Manual de Psiquiatria Crítica, Capítulo 8: Depressão e Mania (Transtornos Afetivos) (Parte Dois)

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Nota do editor: Nos próximos meses, a Mad in Brasil publicará uma versão serializada do livro de Peter Gøtzsche, Manual de Psiquiatria Crítica. Neste blog, ele discute as declarações enganosas sobre as pílulas para depressão e dosagem nos manuais didáticos que ele revisou. A cada quinze dias, uma nova seção do livro será publicada e todos os capítulos estão arquivados aqui

Agora que sabemos que as pílulas para depressão não têm efeitos clinicamente relevantes sobre a depressão, podemos nos voltar para os manuais didáticos. Eles não nos dizem nada sobre o mencionado acima.

Um manual didático afirmou que já se pode notar uma melhora com o uso de fluoxetina após alguns dias.[19:294] Isso é uma completa bobagem. Quer os pacientes sejam tratados com uma pílula para depressão ou com um placebo, leva-se cerca de 3 semanas antes de se notar melhoras, correspondendo ao efeito clinicamente relevante mínimo de 5-6 pontos na escala de Avaliação de Depressão de Hamilton.[273]

Outro manual mencionou que a maioria dos casos de depressão desaparecerá após 2-4 meses;[17:357] e um terceiro observou que 60-80% se recuperam após 6-10 semanas.[18:126] Nenhum manual didático explicou que isso não é um efeito da pílula ou do placebo, mas a remissão espontânea da depressão.

O último manual foi totalmente desonesto sobre os benefícios das pílulas[18:237]. Ele afirmou que a velocidade psicomotora, padrão de sono, apetite e humor se normalizam, e que os pensamentos depressivos sobre culpa, inferioridade e suicídio desaparecem. Nada se normaliza durante o tratamento com as pílulas, e as pílulas dobram o risco de suicídio (como discutirei mais adiante).

Este manual também observou que frequentemente leva-se de 2 a 4 semanas para que os efeitos possam ser observados, não raramente até mais tempo; e que as drogas frequentemente podem melhorar os déficits cognitivos, mas que esse efeito muitas vezes ocorre após meses.[18:237] Isso é como vender óleo de cobra. Não funciona, mas se você esperar tempo suficiente, estará melhor.

É também enganador afirmar que, ao testar o paciente, é possível observar um efeito mais cedo do que o paciente reconhece subjetivamente.[16:273] A avaliação do médico em uma escala de classificação não é menos subjetiva, e o que o paciente sente sobre o tratamento e seus efeitos adversos desagradáveis é mais importante do que o que o psiquiatra pensa.

Quando os psiquiatras – raramente – reconhecem que o efeito das pílulas é pequeno, muitas vezes adicionam que isso não é importante porque os pacientes se beneficiarão do grande efeito placebo.

Este é um equívoco comum entre os médicos e é devido a um erro lógico. Eles pensam que o efeito placebo é a diferença antes e depois em um grupo de pacientes tratados com placebo, o que não é verdade, pois a melhoria espontânea também está incluída nesse efeito.

É difícil estudar o efeito placebo porque precisaríamos de um grupo controle não tratado para comparar e um ensaio assim não pode ser cego. Um dos meus alunos de doutorado reuniu todos os ensaios randomizados em todas as doenças que incluíam tanto um grupo placebo quanto um grupo não tratado e descobrimos que o efeito placebo geralmente é pequeno, isso quando há algum.[274]

Um manual didático aconselhou que se uma redução de 50% na pontuação da escala de Hamilton não tiver sido obtida após 3-4 semanas, o médico deve tentar aumentar a dose ou trocar por uma droga com outro perfil farmacodinâmico, e afirmou que isso resultará em um efeito satisfatório em 60-70% dos pacientes.[16:273] Mais uma vez, tais afirmações são altamente enganosas, pois a melhoria espontânea está incluída.

Este manual observou que a relação dose-efeito é mal elucidada para os ISRSs, mas afirmou que o escitalopram era uma possível exceção e que os SNRIs mostram uma relação dose-efeito mais clara[16:583]. Nada disso está correto. Existem muitos estudos de dose-efeito e eles não mostraram aumento do efeito com a dose (como discutirei mais adiante).

Outro manual afirmou que um aumento da dose levaria à remissão total ou parcial em 60-80% dos pacientes e aconselhou que, se um tricíclico não tivesse curado o paciente, o paciente deveria ser internado no hospital onde a dose poderia ser aumentada para o nível sérico superior do recomendado, ou até mais.[18:124]

Um terceiro manual aconselhou a aumentar para a dose máxima ou a trocar por uma droga de outra classe[17:360].

A literatura psiquiátrica está cheia de conselhos e afirmações como essas que são prejudiciais e contrárias aos princípios da medicina baseada em evidências.

Podemos ver facilmente o porquê de ser inapropriado aumentar a dose usando como exemplo o escitalopram, pois um dos manuais disse que essa droga poderia ser uma exceção[16:583], enquanto o folheto informativo da FDA (Food and Drug Administration) para o escitalopram contradiz diretamente isso:[275]

Para adultos: “Inicial: 10 mg uma vez ao dia. Recomendado: 10 mg uma vez ao dia. Máximo: 20 mg uma vez ao dia … Não foram observados benefícios adicionais na dose de 20 mg/dia”.

A única coisa que os médicos obtêm ao aumentar a dose é aumentar os danos. O folheto informativo observou que em dois ensaios de dose fixa, as taxas gerais de incidência de eventos adversos foram de 66% com 10 mg e 86% com 20 mg. A incidência de danos graves, como acatisia e autolesão deliberada, também aumenta com a dose e os relatos de violência por parte dos pacientes sem histórico aparente de comportamento violento também estão relacionados à dose.

O escitalopram é o S-enantiômero do citalopram, a metade ativa de seus dois estereoisômeros, que são imagens espelhadas um do outro. Os comprimidos existem em três doses, 5, 10 e 20 mg, que são metade das doses do citalopram, 10, 20 e 40 mg, já que a parte inativa não está incluída.

A dose inicial de citalopram é de 20 mg uma vez ao dia, que pode ser aumentada para uma dose máxima de 40 mg/dia. “Doses acima de 40 mg/dia não são recomendadas devido ao risco de prolongamento do QT. Além disso, o único estudo pertinente à resposta à dose para eficácia não demonstrou vantagem para a dose de 60 mg/dia sobre a dose de 40 mg/dia.”

O folheto informativo para escitalopram mencionou que um estudo de resposta à dose cruzada em 113 sujeitos saudáveis mostrou que a mudança máxima no QTcF em comparação com o placebo foi de 4,5 ms com 10 mg e 10,7 ms com 30 mg de escitalopram administrado uma vez ao dia. Portanto, aumentar a dose aumenta o risco de danos letais para as duas drogas.

Quando os ensaios com fluoxetina X065 e HCJE, enviados para obter aprovação para o uso da droga também em crianças, estavam sendo revisados pela FDA, a Eli Lilly enviou um pedido de licença para a R-fluoxetina – um enantiômero da fluoxetina – que foi posteriormente retirado do mercado em parte devido a problemas de intervalo QTc. Tais problemas são uma questão com todos os ISRSs. No entanto, em resposta às preocupações da FDA sobre o estudo HCJE, a Lilly argumentou que o aumento estatisticamente significativo no QTc médio encontrado com a análise inicial era produto da variabilidade aleatória. O revisor da FDA respondeu secamente que, com um valor P de 0,009, o resultado era, por definição, improvável de ser produzido por variabilidade aleatória.

Quando nenhum benefício adicional é observado com a dose de 20 mg/dia de escitalopram, então a FDA também deveria alertar contra o uso de 40 mg/dia de citalopram, a dose correspondente do composto pai, mas não há tal aviso.

Nenhum benefício é obtido ao aumentar a dose de citalopram de 20 para 40 mg devido a forma da curva de ligação da droga aos receptores cerebrais. Quanto às outras drogas, a relação entre a ocupação do receptor e a dose é hiperbólica. Com a dosagem de 10 mg, 72% dos receptores de serotonina estão ocupados, o que aumenta para 81% com 20 mg e 86% com 40 mg, não muito diferente de 10 mg.

Existem muitos estudos de resposta à dose de citalopram e de outros comprimidos para depressão e eles mostram que aumentar a dose não aumenta o efeito.

No livro de 2009, “The Emperor’s New Drugs: Exploding the Antidepressant Myth”, o psicólogo Irving Kirsch explica a falácia de aumentar a dose e por que os médicos geralmente fazem isso quando seus pacientes não melhoram. O Sumário das Características do Produto para citalopram do Reino Unido observa que, “Nos estudos de dose fixa, há uma curva de resposta à dose plana, não sugerindo vantagem em termos de eficácia para o uso de doses superiores às recomendadas. No entanto, a experiência clínica indica que o aumento da dose pode ser benéfico para alguns pacientes.”

O sumário também tem este conselho, que já aparece na primeira página: “A dose recomendada é de 20 mg diários. Em geral, a melhoria nos pacientes começa após uma semana, mas pode ser evidente apenas a partir da segunda semana de terapia. Como em todos os produtos medicamentosos antidepressivos, a dosagem deve ser revisada e ajustada, se necessário, dentro de 3 a 4 semanas após o início da terapia e posteriormente, conforme julgado clinicamente apropriado. Embora possa haver um aumento potencial de efeitos indesejáveis em doses mais altas, se após algumas semanas na dose recomendada a resposta for insuficiente, alguns pacientes podem se beneficiar com o aumento da dose para um máximo de 40 mg por dia em incrementos de 20 mg de acordo com a resposta do paciente.”

O sumário para fluoxetina e paroxetina é muito semelhante, com uma dose recomendada de 20 mg, mas a dose pode ser aumentada para até 60 mg e 50 mg, respectivamente.

Quando os médicos aumentam a dose de pílulas para depressão, estão seguindo o conselho enganoso do fabricante, ecoado por nossos reguladores de drogas muito complacentes e favoráveis à indústria.

É pura bobagem quando o regulador de drogas do Reino Unido afirma que a melhoria nos pacientes começa após uma semana, mas pode se tornar evidente apenas a partir da segunda semana de terapia. Absolutamente nada se torna evidente em qualquer ponto no tempo porque a melhoria, quer o paciente receba uma droga ou não, é gradual. Portanto, também é impossível fornecer qualquer avaliação significativa após 3-4 semanas para decidir se a dose deve ser ajustada, mas os reguladores de drogas estão cheios de conselhos vazios como este.

É horrível que um regulador de drogas, que deveria emitir instruções com base em ciência sólida, diga que, “a experiência clínica indica que aumentar a dose pode ser benéfico para alguns pacientes”. Os psiquiatras valorizam muito sua experiência clínica sem perceber o quanto ela é enganosa, mas os reguladores não deveriam apoiá-los nesta ilusão. Para um paciente individual, o clínico não tem ideia se o paciente melhorou por causa do aumento da dose, pois não têm nada para comparar, mas sabemos a partir dos ensaios randomizados que este não é o caso. O texto nos folhetos informativos vem das empresas farmacêuticas que vendem as drogas, o que pode ser o pano de fundo para o conselho insensato do regulador de drogas do Reino Unido.

Kirsch menciona um estudo conduzido por psiquiatras alemães que ilustra essas questões. Pacientes deprimidos que não responderam à paroxetina ou maprotilina foram submetidos a uma dose aumentada da droga. Após isso, 72% deles (65/90) melhoraram significativamente, mostrando pelo menos uma redução de 50% na pontuação da escala de Hamilton. O problema era que este era um ensaio randomizado e a dose só foi aumentada para metade dos sujeitos. Ainda assim, a taxa de resposta também foi de 72% (60/83) no grupo onde a dose não foi aumentada.

A ocupação de receptores para fluoxetina é muito semelhante para 20 mg, 40 mg e 60 mg. No entanto, o regulador de drogas do Reino Unido aconselha os médicos a dobrar ou triplicar a dose se a resposta for insuficiente. A única coisa que eles obterão com isso é aumentar os danos sem aumentar o benefício enquanto enriquecem a indústria e seus amigos, alguns dos quais trabalham em agências de medicamentos.

Os danos são muito mal relatados nos ensaios randomizados, mas é um conceito básico e lógico em farmacologia clínica que doses aumentadas causam mais danos. Os danos muitas vezes são muito melhor relatados em estudos de coorte, pelo menos se os autores ou patrocinadores não tiverem interesses em escondê-los.

Um estudo desse tipo descobriu que a taxa de autolesão deliberada entre crianças e adultos até 24 anos de idade que eram novos usuários e iniciaram terapia em dose alta com citalopram, fluoxetina ou sertralina foi duas vezes maior, razão de risco 2,2 (1,6 a 3,0) do que entre pacientes correspondentes iniciando terapia com doses usuais (20, 20 e 50 mg, respectivamente). Este é um estudo convincente, porque a gravidade da depressão e a ideação suicida no início eram semelhantes em todas as categorias de dose e porque qualquer confusão precisaria ser implausivelmente grande para anular os resultados.

Um manual didático observou que, para depressão resistente ao tratamento, duas pílulas para depressão poderiam ser combinadas, mas advertiu que não há evidências que “com certeza” apoiem tal tratamento. Mas sabemos com certeza que usar duas drogas ao invés de uma aumenta a dose total e, portanto, os danos, sem benefício adicional.

Os manuais didáticos recomendaram a troca por uma droga com outro perfil farmacodinâmico se o efeito fosse insuficiente.

Um deles afirmou que a depressão resistente ao tratamento é observada em 30-40% dos pacientes dentro de 6-8 semanas; outro fez uma aposta mais baixa, de apenas 10-20% dos pacientes.

O primeiro manual observou que menos de 20% dos pacientes seriam resistentes ao tratamento se um tricíclico também fosse tentado. No entanto, isso provavelmente também aconteceria sem tratamento, pois este é o curso natural de uma depressão. Se você esperar tempo suficiente, a depressão “resistente ao tratamento” desaparece na maioria dos pacientes sem tratamento.

Quando as drogas não fornecem efeitos significativos, elas não o farão ao alternar entre eles. Um relatório abrangente de 403 páginas preparado pelo Centro de Prática Baseada em Evidências da Universidade McMaster, no Canadá, concluiu que, “Há baixa força de evidência avaliando diferenças relativas para qualquer abordagem de monoterapia ou terapia combinada. Todos, exceto 2 dos 44 estudos, não mostraram diferenças relativas nas taxas de resposta e remissão.”

Foi Gordon Guyatt, da Universidade McMaster, quem inventou o termo “medicina baseada em evidências”, em 1992. Ele defendeu um novo paradigma para a prática médica, que “desvaloriza a intuição, a experiência clínica não sistemática e a racionalização fisiopatológica como bases suficientes para a tomada de decisão clínica, e enfatiza a análise de evidências de pesquisas clínicas. A medicina baseada em evidências requer novas habilidades do médico, incluindo uma busca eficiente na literatura e a aplicação de regras formais de avaliação de evidências na literatura clínica.”

A avaliação rigorosa da pesquisa clínica é um pré-requisito para a prática da medicina baseada em evidências, mas os comentários críticos sobre a pesquisa citada foram quase totalmente ausentes nos manuais didáticos. Quando os autores usavam referências literárias, a pesquisa era aceita sem questionamentos. Meus estudos em psiquiatria me ensinaram duas lições:

  1. Muito poucos psiquiatras têm entendimento suficiente dos fundamentos da pesquisa clínica e podem avaliar criticamente o que lêem. Portanto, não podem praticar a medicina baseada em evidências.
  2. Muito poucos psiquiatras lêem qualquer coisa. Eles fazem o que seus líderes mandam, que geralmente fazem o que a indústria manda. Não é surpresa que a psiquiatria seja uma área desastrosa.

Para ver a lista de todas as referências citadas, clique aqui.

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Mad in Brasil (Texto original do site Mad in America ) hospeda blogs de um grupo diversificado de escritores. Essas postagens são projetadas para servir como um fórum público para uma discussão – em termos gerais – da psiquiatria e seus tratamentos. As opiniões expressas são próprias dos escritores.


Tradução de Leticia Paladino : Graduada em Psicologia pela UERJ, doutoranda em Saúde Pública pela ENSP/Fiocruz, mestre em Saúde Pública pela ENSP/Fiocruz e especialista em Saúde Mental e Atenção Psicossocial pela ENSP/Fiocruz.  Pesquisadora e Colaboradora do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial (LAPS/ENSP/Fiocruz).