O artigo foi originalmente publicado no Mad in South Asia e traduzido ao português por Camila Motta, com revisão de Paulo Amarante.
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Neste artigo, os pesquisadores descobriram que o bem-estar entre os trabalhadores migrantes na Índia tem a ver com o cumprimento de suas funções sociais e com a esperança de um futuro melhor para sua família/comunidade.
Os pesquisadores Sangeeta Yadav e Kumar Ravi Priya, da Jindal Global University e do Indian Institute of Technology Kanpur, realizaram um estudo para compreender como os trabalhadores migrantes de Délhi e Kanpur entendem o cuidado e o bem-estar.
Os pesquisadores foram a Délhi e Kanpur para entrevistar 40 migrantes que trabalhavam em serviços domésticos ou manuais em fábricas ou indústrias. Eles descobriram que a maneira como os trabalhadores migrantes vivenciavam o cuidado era influenciada por vários fatores socioculturais. Sua compreensão do bem-estar se concentrava nos valores das relações familiares e comunitárias durante os momentos de angústia. Em outras palavras, para estes trabalhadores, a paz de espírito era relacional, como, por exemplo, saber que podem prestar apoio econômico aos seus filhos.
O bem-estar geralmente se refere também à capacidade de cumprir os papéis sociais e as responsabilidades para com os outros, como cuidar dos pais.
Os pesquisadores observaram que há um viés nas pesquisas sobre saúde mental e teorias psicológicas. Essas teorias geralmente não valorizam as realidades políticas, culturais e sociais da vida das pessoas. Esses contextos são fundamentais para a forma como as pessoas entendem o cuidado e experimentam o bem-estar. Esta pesquisa visa preencher essa lacuna. Suas descobertas contrastam diretamente com o trabalho psicológico tradicional, que se concentra no indivíduo e em sua própria vida.
Cerca de 450 milhões de indianos migraram internamente em 2011, o que significou 37% da população total. Os autores escrevem:
“Esses migrantes muitas vezes se veem cercados por condições, estilos de vida, sotaques e crenças que podem ser diferentes de sua própria cultura, criando uma variedade de desafios cotidianos a serem enfrentados. Por exemplo, muitas vezes eles têm de enfrentar agressões físicas, abusos, acusações de roubo e expulsão forçada de suas casas pela polícia ou por autoridades urbanas. Além disso, eles têm de suportar moradias impróprias, instalações sanitárias e de saúde inadequadas, salários menores, falta de cobertura da assistência social ou legal, longas jornadas de trabalho e condições de trabalho anti-higiênicas/insalubres”
Em sua análise, eles descobriram que 20% dos trabalhadores apresentavam sintomas de depressão, enquanto 21% apresentavam sintomas de ansiedade. No entanto, as diretrizes globais sobre apoio à saúde mental baseiam-se principalmente em dados coletados de comunidades de imigrantes e refugiados na Europa e na América do Norte. Os estudos globais sobre saúde mental entre trabalhadores migrantes ignoraram amplamente o contexto relacional e socioeconômico. Portanto, Yadav e Priya realizaram um estudo qualitativo para coletar dados de trabalhadores migrantes e entender o que eles consideram como bem-estar. Para isso, é importante usar as próprias expressões (linguagem) de angústia e felicidade das pessoas, e não palavras que sejam irrelevantes para elas.
Inicialmente, os pesquisadores tiveram dificuldade em traduzir a linguagem acadêmica, como “sukh” ou “mansik shanti”, para denotar a sensação de bem-estar dos migrantes. Mas eles perceberam que o uso desses termos não estava fazendo sentido para os participantes. Logo chegaram a um entendimento da linguagem preferida pelos trabalhadores:
“Eles denotavam sua felicidade ou paz mental significativa e cotidiana, por meio de palavras como “tasalli” e “sukun”. Eles se sentiam felizes e aliviados quando conseguiam dar boa educação ou valores aos filhos, ou quando sustentam as suas famílias fornecendo comida e dinheiro. A compreensão dessas expressões idiomáticas locais sobre bem-estar (paz mental cotidiana) usadas entre as comunidades de trabalhadores migrantes serviu como um ponto de vista comum para explorar o cuidado.”
Eles descobriram que, para os trabalhadores migrantes, o bem-estar era entendido e vivenciado como: relações saudáveis, esperança de ser alimentado, testemunhar o bem-estar de pessoas próximas, aderir a valores sociorreligiosos, fé em fenômenos metafísicos, escolher o caminho correto, melhores oportunidades de emprego apesar das dificuldades e melhores oportunidades para a educação dos filhos.
“Cultivar relações” incluía coisas como enviar apoio financeiro a pessoas próximas e ensinar bons valores uns aos outros. A “esperança de ser alimentado” implica o desejo de que, no futuro, seus filhos cuidem deles e os sustentem. Dinesh, um dos trabalhadores entrevistados, declarou: “Se eu tiver sorte, meus filhos cuidarão de mim e de minha esposa durante nossa velhice.” Ele também teve uma sensação de alívio pelo fato de que “pelo menos ele é capaz de fornecer a alimentação para a família e educação para seus filhos”, que é onde “testemunhar o bem-estar de pessoas próximas” entra em cena:
“A única fonte de alívio é minha família. Apesar de viver em condições tão restritas, fico aliviado porque meus filhos estão recebendo comida três vezes por dia. Fico feliz e satisfeito com o fato de minha família ser saudável e feliz. Caso contrário, a vida é miserável. A felicidade da minha família me dá uma sensação de satisfação.”
Os trabalhadores também relataram que têm muita confiança e fé em Deus para lhes dar forças para enfrentar os desafios da vida. Um trabalhador declarou: “Sempre que estou com medo [do futuro] ou desnorteado, penso em Deus. Ele é o criador supremo. Se ele me trouxe a este mundo, ele vai cuidar de mim”. Seguir o caminho correto é outra categoria na qual os trabalhadores identificaram sua fonte de força. Os trabalhadores valorizavam seguir o caminho correto mostrado por sua religião, que pode dizer para servir aos outros e fazer um bom trabalho.
Além disso, os trabalhadores valorizavam o fato de terem melhores oportunidades de emprego, apesar das dificuldades. Ter melhores oportunidades para a educação dos filhos é outro motivo para continuar o trabalho que os migrantes não qualificados estão fazendo (“Estamos nos esforçando ao máximo para dar uma boa educação aos nossos filhos para que eles possam ter um futuro melhor”). Uma linha subjacente que os une é o “cuidado como reafirmação do valor dos relacionamentos familiares e comunitários, mesmo em tempos difíceis”.
Pesquisas anteriores também observaram que, em sociedades que valorizam o bem-estar do grupo em detrimento do bem-estar individual, a recuperação de dificuldades sistêmicas ou geracionais ocorre por meio do relacionamento e da comunidade. As dificuldades geracionais incluem dificuldades que são transmitidas de uma geração para a outra, como pobreza, casta e violência de gênero, eventos sociopolíticos como a divisão. Um exemplo disso é a pesquisa de Joseph Gone sobre como a recuperação do trauma geracional dos povos indígenas na América do Norte é feita por meio do recurso comunitário (ou seja, dança em grupo, práticas espirituais e culturais em conjunto) em oposição ao trabalho individual em terapia etc.
Douglas Bloch, em seu artigo, usa os ensinamentos budistas para observar que, assim como não podemos nos iluminar sozinhos (e precisamos de uma sangha), não podemos nos recuperar sozinhos. Devemos nos recuperar em comunidade. A necessidade que temos uns dos outros é tanto nossa maior vulnerabilidade quanto nossa maior força.
Está claro que fornecer apoio e recursos para a família e os filhos, seguir o caminho correto e poder ter melhores oportunidades no futuro são os principais motivadores para que os trabalhadores migrantes sigam seus caminhos. Mesmo que, às vezes, seu trabalho pareça sem sentido ou se mostre difícil, muitos trabalhadores se apegam aos benefícios acima mencionados para continuar fazendo seus trabalhos.