Tradições Familiares e a Herança da “Loucura”

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Texto orignalmente publicado pelo Mad in America, traduzido para o português por Letícia Garnica.

Em muitas famílias, as tradições são valorizadas como a cola que une gerações. Elas são passadas como relíquias de família: receitas, rituais, frases e valores — referências compartilhadas que oferecem identidade e continuidade. Mas nem todas as tradições são benignas. Algumas são fios invisíveis de controle, vergonha e amor condicional. Algumas tradições, transmitidas silenciosamente, nos ensinam não como viver, mas como
obedecer, como esconder, como suportar. Como ter sucesso em um mundo injusto e disfuncional.

Essas dinâmicas herdadas podem ser difíceis de enxergar precisamente porque são normalizadas. São absorvidas cedo, muitas vezes sem questionamentos: não responda de volta. Não se emocione demais. Não traga vergonha a família. Erros devem ser punidos. Desvios dos valores familiares devem ser corrigidos. A dor deve ser mantida em segredo. Quando alguém quebra essas regras, algumas famílias reagem impondo papel de bode expiatório ao parente, manipulação ou exclusão. Em algumas, humilhação, manipulação, violência e ameaças de violência são consideradas parte do aprendizado de uma lição. E em outras, até mesmo expressões de amor podem vir com condições — recursos, informações e até mesmo afeto genuíno podem ser retidos até que o ente querido “se endireite e voe corretamente.”

O que isso tem a ver com “loucura”?

Bastante. Porque quando falamos de diagnósticos psiquiátricos que supostamente são “organicamente intrínsecos da família” — como esquizofrenia ou bipolaridade — ainda somos frequentemente solicitados a analisar os genes. Mas o foco na genética não conta toda a história. Embora possa haver algum componente genético, um crescente corpo de pesquisas sugere que a epigenética — o estudo de como a experiência pode alterar a
expressão genética — pode fornecer uma compreensão ainda mais matizada
de como as tradições da angústia são herdadas.

Epigenética refere-se à maneira como fatores externos, como trauma ou estresse, podem alterar a expressão dos genes sem alterar o próprio código genético. Essas mudanças podem afetar a forma como respondemos ao estresse, regulamos as emoções e desenvolvemos problemas de saúde mental. Em vez de focar apenas nos genes herdados, precisamos considerar como as experiências precoces, especialmente aquelas dentro das famílias, podem influenciar mudanças epigenéticas que impactam a saúde mental. Por exemplo, trauma ou estresse crônico podem deixar marcas epigenéticas em genes envolvidos na resposta ao estresse, na regulação emocional e no desenvolvimento do cérebro, predispondo os indivíduos a condições psiquiátricas. Isso sugere que os problemas de saúde mental podem não ser transmitidos apenas pela genética, mas também pela herança de traumas e influências ambientais incorporadas nas tradições familiares.

A saúde mental, assim como a experiência vivida, não existe no vácuo. Os ambientes familiares e sociais em que crescemos moldam profundamente a forma como vivenciamos e expressamos o sofrimento mental. Considere o conselho antigo para animais de estimação que quebram a casa toda: “esfregue o focinho deles na destruição e fale: cachorro mau!”. Embora agora seja uma teoria desmascarada sobre adestramento, ela também tem sido aplicada metaforicamente à correção humana. Em sua essência, trata-se de usar a vergonha e a punição como ferramentas de correção.

Embora frequentemente justificado como “amor difícil”, disciplina ou treinamento, o verdadeiro resultado é dano emocional. Isso transmite a mensagem de que amor e aceitação são condicionais — que você só é amável quando se conforma, não quando simplesmente é você mesmo. E talvez seja injusto esfregar a cara de alguém na confusão da família, para começo de conversa.

Com os cães, a maioria dos treinadores experientes dirá que esfregar o focinho deles em fezes ou urina não ajuda no adestramento. Quebra a confiança. Isso causa confusão. Desencadeia estresse e ansiedade, podendo levar à evitação ou até mesmo à agressão. Pode levar à supressão de sinais naturais. Mais importante ainda, não ensina o comportamento que você realmente deseja. As lições que estão sendo aprendidas não são as que estão sendo ensinadas. Mesmo assim, algumas tradições custam a morrer.

As famílias transmitem esses padrões não apenas por meio de ações diretas, mas também por meio do silêncio, negação e concordância implícita. A frase “É desse jeito que nós fazemos” torna-se um escudo contra a reflexão. Tentativas de questionar ou rejeitar essas tradições frequentemente encontram resistência ou desprezo. Quem se opõe pode se tornar a maçã podre — o “perturbado”, o “problemático” ou, eventualmente, o “doente
mental”. Tais reações destacam o quão profundamente arraigadas essas tradições estão — e o quão resistentes à mudança.

Poderia ser o que a psiquiatria chama de loucura é, em alguns casos, uma rebelião natural contra ser encaixado nessa tradições familiares nocivas? Uma forma de protesto interno contra a insuportável pressão de se conformar, ficar em silêncio, de carregar essa carga emocional acumulada por gerações sem poder extravasar?

O Impacto do Trauma Relacional Precoce

Alguns pesquisadores estudaram como traumas relacionais precoces — especialmente abuso emocional crônico ou negligência — moldam o desenvolvimento cerebral. A pesquisa de Martin Teicher enfatiza como a negligência emocional e física precoce pode causar danos psicológicos duradouros, influenciando o desenvolvimento da saúde mental na idade adulta. Da mesma forma, as orientações de 2025 da Organização Mundial da Saúde (OMS) sobre a reformas psiquiátricas sublinham a importância de apontar os determinação social do processo de saúde/doença, incluindo experiências adversas na infância (EAIs). Essas experiências, que frequentemente ocorrem dentro da unidade familiar, correlacionam-se
significativamente com o aumento dos riscos de transtornos mentais, uso de
substâncias e cronificação.

Em vez de focar na patologia individual, pode ser útil considerar a transmissão intergeracional do trauma. As famílias frequentemente passam padrões emocionais e comportamentais que afetam não apenas seus relacionamentos imediatos, mas também a capacidade dos filhos de lidar com o mundo. Quando as crianças crescem em um ambiente onde o sofrimento emocional é ocultado, o conflito é suprimido e a obediência é
exigida, elas internalizam essas normas, que podem posteriormente se manifestar como depressão, ansiedade ou outros “transtornos mentais”. O corpo e a mente, em sua luta para sobreviver a essas tradições opressivas, podem se rebelar na forma do que é clinicamente rotulado como “loucura”.

Isso nos remete ao contexto familiar em que esses padrões se desenvolvem. Para muitos, esses contextos são moldados por tradições familiares que priorizam o controle em detrimento da saúde emocional, ou o silêncio em detrimento da vulnerabilidade. A expectativa tácita de que as crianças suportem o peso desses fardos pode preparar o terreno para futuras dificuldades psicológicas.

A patologização dos sistemas familiares

No entanto, nossa cultura ainda tem como padrão patologizar o indivíduo ao invés de vez de examinar os sistemas sociais e familiares dos quais ele emergiu. Ao focar unicamente ao diagnóstico profissional ou muleta emocional dos indivíduos, negligenciamos os fatores ambientais nos quais eles estão submergidos — particularmente no ambiente familiar.

Em consonância com as orientações da OMS de 2025, precisamos adotar uma abordagem sistêmica para a saúde mental que leve em consideração todo o escopo da vida de uma pessoa, incluindo a dinâmica intergeracional em jogo. Essa abordagem enfatiza a necessidade de colaboração multissetorial e a abordagem de determinantes sociais e estruturais, que incluem a dinâmica e as tradições familiares. As famílias, em muitos casos,
não são apenas uma fonte de conforto e apoio, ela são um ambiente propício para raízes de disfunções, traumas não curados e negligência emocional.

A socialização que toma espaço nas configurações familiares pode promover resiliência e desenvolvimento emocional saudável, mas quando esses ambientes são carregados de vergonha, privação emocional ou negligência, tornam-se criadouros de condições angustiantes que são diagnosticadas e tratadas. Para abordar as causas profundas, precisamos olhar além do indivíduo, para os sistemas mais amplos dos quais ele faz parte — incluindo as estruturas familiares e culturais que moldam a autoimagem de cada um.

Fontes ocultas de angústia na tradição familiar

A “loucura” pode, às vezes, ser uma resposta natural a expectativas e punições inaturais embebidas nas tradições familiares. Os próprios costumes que prezamos como “valores familiares e tradicionais” frequentemente se desenvolveram como mecanismos de sobrevivência ou sucesso dentro de um contexto mais amplo de disfunção social — e, em vez de nos proteger, podem se tornar fontes ocultas de angústia que, em última análise,
alimentam o que chamamos de loucura. Por exemplo, quando a sobrevivência de uma família depende da manutenção de uma fachada de perfeição ou força, qualquer desvio desses ideais pode ser visto como uma ameaça à identidade e à coesão familiar. Consequentemente, indivíduos que não se encaixam nesse molde — seja por sensibilidade emocional, problemas de saúde mental ou simplesmente por não se conformarem com normas sociais disfuncionais — são frequentemente considerados bodes expiatórios e
rotulados como o “problema”.

Para aqueles que sofrem sob o peso dessas contradições, as feridas mais profundas surgem quando entes queridos — aqueles que deveriam saber mais — se alinham com a narrativa predominantes. E se tornam o rosto dela. Em vez de oferecer refúgio ou compreensão, reforçam as próprias normas que causam danos, tornando-se instrumentos de disfunção na vida de alguém que afirmam amar. Essa traição atinge mais profundamente do que a
rejeição social porque se encobre de preocupação e dever, mascarando a submissão à crueldade.

Falar sobre isso não significa culpar as famílias, mas sim, abrir um espaço para a verdade. Diversas vezes, essas tradições nasceram da sobrevivência — fora do desejo de se adaptar às pressões sociais ou de evitar o estigma. Ou talvez de um impulso para sermos “vencedores” em manter com sucesso a tradição familiar. Elas podem ter sido transmitidas por gerações anteriores, moldadas pela guerra, pobreza ou repressão social. Mas se não as
examinarmos e interrompermos, corremos o risco de preservar o mal em nome da herança.

Papéis sociais e expectativas herdadas

Nós herdamos mais do que genes. Nós herdamos histórias, papéis, expectativas e os motivos pelos quais o amor é conquistado ou negado. A Reforma dos Sistemas de Saúde Mental, envolvem o reconhecimento da interseccionalidade de vários fatores, como dinâmica familiar, práticas culturais e status socioeconômico. Padrões herdados podem moldar a forma como os indivíduos vivenciam o mundo e seu senso de autonomia nele. A pressão para se conformar aos papéis ou expectativas familiares, muitas vezes aprendida na infância, pode ser uma fonte significativa de sofrimento psicológico, particularmente quando eles são rígidos ou tóxicos.

Se sermos sérios em relação a compreensão do sofrimento humano, e a construção de respostas mais humanas a ele, precisamos olhar além do indivíduo. Precisamos considerar como os chamados valores familiares podem, às vezes, servir como vetores do trauma. Essas tradições, frequentemente enraizadas em noções ultrapassadas de disciplina, controle e vergonha — podem impedir que os indivíduos assumam plenamente seu eu
autêntico, o que é essencial para a saúde mental e o bem-estar.

Talvez a cura comece com uma nova tradição: a escuta. Ao promover espaços onde os indivíduos possam compartilhar suas experiências, desmascarando as feridas ocultas transmitidas por gerações, podemos começar a desafiar as convenções que limitam nosso crescimento. O processo terapêutico começa com a escuta e também com o exame das
tradições que há muito tempo são aceitas sem questionamentos. Essas tradições estão nos protegendo ou sutilmente criando diversas vezes as mesmas condições para o sofrimento que rotulamos como loucura?

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