência da contrarreforma psiquiátrica no Brasil: um ataque à democracia em tempos de luta pelos direitos humanos e justiça social , de Ana Pitta e Ana Paula Guljor.

As autoras têm por objetivo contribuir sobre o debate acerca dos retrocessos e ameaças aos direitos humanos dos usuários da saúde mental, arduamente conquistados pelo Movimento da Reforma Psiquiátrica. Elas fazem um percorrido histórico, em que relembraram como o movimento da Reforma Psiquiátrica foi amadurecendo até tornar-se política pública de diferentes governos, assim como conseguiu aprovar a importante lei 10.216 de 2001, a qual orienta sobre os direitos dos usuários, e que nasce a partir de um intenso debate e mobilização social.

No entanto, o artigo lembra que os avanços alcançados pelo movimento começou a sofrer ataques no final de 2015, quando foi nomeado para a Coordenação da Saúde Mental do Governo Federal, o antigo diretor de um dos maiores hospitais psiquiátricos da América Latina durante a Ditadura Militar. Após intensos protestos de usuários e profissionais, ele foi retirado do cargo. Algum tempo depois, em dezembro de 2017, houve a formulação da “Nova Política de Saúde Mental”, sem qualquer participação dos movimentos sociais, profissionais da saúde mental, usuários ou familiares, e por ironia, os maiores interessados no tema. Sobre a tal Nova Política:

” (…) traz apenas o retorno à hospitalização para usuários com transtornos mentais em hospitais psiquiátricos, e, em Comunidades Terapêuticas, para os usuários de álcool e outras drogas , multiplicando as camas de internação a números superiores aos tempos da “Indústria da Loucura”, quando o país gastava 97% dos recursos para o setor em hospitais (1982) e apenas 3% em estruturas comunitárias.”

Mas não para por aí, a rede ambulatorial também retorna a um modelo de prescrições de psicofármacos e guias de internação como sendo, oficialmente, a terapêutica principal. Se hoje já é difícil deslocar o saber biomédico de sua hegemonia com uma política que preconiza as estruturas comunitárias e que vem apostando nelas, quanto mais com uma política que explicitamente tem por único interesse o protagonismo do tratamento biomédico.

A nota técnica de 2018, ainda traz o retorno dos hospitais psiquiátricos na Rede de Atenção  Psicossocial, o que vai contra os princípios da própria atenção psicossocial, que pretende priorizar o tratamento comunitário e em liberdade. Dessa forma, o resultado é o retorno do dinheiro público para as redes hospitalares e comunidades terapêuticas, que apostam no enclausuramento. Mas lembremos que pela lei 10.216, os leitos psiquiátricos e de Álcool e Drogas deveriam ser estabelecidos nos Hospitais Gerais, o que praticamente não foi implementado na rede, com este decisão perderão ainda mais força.

Mais recentemente, ainda surgiu o documento “Esclarecimentos sobre as mudanças na Política Nacional de Saúde Mental e nas Diretrizes na Política Nacional sobre Drogas”, retirado do ar após uma enxurrada de críticas recebidas, que dá continuidade aos retrocessos nos direitos humanos dos usuários.

As autoras também destacam a dissociação da gestão das políticas de saúde mental do Ministério da Saúde e a de álcool e outras drogas, agora na Secretaria Nacional de Cuidados e Prevenção às Drogas (SENAPRED), no Ministério da Cidadania, ministério esse fortemente comprometido com as comunidades terapêuticas com amplo envolvimento político e religioso.

“Outros aspectos problemáticos, na Nota, são a defesa de ambulatórios
“especializados” desconsiderando a cobertura assistencial da Atenção Primária e o matriciamento por Núcleos de Apoio à Saúde da Família – NASF, ou mesmo a rede dos mais de 2.000 CAPS espalhados no território nacional, garantindo, assim, atenção integral e descentralizada no território nacional. O único momento no qual a saúde mental da infância e juventude está contemplada tem a ver com internação em hospitais.”

Não é possível esquecer de dizer que, no que diz respeito às tecnologias de cuidado, apenas a defesa da eletroconvulsoterapia (ECT) tem garantia de financiamento na nota.

As autoras concluem apontando para a necessidade de incentivar o debate através de artigos de pesquisadores interdisciplinares sobre a temática. É necessário se reafirmar as conquistas da Reforma, ao mesmo tempo, em que é necessário criar novas possibilidades de resistência, de fortalecimento dos serviços de saúde mental, assim como repensar nossos pontos fracos na assistência, para consolidar ainda mais a eficácia e o apoio social à Reforma Psiquiátrica. Isto não é apenas dever dos profissionais da assistência e pesquisadores da área, mas de todos nós, usuários, familiares, estudantes, movimentos sociais democráticos e populares e as mídias de comunicação.

•••

PITTA, Ana Maria Fernandes; GULJOR, Ana Paula. A VIOLÊNCIA DA CONTRARREFORMA PSIQUIÁTRICA NO BRASIL: UM ATAQUE À DEMOCRACIA EM TEMPOS DE LUTA PELOS DIREITOS HUMANOS E JUSTIÇA SOCIAL. Cadernos do CEAS: Revista crítica de humanidades, [S.l.], n. 246, p. 6-14, jun. 2019. (Link)

Artigo anteriorUm psiquiatra tenta tomar antipsicóticos: Seroquel
Próximo artigoDoente de Brasil
Graduada em Psicologia pela UERJ, especialista em Terapia Familiar pelo IPUB/UFRJ, com ênfase em saúde mental. Pesquisadora auxiliar do Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz Antonio Ivo de Carvalho (CEE/Fiocruz) e Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial(LAPS/ENSP/Fiocruz) Produtora e apresentadora do podcast Enloucast. Além de atuar como psicóloga clínica. Áreas de interesse: Saúde Mental, Terapia Sistêmica, Diálogo Aberto, Construcionismo Social, Medicalização e Patologização da vida