Ressonâncias da (re) Medicalização e as Famílias Contemporâneas

As significativas transformações observadas na configuração familiar contemporânea suscitam cada vez mais reflexões. Mudanças na arquitetura da família, na sua dinâmica e na distribuição dos papéis dos seus membros expressam como ela vem se transformando profundamente. Entre tais mudanças, podemos destacar o declínio do patriarcado e da heteronormatividade, as questões relativas à autoridade, a democratização das relações familiares, entre tantas outras que despertaram possibilidades e rupturas em relação à concepção de família de outrora.

Especificamente nas últimas décadas, as formas de constituição familiar têm surpreendido tanto pela polivalência de expressões como pelo aumento da complexidade de suas relações. Embora as metamorfoses da família venham ocorrendo com certa rapidez, elas são fruto de signos culturais engendrados ao longo da história, construídos e reformulados paulatinamente de acordo com cada época e cultura. Os deslocamentos de lugares e funções de cada membro da família, assim como a determinação de um espaço privilegiado da criança tiveram implicações na trama e afetiva entre os indivíduos (Passos, 2015). Se, por um lado, a família assumiu diferentes facetas na atualidade, por outro, ela permanece sendo uma matriz de significado para o sujeito. Concomitantemente a essas transformações, ocorre um processo global progressivo de medicalização da existência (medicalização da morte, do nascimento, da aprendizagem, do sono, da sexualidade, da maternidade etc.) que se apresenta como um importante fator com sérias repercussões na constituição da subjetividade dos membros da família. A noção de medicalização refere-se à expansão da jurisdição da medicina para novos domínios que não eram médicos, sobretudo a problemas considerados de ordem moral, legal ou criminal. O termo medicalização faz referência a esse processo que se caracteriza pela função política da medicina, pela extensão indefinida e sem limites da intervenção do saber médico.

Há uma associação intrínseca entre o discurso médico e o discurso moral. Detectar indicadores das anormalidades e da delinquência constituem a própria história da psiquiatria

Segundo Lasch (1991), a partir da década de 50 a psiquiatria americana reformulou suas pretensões com uma imperial falta de modéstia. Os psiquiatras demandavam uma mobilização mundial do seu domínio (Sullivan, 1949) contra a guerra, os conflitos de classes, a ansiedade individual e a trágica epidemia de conflitos. A psiquiatria alcançou o status de uma ciência social configurando-se como sucessora da religião e de crenças ultrapassadas, superstições, ortodoxias absolutistas e filosofias massificadas. Os psiquiatras já não se propunham simplesmente a curar pacientes, mas pretendiam mudar padrões culturais (Lasch, 1991).

Conforme Farber (1956), o psiquiatra traduziria tudo o que é humano em termos médicos de enfermidade e, desse modo, assumiria um pesado fardo de responsabilidade: a própria moralidade.

Com Lasch (1991) pensamos que a família, o principal agente de socialização, desempenha um importante papel na reprodução de padrões culturais. Assim, ela não apenas confere normas éticas que proporcionam à criança sua primeira instrução sobre as regras sociais predominantes, mas também molda profundamente a subjetividade infantil utilizando vias das quais nem sempre se tem consciência. Os pais encarnam o amor e ao mesmo tempo o poder, transmitindo à criança, de forma totalmente independente das suas intenções manifestas, os preceitos e as obrigações mediantes as quais a sociedade se organiza. Desse modo, a família é um dispositivo crucial na transmissão da cultura.

Logo, a família medicalizada (ou remedicalizada) configura-se hoje como agente de normalização, como princípio de determinação, de discriminação da sexualidade e ainda como princípio de correção do suposto “anormal”. Os pais ficaram com a missão de serem capazes de diagnosticar as doenças de seus filhos assim como fazem os terapeutas ou agentes de saúde. Entretanto, esse controle familiar deve estar sempre submisso à intervenção do saber biomédico (Caliman, 2016). Intervenções médicas e medicamentosas tornaram-se sinônimos de preocupação e cuidado.

Como uma tendência global que atravessa localmente os nossos modos de existir, os processos de medicalização da vida têm estreita relação com um pensamento autoritário que estabelece comparações regidas pela normalização da existência. A existência normalizada reduz a pluralidade de condutas e modos de estar no mundo a critérios biológicos e externalistas, como a performance e a aparência. Assim, nos processos de medicalização, vemos que o cuidado está atrelado a um saber/fazer que têm a norma como parâmetro central (Caliman, 2016).

Vasquez-Valencia (2016) aponta para a existência de um movimento de higiene mental que se desenvolveu a partir da segunda década do século XX, cujo início se deu concretamente nos Estados Unidos. Segundo a autora, a higiene mental desenvolveu um discurso sobre a criança orientado para a prevenção, a saúde pública, o bem-estar e as políticas educativas que legitimaram a intervenção médica na esfera privada, especialmente, nas relações familiares. Baseando-se em critérios científicos, procurou-se identificar e determinar diversas etapas do progresso fisiológico e psicológico normal dos indivíduos, assim como contribuir para o controle da delinquência juvenil através de uma psiquiatrização da inadaptação infantil ao ambiente familiar, escolar e social (Richardson, 1989).

Ora, se por um lado é inegável os avanços tecnológicos na contemporaneidade, por outro, o desenvolvimento biológico não explica a emergência do sujeito e nem responde à pergunta: como nos tornamos quem somos?

Para Levy (2013), entre as transformações sofridas pela família atual pode-se sublinhar: a substituição do poder paterno por uma autoridade compartilhada; a disjunção entre parentalidade e conjugalidade; a desconexão da filiação e do parentesco em relação à realidade biológica. Assim, o biológico e o conjugal deixam de ser parâmetros fundamentais na definição de parentalidade.

As novas configurações familiares sinalizam as mudanças no funcionamento da família. A renegociação de posições e papéis na família sofreu influência de modelos igualitários e democráticos, transformando a estrutura familiar em uma espécie de rede fraterna, na qual a hierarquização e a autoridade tendem a ser constantemente questionadas (Giddens, 1993).

No início da década de 60, as investigações de Bateson sobre famílias influenciaram outros pesquisadores que se debruçavam sobre o tema. Especificamente, em 1956, no texto “Hacia uma teoria de la esquizofrenia”, Bateson, Jackson, Haley & Weakland propuseram que sintomas esquizofrênicos poderiam ser desencadeados por fatores não-biológicos. Segundo essa proposta, algumas famílias favoreceriam o surgimento de sintomas tipo esquizofrênicos em função de fatores comunicacionais (verbais e não verbais). A partir desse estudo, foi delineada a noção de “duplo vínculo”, cuja presença seria determinante para a eclosão de sintomas esquizofrênicos. Com efeito, a perspectiva de Bateson destaca-se por sua rejeição ao modelo normativo sobre a “saúde” ou a “doença” de uma pessoa ou família.

Segundo Bateson (1977):

“Na teoria do duplo vínculo não existe o pressuposto básico de que o estabelecimento da esquizofrenia seja algo mau. Assim, a teoria não é normativa e, menos ainda, pragmática. Não é sequer uma teoria médica, se é que isso existe. Posso até conceder que a esquizofrenia seja tanto uma “doença” que afeta o cérebro quanto uma “doença” que afeta a família, se o Dr. Stevens conceder que humor e religião, arte e poesia são tantas outras “doenças” que afetam o cérebro, ou a família, ou a ambos” (p. 231).

O duplo vínculo foi concebido por Bateson e cols. (1956) a partir de uma teoria sobre a esquizofrenia baseada na análise das comunicações, especificamente, na teoria dos tipos lógicos.  De acordo com esta teoria, na situação de duplo vínculo, o indivíduo encontra-se preso em uma situação da qual não pode fugir, em geral, uma situação familiar. Assim, conforme a proposta da teoria do duplo vínculo, o problema não se encontra localizado e reduzido ao indivíduo, mas implica de modo abrangente o contexto no qual o indivíduo encontra-se inserido e do qual não pode escapar. O pensamento de Gregory Bateson (1956) pode ser concebido como uma proposta desmedicalizante que buscou fazer face à perspectiva normalizante e potencializou a multiplicidade discursiva.

Em tempos atuais, testemunhamos a difusão do discurso médico tanto nas famílias como nas escolas e no judiciário, colocando em marcha um mecanismo que conecta e articula a medicalização com a judicialização das relações familiares. Esta articulação relega a estas instituições um papel normalizador, normatizador, silenciador da diferença e dos discursos a partir dos quais um sujeito poderá advir. Nesse sentido, podemos supor que as famílias contemporâneas, apesar de plurais e multifacetadas, têm sido convocadas a assumir uma posição normativa/normalizadora fomentada pelo processo de medicalização.

Referências

Bateson, G., Jackson, D. D., Haley, J., & Weakland, J. (1956). Toward a theory of schizophrenia. Systems Research and Behavioral Science1(4), 251-264.

Bateson, G. (1977). Play and paradigm. The Association for the Anthropological Study of Play Newsletter4(1), 2-8.

Caliman, L. (2016). Infâncias medicalizadas: para quê psicotrópicos para crianças adolescentes?. In: S. Caponi, M. F. Vásquez-Valencia & M. Verdi (Orgs.), Vigiar e medicar: estratégias de medicalização da infância (pp.47- 60). São Paulo: LiberArs.

Elkaïm, M. (1998). Panorama das terapias familiares 1. São Paulo: Summus.

Giddens, A. (1993). A transformação da intimidade sexualidade, amor e erotismo nas sociedades modernas. Unesp.

Lasch, C. (1991). Refúgio num mundo sem coração. Rio de Janeiro: Ed. Paz & Terra.

Passos, M. C. (2015). Vicissitudes do tempo na formação dos laços familiares. In: Féres-Carneiro, T. (org.) Família e casal: parentalidade e filiação em diferentes contextos. Rio de Janeiro: Ed. PUC- Rio.

Richardson, T. (1989). The century of the child: the mental hygiene movement and social policy in the United States and Canada. Albany, United States of America : State University of New York Press.

Vásquez-Valencia, M. F. (2016). A personalidade doente: higiene mental e medicalização da infância. In: Sandra Caponi, Maria Fernanda Vásquez-Valencia & Marta Verdi (Orgs.), Vigiar e medicar: estratégias de medicalização da infância (pp.47- 60). São Paulo: LiberArs.

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Psicanalista, membro do Corpo Freudiano Escola de Psicanálise no Rio de Janeiro; Doutora em Psicologia Clínica (PUC-Rio), sendo parte do doutorado realizado em período sanduíche, pela Capes, na Université Paris Descartes - Sorbonne Paris Cité (França); mestre em Psicologia Clínica (PUC-Rio), Especialista em Psicoterapia de Família e Casal (PUC-Rio). Autora do livro “Psicanálise com crianças na contemporaneidade: sintoma, família e medicalização” (prelo) e artigos na área. ORCID: http://orcid.org/0000-0001-5627-2636