Manual de Psiquiatria Crítica, Capítulo 8: Depressão e Mania (Transtornos Afetivos) (Parte Três)

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Nota do editor: Nos próximos meses, a Mad in Brasil publicará uma versão serializada do livro de Peter Gøtzsche, Manual de Psiquiatria Crítica. Neste blog, ele discute a moda mais recente, a ketamina, e como os comprimidos para depressão causam dependência e abstinência. A cada quinze dias, uma nova seção do livro será publicada e todos os capítulos estão arquivados aqui

 

Esketamina, a última moda na psiquiatria, é o S-enantiômero ou imagem espelhada da ketamina, um alucinógeno dissociativo usado como anestésico geral há mais de 50 anos.

A esketamina induz anestesia dissociativa, um estado semelhante ao transe que proporciona alívio da dor, sedação e amnésia. A ketamina é comumente usada como droga ilícita [294], muitas vezes chamada de droga recreativa, embora não seja particularmente recreativo ser viciado em drogas.

Em 2019, dois psiquiatras elogiaram o uso da esketamina para o tratamento da depressão resistente no British Medical Journal (BMJ) [295]. Junto com colegas, respondemos que o bom senso nos diz que uma droga não pode ter um efeito drástico sobre a depressão no primeiro dia de tratamento a menos que algo esteja terrivelmente errado.[296]

A esketamina foi aprovada pela FDA em março e pela EMA em dezembro de 2019. Ela não foi mencionada em nenhum dos manuais didáticos, nem mesmo no de 2021.[20] Mas o livro de 2018 mencionava a ketamina  na parte de alucinógenos em uma seção sobre abuso de drogas.[18:77]

A ketamina parece funcionar principalmente através da estimulação dos receptores opióides. Em um ensaio cruzado com 12 pacientes muito gravemente deprimidos (pontuação de Hamilton de 27.4), foi observado um “efeito” enorme no primeiro dia pós-infusão de ketamina, uma redução de 22.3, que corresponde a um tamanho de efeito de 7.0.[294] Um tamanho de efeito dessa magnitude é totalmente inédito na psicofarmacologia e também na medicina em geral. Para ensaios controlados por placebo de pílulas para depressão o tamanho do efeito é apenas de 0.2 a 0.3 e leva semanas antes que isso possa ser medido.[268,271,273]

Quando a ketamina foi suplementada com naltrexona (um antagonista opióide), a redução foi menor, de 5.6. Enquanto o uso prolongado de opióides pode causar depressão,[298] o uso prolongado de esketamina pode aumentar o risco de depressão crônica.

Os dois psiquiatras excessivamente entusiasmados escreveram que os efeitos da ketamina e da esketamina se encaixam na “teoria moderna de que a depressão surge de uma rede neural empobrecida em vez de deficiência de serotonina.”[295] Não está claro o que eles queriam dizer com isso e a novidade não torna uma teoria mais confiável do que a hipótese descartada sobre um desequilíbrio químico causando depressão (ver Capítulo 4).

Escrevemos que estamos convencidos de que poderia ser demonstrado que álcool, morfina, cocaína e ecstasy também exercem um “efeito” sobre a depressão no primeiro dia, mas isso não torna essas substâncias aceitáveis. Elas podem ter efeitos eufóricos agudos, mas o uso frequente e prolongado muitas vezes resulta em estados de humor disfóricos.

O sonho de uma solução rápida para a depressão nunca para. Tornou-se popular discutir sobre outros alucinógenos para depressão, a psilocibina, produzida por fungos, e até mesmo o LSD (dietilamida do ácido lisérgico) está sendo ressuscitado. Em 2020, os autores de uma revisão sistemática relataram resultados positivos e concluíram que o LSD é “um agente terapêutico potencial em psiquiatria.” [299]

Isso é incrível. Será que os psiquiatras aprenderão alguma vez com seus erros? Drogas psicodélicas não são a resposta para os distúrbios psiquiátricos. Elas pioram as coisas.

 

As pílulas para depressão levam à dependência

Depois que as autoridades na década de 1980 finalmente, mais de 20 anos depois de ser documentado que as benzodiazepinas causam dependência, admitiram que o enorme consumo de benzodiazepínicos era um desastre de saúde pública e começaram a alertar contra eles, o uso diminuiu.[264] Ao mesmo tempo, a Associação de Psiquiatria Americana endureceu os critérios para dependência de substâncias, muito convenientemente pouco antes dos ISRSs aparecerem no mercado.[304]

Eu frequentemente me perguntei quanto de corrupção estava envolvido, já que essa mudança nos critérios deve ter valido bilhões de dólares para as empresas.

As mudanças foram significativas. Antes de 1987, dependência significava o desenvolvimento de tolerância a uma substância ou sintomas de abstinência, que é como a maioria das pessoas definiria. Mas a partir de 1987, pelo menos três critérios de nove eram necessários e um critério de tempo também foi adicionado.[304] De algo muito simples, tornou-se altamente complicado, arbitrário e tendencioso e ninguém consegue lembrar de todos esses critérios ou aplicá-los consistentemente de caso a caso.[7:239]

Por exemplo: “Muito tempo” (quanto tempo?); “Substância frequentemente utilizada” (com que frequência?); “Atividades sociais, ocupacionais ou recreativas importantes abandonadas” (o que é importante e quem decide isso?); “Intoxicação ou sintomas de abstinência frequentes” (com que frequência?); “Substância frequentemente utilizada para aliviar ou evitar sintomas de abstinência” (este critério é sem sentido; se um paciente perde apenas uma dose de paroxetina, pode desencadear sintomas de abstinência[305] — “frequentemente” para paroxetina significa tomar três comprimidos de paroxetina por dia? Dificilmente).

Os novos critérios retiraram o poder dos pacientes decidirem por si mesmos se se tornaram dependentes das pílulas para depressão. O critério de tempo também é insensato. Os sintomas deveriam ter persistido por pelo menos um mês ou deveriam ter ocorrido repetidamente por um período mais longo. Muitos pacientes são dependentes de drogas psiquiátricas sem cumprir o critério de tempo. Eles podem ter tentado parar algumas vezes, mas rapidamente retomaram o tratamento e decidiram nunca mais tentar novamente por causa dos sintomas de abstinência que experimentaram. De acordo com o critério de tempo, tais pacientes não são dependentes, embora sejam os mais dependentes.

Os novos critérios são uma cortina de fumaça que serve para desviar a atenção do fato de que ISRSs e SNRIs causam dependência. Descobrimos em nossa pesquisa que os sintomas de abstinência foram descritos com termos semelhantes para benzodiazepínicos e ISRSs e eram muito semelhantes para 37 de 42 sintomas identificados.[304] Quando a Lundbeck, que vende várias pílulas para depressão, foi entrevistada sobre nossas descobertas, a empresa disse que não tinha sentido a ideia de que as pessoas poderiam se tornar dependentes de ISRSs.[306]

O pior argumento que ouvi — também de professores de psiquiatria — é que os pacientes não são dependentes porque não têm um desejo intenso por doses maiores. Se isso fosse verdade, fumantes não seriam dependentes de nicotina porque não aumentam seu consumo de cigarros e todo fumante poderia parar de fumar da noite para o dia, sem efeitos adversos.

Descrever problemas semelhantes como dependência de benzodiazepínicos como “reações de abstinência”, ou o termo ainda mais suave, “sintomas de descontinuação,” inventado pela Eli Lilly,[307:65] para ISRSs é irracional, e para os pacientes é a mesma coisa. Pode ser muito difícil para eles pararem com qualquer um dos dois tipos de droga. Uma pesquisa mostrou que 57% de 493 pacientes dinamarqueses concordaram com a frase: “Quando você toma antidepressivos por um longo período de tempo, é difícil parar de tomá-los,”[89] e em outra pesquisa, 55% de 1.829 pacientes na Nova Zelândia que tomavam pílulas para depressão mencionaram efeitos de abstinência, dos quais 25% descreveram como severos.[308]

Uma revisão sistemática mostrou que metade dos pacientes sentem sintomas de abstinência; metade daqueles com sintomas experimentam o grau de gravidade mais extremo disponível; e algumas pessoas sentem abstinência por meses ou até anos.[136] Uma pesquisa com 580 pessoas relatou que em 16% dos pacientes, os sintomas de abstinência duraram mais de três anos.[136]

De acordo com a Lundbeck, pacientes que dizem ter dificuldade em parar de tomar as drogas estão falando bobagem,[306] e de acordo com o professor de psiquiatria Lars Kessing, tais pacientes são ignorantes.[89] Não há muito respeito pelos pacientes na psiquiatria.

O Manual Didático de Psiquiatria da Associação de Psiquiatria Americana de 1999 afirmava que, não muito tempo atrás, a maioria dos pacientes se recuperaria de um episódio depressivo grave, enquanto agora “a depressão é um transtorno altamente recorrente e pernicioso.”[5:161] Mas o fato é que a doença não mudou. Os psiquiatras e outros médicos falharam em entender que eles mesmos criaram um desastre iatrogênico por causa do uso de pílulas para depressão.[7:256] A “cronicidade” aparente nos transtornos mentais é um artefato dos medicamentos utilizados.

Isso foi demonstrado em um estudo com 172 pacientes com depressão recorrente que estavam em remissão há pelo menos 10 semanas desde seu último episódio.[309] Dos que continuaram a tomar drogas, o que eles deveriam fazer de acordo com as diretrizes, 60% recaíram em dois anos. A taxa de recaída foi semelhante para usuários intermitentes (64%), enquanto foi de 46% para aqueles que não tomaram drogas e apenas 8% para aqueles que não tomaram drogas e receberam psicoterapia. Diferenças na gravidade da doença não explicavam esses resultados, então não foram devido a confusão por indicação.

Outro artigo mostrou que pessoas com episódios não complicados de depressão (com duração não superior a dois meses e sem incluir ideação suicida, ideação psicótica, retardo psicomotor ou sentimentos de inutilidade) mal eram mais propensas a ter outro episódio dentro de 12 meses do que pessoas sem histórico de depressão, e as taxas de recaída são muito baixas (3.7% versus 3.0%).[103] Outros dados mostram o mesmo.[7:256] No artigo “Medicalising Unhappiness” (Medicalizando a Tristeza, em tradução livre), Allen Frances escreveu: “Observar atentamente ao longo de várias visitas pode permitir que os médicos vejam se os problemas serão resolvidos sem intervenção.”[103] Isso é verdade para todos os principais transtornos psiquiátricos.

Sabemos há mais de 50 anos que as pílulas para depressão causam dependência, e os pacientes também sabiam, mas mesmo 50 anos depois de saber disso, o problema de dependência ainda estava sendo trivializado pelo Royal College of Psychiatrists do Reino Unido e pelo National Institute for Health and Care Excellence (NICE).[7:76] O Royal College of Psychiatrists priorizou os interesses da instituição e da profissão que representa em detrimento do bem-estar dos pacientes quando retiraram uma pesquisa incriminadora que contradizia totalmente o que eles postulavam assim que enviamos uma reclamação. O que eles afirmaram falsamente foi que, “Sabemos que na grande maioria dos pacientes, quaisquer sintomas desagradáveis experimentados ao interromper os antidepressivos se resolvem dentro de duas semanas após a interrupção do tratamento.”

Quando o Royal College of Psychiatrists se recusou a corrigir o erro, tornamos nossa reclamação pública e o programa da BBC Radio 4 – Today, cobriu isso em 3 de outubro de 2018. A instituição se recusou a participar do programa.

Posteriormente, a Royal Society of Medicine lançou uma série de podcasts onde o tópico de abertura era sobre pílulas para depressão e abstinência. Um dos dois entrevistados foi o psiquiatra Sir Simon Wessely, presidente da Royal Society of Medicine (e recentemente presidente do Royal College of Psychiatrists). Wessely rejeitou qualquer ligação entre pílulas para depressão e suicídio e afirmou, categoricamente, que pílulas para depressão não são “viciantes.”

Apesar da negação obstinada dos fatos pelos psiquiatras, as coisas mudaram. Em setembro de 2019, a Public Health England publicou uma revisão de evidências de 152 páginas fazendo recomendações importantes, incluindo serviços para ajudar pessoas a pararem de tomar pílulas para depressão e outros drogas psiquiátricas, e sobre pesquisas melhores e diretrizes nacionais mais precisas.[310] O NICE atualizou suas diretrizes de acordo com as evidências no mês seguinte.[136]

As empresas farmacêuticas não se importam com a segurança do paciente se isso puder prejudicar as vendas.[6,7] Os líderes psiquiátricos não se importam com a segurança do paciente se isso puder ameaçar sua própria reputação, a corporação que representam ou o fluxo de dinheiro que recebem das empresas farmacêuticas. Essa corrupção de uma especialidade médica também permeia nossas autoridades, que dependem muito de especialistas ao emitir diretrizes e só fazem mudanças se os críticos fizerem muito barulho público sobre as irregularidades.

Quando a profissão não pode evitar lidar com críticas públicas, as respostas frequentemente são reveladoras. Eu descrevi[7:16,311] como fui recebido com ataques ad hominem e argumentos científicos falsos e altamente enganosos[302] dos escalões superiores da psiquiatria convencional do Reino Unido depois que dei uma palestra inaugural em 2014 na reunião de abertura do Conselho para Psiquiatria Baseada em Evidência na House of Lords (Câmara dos Lordes), presidida pelo Earl of Sandwich: Por que o Uso de Drogas Psiquiátricas Podem Estar Fazendo Mais Mal do que Bem. Os outros palestrantes, a psiquiatra Joanna Moncrieff e o antropólogo James Davies, deram palestras semelhantes e escreveram livros críticos da psiquiatria convencional.[3,4,312,313]

 

O Número Necessário para Tratar (NNT) é altamente enganoso.

Quando os psiquiatras querem elogiar suas drogas, muitas vezes se referem ao Número Necessário para Tratar (NNT) para beneficiar um paciente, mas isso é tão enganoso para as drogas psiquiátricas que tal informação deve ser ignorada.

Tecnicamente, o NNT é calculado como o inverso da diferença de benefício. Se 60% melhoraram com a droga e 50% com o placebo, o NNT = 1/(0,6-0,5) = 10. Aqui estão os principais problemas:

  • O NNT é derivado de ensaios com falhas, com retirada abrupta no grupo do placebo, cegamento insuficiente e patrocínio da indústria com manipulação de dados e publicação seletiva. [6-8]
  • O NNT leva em conta apenas os pacientes que melhoraram em uma certa medida. Se um número similar de pacientes piorou, não há NNT, pois seria infinito (1 dividido por zero é infinito). Se uma droga for inútil e apenas tornar a condição após o tratamento mais variável, de modo que mais pacientes melhorem e mais pacientes piorem do que no grupo de placebo, a droga pareceria eficaz com base no NNT.

 

  • O NNT abre espaço para viés adicional. Se o ponto de corte escolhido para retratar a melhora não produz o resultado desejado, outros pontos de corte podem ser tentados até que os dados digam o que se quer. Tais manipulações com os dados durante a análise estatística, onde os resultados pré-especificados são alterados após os funcionários da empresa terem visto os dados, são muito comuns, também em psiquiatria.[6,7,137,279,300]
  • O NNT trata apenas de um benefício e ignora completamente que as drogas têm efeitos nocivos, que são muito mais certos de serem experimentados do que seus possíveis benefícios. Assim, em um sentido matemático, o NNT deveria ser negativo, mas nunca vi um NNT negativo na literatura. O NNT é -2 para danos sexuais de pílulas para depressão (como discutirei mais adiante), o que significa que para cada duas pessoas que não tratamos, poupamos uma de ser prejudicada sexualmente.
  • Se benefícios e danos são combinados em uma medida de preferência, é improvável que um NNT possa ser calculado porque as drogas psiquiátricas fazem mais mal do que bem. Só podemos calcular o número necessário para dano (Number Needed to Harm – NNH). As desistências durante os ensaios com pílulas para depressão ilustram isso. Como 12% a mais de pacientes abandonam o tratamento com a droga do que com o placebo,[301] o NNH é 8.

Quando os principais psiquiatras do Reino Unido em 2014 tentaram convencer o mundo de que as pílulas para depressão são altamente eficazes, eles não levaram em conta nenhuma dessas falhas.[302] Eles afirmaram que as pílulas para depressão têm um efeito impressionante na recorrência, com um NNT de cerca de 3 para prevenir uma recorrência.[302] Não era recorrência, mas sim sintomas de abstinência no grupo do placebo. Como apenas dois pacientes são necessários para obter um com sintomas de abstinência,[136] não pode existir um NNT para prevenir recorrência, apenas um NNH, que é 2.

Não pode existir um NNT em outros ensaios clínicos de depressão também, já que a diferença entre droga e placebo em ensaios defeituosos é de cerca de 10%,[303] ou um NNT de 10, o que é muito menor do que o NNH.

Essas questões se aplicam a todas as drogas psiquiátricas. Assim, os NNTs em psiquiatria são fraudulentos. Eles não existem.

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Para ver a lista de todas as referências citadas, clique aqui.

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Mad in Brasil (Texto original do site Mad in America ) hospeda blogs de um grupo diversificado de escritores. Essas postagens são projetadas para servir como um fórum público para uma discussão – em termos gerais – da psiquiatria e seus tratamentos. As opiniões expressas são próprias dos escritores.


Tradução de Leticia Paladino : Graduada em Psicologia pela UERJ, doutoranda em Saúde Pública pela ENSP/Fiocruz, mestre em Saúde Pública pela ENSP/Fiocruz e especialista em Saúde Mental e Atenção Psicossocial pela ENSP/Fiocruz.  Pesquisadora e Colaboradora do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial (LAPS/ENSP/Fiocruz).