Nikolas Rose é professor de Sociologia no Departamento de Saúde Global e Medicina Social do King’s College London. Seu trabalho explora como conceitos em psiquiatria e neurociência transformam como pensamos sobre nós mesmos e governamos as nossas sociedades.

Tendo sido formado como biólogo, Rose descobriu que seus sujeitos eram indisciplinados: “Meus pombos não bicavam as chaves e os meus ratos não corriam em seus labirintos. Eles preferiram morrer de fome.” Ele passou a estudar psicologia e sociologia e se tornou uma das figuras mais influentes nas ciências sociais, bem como um expoente crítico da prática psiquiátrica hegemônica.

Escritor prolífico, Rose tem mais de quinze livros de sua autoria, incluindo, mais recentemente, Neuro com Joelle Abi-Rached (2013) e Our Psychiatric Future  (2018), abordando as controvérsias mais urgentes nos campos da neurociência e da psiquiatria. Ele também é ex-Editor Gerente de Economy and Society e Editor-Chefe da revista interdisciplinar BioSocieties.

Ao longo de seu trabalho, Rose enfatiza que é preciso olhar além das origens, ou “por que algo aconteceu?”, e concentrar-se nas condições sob quais as ideias e práticas emergem. As respostas podem não ser reconfortantes ou simples, porém podem nos ajudar a evitar soluções de tipo band-aid para lidar com problemas complexos.

Rose se baseia no trabalho do filósofo Michel Foucault para revelar como os conceitos em psiquiatria e psicologia vão além da explicação, para deste modo construir e interpretar como nós mesmos e o nosso mundo são vivenciados. Consistente com o adágio de Foucault, “Meu argumento não é que tudo é ruim, mas que tudo é perigoso”, o trabalho de Rose evita explicações simplistas sobre o porquê e como os campos da saúde mental correm mal e, em vez disso, examina como as injustiças podem acontecer sem pessoas injustas. Desta forma, seu trabalho frequentemente transcende a crítica e imagina novas possibilidades e maneiras de pensar sobre “saúde mental”, “normalidade”, “cérebros e mentes” e, em última instância, os “selves” [“eus”] que ainda podemos nos tornar.

Ouça aqui o áudio da entrevista que Nikolas deu à nossa colega Ayurdhi Dhar, do Mad in America.  A transcrição abaixo está editada, com a ideia de fornecer a você uma síntese do essencial do diálogo. 

Ayurdhi Dhar: Em seu trabalho, você aponta que, embora a psiquiatria e a psicologia (ou as psicodisciplinas) pareçam ser objetivas, elas são, na verdade, construídas nos “estilos de pensamento” da sociedade – modos de pensar que ninguém questiona. Por exemplo, em psicologia, existe uma ideia subjacente de que as coisas que acontecem fora de nós, chegam dentro de nós. Essa suposição leva a pesquisas que tentam localizar traumas em escaneamentos cerebrais, bem como teorias sobre sentimentos inconscientes ou pensamentos disfuncionais. Como você começou a questionar essas suposições subjacentes? O que o levou a essa área de investigação?

Nikolas Rose: Fui para a Sussex University na década de 1960, quando estudantes na Europa questionavam as suas universidades e a ordem política a elas associada. Embora eu tenha inicialmente sido formado em ciências biológicas, percebi que essas verdades não poderiam ser encontradas estudando as moscas-das-frutas.

Descobri que a psicologia humana era uma disciplina peculiar. Na história convencional, a psicologia remonta aos gregos; mas de repente, por volta do final do século 19, as psicodisciplinas se tornaram ciências. Eu olhei para essa história e vi não ser o caso.

Um exemplo revelador foi o conceito de inteligência. O psicólogo francês Alfred Binet vinha tentando entender a inteligência humana há muitos anos. Ele não chegou a lugar algum e sentiu que a inteligência era tão difícil de ser apreendida que tal conceito não existia. Após mudanças no sistema escolar francês, o ministério pediu a Binet que encontrasse um teste para mostrar quais crianças se sairiam bem nas escolas comuns e quais necessitariam de escolas especiais. Ele inventou um teste, que se tornou o primeiro teste de QI e que passou a ser a base do que pensamos do que é inteligência.

Este é um exemplo de que a história da psicologia moderna não começa no laboratório, na filosofia, no pensamento especulativo, etc. Ela começa com perguntas muito práticas. Não é que a psicologia tivesse um grande conhecimento científico da mente do qual ela fosse capaz de aplicar. Ao contrário, ela podia fazer um trabalho no mundo prático, e então se tornou uma disciplina científica respeitável.

Minha tese de doutorado e meu primeiro livro The Psychological Complex  mostrou como as disciplinas-psi não eram apenas formas de refletir sobre o nosso mundo, mas sim cruciais na construção de instituições-chave, tais como a administração de exércitos, trabalhadores da fábrica com pouca disposição para o trabalho, crianças desajustadas, etc. Em todos esses lugares práticos – o tribunal, os exércitos, as escolas – nasceram as disciplinas-psi. Estas formas práticas de administrar as nossas vidas estão agora a moldar a nossa maneira de pensar e de maneira fundamental. Pensamos: “É claro que algumas crianças são mais inteligentes do que outras. É claro que algumas crianças se desenvolvem mais rapidamente do que outras. É claro que algumas crianças estão mais inclinadas ao comportamento delinquente do que outras”.

Dhar: O trabalho de Foucault destaca que não era apenas porque os médicos tinham conhecimento psiquiátrico especializado, mas que, em vez disso, sua estatura criava especialização. Da mesma forma, não era que os asilos fossem curativos, mas porque as pessoas estavam sendo colocadas nesses locais, passaram a ser vistos como locais de tratamento.

Rose: Foucault lembra que os médicos ganharam o controle do manicômio não porque tivessem grande conhecimento especializado sobre a loucura, mas porque eram considerados sábios à luz de uma série de escândalos em torno da comercialização de manicômios e as suas péssimas condições. A Europa e a América do Norte decidiram regular como as pessoas iam para os asilos e decidiram que seria obviamente por meio dos médicos, porque eles eram considerados como sendo pessoas sábias e confiáveis.

Foucault também mostrou que o “olhar clínico” do médico surge como consequência de toda uma série de coisas contingentes que aconteceram naquela época, como foram as mudanças nas leis francesas de assistência. Quando as pessoas estavam doentes e precisavam de cuidados gratuitos de saúde, elas tinham que ir para os hospitais. Seu nome está escrito, agora você tem um histórico de caso e as pessoas o observam conforme como a sua condição se desenvolve dia após dia, semana após semana. Isso fez parecer que havia um padrão geral de progressão de um transtorno. Essas e outras coisas criaram as condições para esse olhar clínico. Nunca se deve procurar as origens, mas sim perguntar, “como isso ocorreu?”

Dhar: Muito do seu trabalho tem a ver com os escritos de Michel Foucault. O que foi que do trabalho dele que ressoou em você?

Rose: Foucault me forneceu as ferramentas conceituais para dar sentido às questões que me interessavam. Ele diz em algum lugar: “A história não é tanto para saber, mas para cortar” – cortar questões e torná-las inteligíveis.

O surgimento das psicodisciplinas é sobre o surgimento de um certo “estilo de pensamento”. História da Loucura de Foucault não foi realmente uma história da psiquiatria; era uma pré-história a mostrar em que condições algo como a psiquiatria surgiu e que agora existe – com seus asilos, seus médicos, suas classificações diagnósticas, etc.

Como estudante, entrei no mundo da psiquiatria, indo a hospitais psiquiátricos, vendo pacientes que estavam sendo demonstrados pelos médicos. Eu me perguntava como alguns pensamentos que me pareciam bastante normais eram vistos como sintomas psiquiátricos em pacientes. Vi tratamentos prevalentes como a terapia da aversão, que era usada para homens homossexuais. Os eletrodos eram fixados em seus genitais e, quando se sentiam excitados depois de receberem imagens estimulantes, eram atingidos por choques elétricos.

Isto era absolutamente horrível, e mesmo assim as pessoas que o faziam pareciam ser cientistas decentes e humanos, não guardas de campos de concentração. Como eles podiam pensar e fazer essas coisas e acreditar que não apenas era legítimo, mas cientificamente justificado? Que isso era objetivo e que era uma forma de terapia? Que isso estava fundamentado na pesquisa científica?

Essas coisas me fizeram questionar como esses “estilos de pensamento” surgiram e como eles produzem certos tipos de profissionais – os pequenos especialistas da ciência que vemos agora em nossas escolas, exércitos, hospitais, prisões, e em todos os lugares da sociedade.

Dhar: Essa é a importância de conhecer a história; esses métodos que parecem tão horríveis neste momento, uma vez os estudos demonstram ser eficazes.

Rose: Ao redor da Segunda Guerra Mundial, havia excitação sobre a psiquiatria física – terapia eletroconvulsiva, lobotomias. Parecia que tínhamos técnicas que funcionavam e que podíamos entrar no cérebro e alterá-lo. A pergunta é: em 50 anos, vamos pensar o mesmo sobre os psicofármacos?

Acho que estamos em um momento decisivo com as drogas. As pessoas percebem que elas não funcionam muito bem e que os chamados efeitos colaterais são tão prejudiciais quanto a da antiga discinesia tardia causada pelas drogas. A pesquisa cerebral mostra que algumas das consequências a médio e longo prazo dos transtornos são consequências de tomar as drogas cronicamente.

A esquizofrenia já foi considerada como sendo uma condição degenerativa crônica, até que ficou claro que a degeneração era uma consequência da institucionalização. Vamos olhar para trás daqui a 50 anos e pensar que nossa obsessão por essas pequenas moléculas é tão bizarra quanto aqueles tratamentos anteriores?

Estamos em uma situação paradoxal. Mais pessoas no mundo inteiro estão tomando produtos psicofarmacêuticos e, ao mesmo tempo, a pesquisa começa a questionar se eles são eficazes e revelam os seus efeitos adversos. Estes medicamentos são administrados por médicos de clínica geral que pensam que os medicamentos não podem fazer nenhum mal. Eles dizem: “Eu costumava dar tranquilizantes aos meus pacientes, Valium, etc. Eles eram viciantes. Pelo menos estes medicamentos de agora não podem fazer nenhum mal”. Eles estão começando a ver que esta história é problemática.

Dhar: Pesquisas agora sugerem que os antidepressivos têm efeitos de abstinência duráveis e severos, e que os antipsicóticos podem levar a sintomas psicóticos. O que me intriga é que, apesar de todas essas pesquisas, a posição neurobiológica e o paradigma biomédico não perderam nenhum vigor ou poder. O que lhes dá este poder?

Rose: Algumas dessas drogas podem, para algumas pessoas, proporcionar algum alívio a curto prazo; o que pode permitir que se afastem da crise avassaladora, com a finalidade de resolver os problemas reais. O problema é a sua administração crônica e a dosagem cada vez mais alta; com a suposição de que se uma droga parar de funcionar deve-se acrescente uma outra. Portanto, a polifarmácia é a norma.

Em vez de essas drogas serem tratadas como ‘algo’ que, por razões desconhecidas, produz algum alívio a curto prazo, acreditamos que sabemos como elas agem no caminho do transtorno – o que nunca, jamais foi demonstrado. Se as pessoas começam a ter efeitos adversos quando saem da droga, isso é atribuído ao transtorno e não às consequências da retirada.

A tragédia é que, desde os anos 60, este paradigma particular tem hegemonizado a razão psiquiátrica – todos os transtornos psiquiátricos têm a ver com os receptores, e os tratamentos devem agir sobre essas anomalias nos receptores. E essas drogas funcionam nos receptores; se não é dopamina ou serotonina, então talvez seja glutamato ou outra coisa qualquer; mas é certo que está nos receptores!

Eu trabalhei com o Projeto Cérebro Humano financiado pela Comissão Europeia. No cérebro humano e o dos primatas, existem sistemas redundantes enormemente distribuídos – você não toca apenas em um pedaço, e é isso. O cérebro é dinâmico. Se você muda uma coisa, tudo muda!

Estamos em um estado muito primitivo, com as intervenções no cérebro. No Reino Unido, as pessoas estão questionando este paradigma. Há interesse em drogas alternativas, como as antigas drogas psicodélicas e a sua eficácia terapêutica. Mas isso é tratado de forma hostil pelo nosso governo e pelos reguladores.

Dhar: Você escreve sobre que os limites dos diagnósticos da psiquiatria estão sempre em expansão, transformando os descontentamentos gerais da vida em doenças. Outros autores têm culpado a Big Pharma, o capitalismo neoliberal, etc., mas você diz que é mais do que isso. Você pode explicar?

Rose: Estamos no meio de uma pandemia, e os jornais estão cheios de histórias sobre as suas conseqüências para a saúde mental e com afirmações do tipo: “Está chegando um tsunami na saúde mental, precisamos de mais psiquiatras e melhor acesso a seus serviços”! É claro que as pessoas estão ansiosas enquanto suas vidas são viradas de cabeça para baixo. Isso é compreensível, mas agora esta linguagem das emoções não é suficiente. De alguma forma tudo isso está sendo recodificado como problemas de saúde mental.

Agora é incrivelmente difícil dizer que talvez seja melhor usar a linguagem das emoções, que as pessoas estão apenas fartas e infelizes ao verem os seus entes queridos morrerem. Estas são experiências normais e não sintomas de problemas mentais,  que requerem intervenções individualizadas feitas por um exército de especialistas em psiquismo.

Talvez precisemos pensar por que as pessoas mais profundamente afetadas são pessoas de grupos de pretos e minorias étnicas, vivendo nas piores formas possíveis de moradia, lugares superlotados, que são financeiramente vulneráveis, etc. Poderíamos pensar em intervir ali; mas não, a linguagem da saúde mental tornou-se uma forma de codificar o nosso descontentamento cotidiano.

Há o argumento de que talvez todas as pessoas sejam afetadas por problemas de saúde mental em algum momento de nossas vidas; e que este fenômeno precisa ser teorizado, analisado e tratado. Esta é a gradual emergência e expansão da psiquiatria. A famosa psiquiatra social Aubrey Lewis disse sobre a psiquiatria que não há outra profissão que, quando dada a existência de um problema e os psiquiatras perguntados se eles podem ajudar, o mais provável é que digam “Sim”. Você dá aos psiquiatras problemas como de crianças travessas, trabalhadores relutantes, pessoas sem teto; e eles dirão: “podemos dizer algo sobre isso”.

Os psiquiatras abraçaram todos esses problemas; os limites se espalharam e vem se espalhando. De certa forma, todos nós podemos ser chamados de pré-sintomáticos e em risco de alguma coisa ou de uma outra. Na medicina física, quanto mais cedo você detectar, melhor; então os psiquiatras pensam: “por que não na psiquiatria”? A intervenção precoce para crianças, para psicose do primeiro episódio – é a psiquiatria pensando em si mesma enquanto uma vocação de saúde pública.

Então os psicólogos olham para fora da Euro-América e pensam que essas populações estão privadas de acesso a essas intervenções; e temos o Movimento para a Saúde Mental Global. Os psiquiatras acreditam que sabem; ou que têm um estilo de pensamento com um potencial de saber, mesmo que não se saiba completamente agora, mas que esta é a forma de pensar e saber.

Eles pensam que têm tratamentos que funcionam e que, mesmo que não funcionem muito bem, estão no caminho certo para trabalhar. Porque pensam que sabem como saber, que sabem como tratar a você ou a ele.

Assim, devemos entender porque os psiquiatras pensam da maneira como pensam e abordam os argumentos internos. Devemos colaborar do ponto de vista da crítica amigável e questioná-los, as fraquezas de suas evidências, e chegar a alternativas. Existe um futuro para um tipo diferente de psiquiatria.

Dhar: Os grupos de usuários de serviços estão agora felizmente começando a ser incluídos nas decisões sobre saúde mental. Mas sabemos que os grupos de defesa dos pacientes são frequentemente assumidos pelos interesses das empresas farmacêuticas. Você acha que os grupos de usuários de serviços ou sobreviventes, agora que estão incluídos na formulação de políticas, serão cooptados como são os grupos de defesa de pacientes?

Rose: Foucault disse que a ascensão da psiquiatria lançou no deserto todas aquelas frases gaguejantes e ditas pela metade com as quais o diálogo entre a razão e a desrazão costumava ocorrer e que  a história da psiquiatria é a história desse silêncio.

Uma das mudanças é que o silêncio foi quebrado. Qualquer relatório no Reino Unido, como o relatório da comissão em Lancet, não pode ser escrito sem referência à experiência vivida por pessoas com transtorno mental, idealmente enquanto autores. Embora exatamente qual poder eles têm em moldar essa narrativa seja incerto.

O envolvimento da voz do paciente é a coisa mais significativa que aconteceu na psiquiatria desde a invenção dos psicofármacos, e pode transformar a psiquiatria de uma maneira melhor do que os produtos farmacêuticos o fazem. Pode exigir que a psiquiatria ouça as vozes daqueles que afirma beneficiar.

Mas há uma infinidade de problemas – a experiência do sobrevivente sendo reformulada em termos psiquiátricos, sobreviventes articulados que passam a ser considerados não representativos dos outros, etc. Os sobreviventes frequentemente não podem moldar a estratégia de pesquisa, as questões de pesquisa, a interpretação da pesquisa. As pessoas no movimento de usuários e sobreviventes no Reino Unido estão bem cientes desses desafios. Existe o perigo da cooptação, ainda que a cooptação não seja o destino. Estamos no meio de algo; e grupos como o Mad, que fomentam as histórias de sobreviventes, desempenham um papel crucial.

Devemos reconhecer que as pessoas que passaram por sofrimento mental e pelo sistema de saúde mental oferecem não apenas a experiência vivida, mas um tipo diferente de conhecimento válido. Esse conhecimento é desenvolvido em colaboração com outros; está aberto a desafios, capaz de dar provas, aberto a questionamentos.

Como a própria psiquiatria, os movimentos do usuário e dos sobreviventes são dominados por conflitos. Por exemplo, há dúvidas sobre se eles são dominados pelo Norte global? Existem conhecimentos autônomos no Sul global? Existe alguma virtude nos métodos tradicionais de cura? Os conflitos não são um problema; eles são como é como as coisas se desenvolvem.

Dhar: Você escreveu sobre “pensamento de risco”. Vivemos em uma época em que medir e identificar riscos faz parte de nossa cultura. Por exemplo, usamos testes genéticos para descobrir a suscetibilidade e as muitas avaliações em escolas e escritórios. Como o “pensamento de risco” e as disciplinas psicológicas trabalham juntas para influenciar como nos sentimos sobre nós mesmos?

Rose: O filósofo canadense Ian Hacking fala sobre o pensamento de risco enquanto trazer o futuro para o presente; o que nos faz sentir obrigados a pensar sobre isso. Então nos sentimos obrigados a fazer coisas no presente para influenciar este futuro. Parece ser irresponsável não fazer algo a respeito dos riscos.

Se disserem que comer hambúrgueres duas vezes ao dia aumentará as chances de ataque cardíaco, então parece irresponsável continuar fazendo isso, mesmo se vivamos em um ambiente obesogênico (causando obesidade) onde hambúrgueres são baratos e nos ajudam a alimentar os nossos filhos. Um senso de responsabilidade pessoal por nosso corpo é induzido e muito difundido. Não se trata de viver uma vida virtuosa ou de fazer o bem, mas de assumir a responsabilidade de administrar a nossa existência corporal, nosso peso, dieta, etc.

Com isso, vem uma série de tecnologias que pretendem trazer o futuro ao presente e torná-lo calculável para nós – as escalas, os testes genéticos etc. Depois, há questões técnicas. Veja, por exemplo, mamografias. Pesquisas em países nórdicos mostram que os números de falsos positivos e negativos são extremamente altos; além disso, muitos sinais precoces nunca se transformam em tumores. Da mesma forma, para o câncer de próstata em homens, existe um teste de antígeno para pré-identificar as pessoas em risco. O conhecimento do futuro e a intervenção vão causar mais mal do que bem? No caso do teste de próstata, muitos homens passaram por intervenções cirúrgicas que tiveram consequências importantes para eles; mas a maioria dos homens com câncer de próstata nem morrerá disso.

Para a psiquiatria, as perguntas se tornam ainda mais difíceis, isto porque os marcadores e as intervenções não existem e não podem ser encontrados. Fica a afirmação de que alguém é um risco elevado, sem especificidade sobre o que é esse indicador de risco; e sem quaisquer intervenções que vão mitigar esse risco. Mas o que você recebe é o estigma e outras consequências para o próprio indivíduo e de outros que pensam que aquela criança de oito anos corre o risco de desenvolver distúrbios psicopáticos.

Com o argumento da Síndrome de Risco de Psicose, a grande maioria das pessoas que têm um episódio que parece ser um episódio psicótico, nunca desenvolvem psicose futura. Mesmo que soubéssemos exatamente do que estávamos falando, as evidências sugerem que é um movimento muito ruim começar a fazer esses diagnósticos precoces; porque traz todas as desvantagens de ser identificado como uma pessoa em risco – pensando em si mesmo como uma pessoa em risco, e depois seus pais e seus professores observando – conduzindo ao efeito de looping.

O “pensamento de risco” na psiquiatria leva à ideia de que uma pessoa diagnosticada tem riscos em relação a outras, o que leva a graves injustiças. As pessoas estão sujeitas a longos períodos de detenção ou supervisão involuntária, com base em avaliações de risco realmente rudimentares e questionáveis.

Há a indústria de avaliação de risco com benefícios financeiros para psiquiatras que são trazidos como consultores. Em uma organização psiquiátrica que deve permanecer sem nome, eu disse que deveríamos deixar de ser chantageados pelo governo para fazer essas avaliações de risco, porque não somos bons nisso. Todos os psiquiatras de lá sabiam disso; mas parar o negócio de avaliação de risco isso significava desistir do segundo carro, da escolaridade particular para seus filhos, etc.

Dhar: Você escreve sobre o foco singular da psiquiatria no cérebro e como ele afeta a forma como nos entendemos. Você poderia falar sobre este conceito de “individualidade somática” e como as disciplinas-psi alteram o sentido que temos de nós mesmos?

Rose: A individualidade somática é a ideia de que a nossa identidade depende fundamentalmente de nosso corpo – sua forma, seu tamanho, sua aptidão, sua capacidade, etc. Gerenciar nossa existência corporal agora se torna a coisa mais virtuosa que podemos fazer, etc. O nosso eu se torna muito ligado aos nossos corpos.

A pesquisa cerebral tem feito progressos fantásticos nos últimos 30 anos. Sabemos mais do que nunca sobre os cérebros humanos; mas quanto mais sabemos, mais percebemos que não sabemos e compreendemos. Entendemos eventos moleculares em escala muito pequena dentro do cérebro; mas não sabemos como eles se desenrolam através das enormes complexidades de múltiplas sinapses e caminhos corticais.

Não sabemos claramente como os cérebros estão localizados no corpo; porque muitas vezes são estudados de forma isolada ou com animais. Nos estudos, os cérebros não são incorporados, e os corpos não são colocados em um ambiente; e o ambiente não é colocado no tempo e no espaço. Até que possamos começar a pensar sobre isso, não conseguiremos entender totalmente como os cérebros funcionam.

Havia uma esperança reducionista de que começaríamos por entender os menores blocos de construção do cérebro, as moléculas e sinapses, e que gradualmente trabalharíamos até o cérebro das criaturas simples e depois o cérebro dos humanos. Subir a escala provou ser impossível; muito menos colocar todas essas coisas no espaço e no tempo.

Não devemos descartar a neurobiologia, mas devemos começar com o cérebro humano tal como ele é, como ele se desenvolve em um organismo desde a concepção, sempre em interação com o seu ambiente. Tudo sobre o cérebro é moldado e envolvido para tornar possíveis as ações nesse ambiente.

Chegamos ao fim dessas abordagens reducionistas porque elas se mostraram incapazes de responder às perguntas que se impunham, e não conseguiram entender como você e eu podemos estar fazendo as coisas estranhas que estamos fazendo agora – falar, pensar, comunicar, etc.

Apoio uma nova relação entre as ciências neurobiológicas e as ciências sociais nas quais trabalhamos juntos, para entender como o nosso ambiente social e político molda quem somos. Dito de outra forma, se as pessoas estão experimentando sofrimento mental, como podemos entender isso em termos de a sua relação com seus corpos, cérebros e existência humana nesses ambientes? Como podemos intervir em sua relação com esses ambientes e não apenas com as estruturas moleculares?

****

Os Relatórios MIA são apoiados, em parte, por uma subvenção de Open Society Foundations.

[trad. e edição Fernando Freitas]

Artigo anteriorSob o imperativo da felicidade: psiquiatrização e performance
Próximo artigoMal-estar Psíquico na Pandemia
Equipe de Notícias da MIA Research: Ayurdhi Dhar é professora de psicologia na University of West Georgia, onde também concluiu seu Ph.D. em Consciência e Sociedade em 2017. Ela é autora de Loucura e Subjetividade: Um Exame Intercultural de Psicose no Ocidente e na Índia (a ser lançado em setembro de 2019). Seus interesses de pesquisa incluem a relação entre esquizofrenia e imigração, práticas discursivas que sustentam o conceito de doença mental e críticas de formas de conhecimento contextuais e a-históricas.