A Patologização de Corpos Inconformes

0
25

Com o objetivo de analisar os enunciados biomédicos que tratam de intersexualidade como patologia, o artigo Discurso biomédico e intersexualidade: apontamentos sobre a patologização de corpos inconformes foi realizada uma revisão bibliográfica do discurso biomédico sobre as questões de intersexualidade, de produções acerca da história da sexualidade e do binarismo sexual na sociedade ocidental e de produções contradiscursivas dentro do campo da biomedicina, articulando tais noções à teoria queer.

O artigo aborda o tema da medicalização dos corpos disformes e pretende analisar o caráter patológico atribuido à intersexualidade. O discurso hegemônico fala de uma diferença total entre homens e mulheres: pênis e vagina, ovários e testículos seriam órgãos completamente diferentes, assim como hormônios e cromossomos distintos. No entanto, contrapondo-se a esse discurso, a bióloga Anne Fausto-Sterling aponta que, na verdade, é possível falar da existência de pelo menos cinco sexos diferentes, sendo o masculino e o feminino os extremos deste gradiente.

Na contramão da lógica binária, que tenta se passar por universal, são comuns os sujeitos que nascem com características que fogem dessa lógica. Essa condição de inconformidade são inúmeras, no passado era chamada de hermafroditismo. Atualmente, são conhecidas na literatura médica como anomalias de disfunção sexual (ADS). No texto foi utilizado o termo intersexualidade para se referir as ADS e intersexo para se referir aos sujeitos que com ela convive.

Os quadros mais comuns da intersexualidade são: hiperplasia adrenal congênita, síndrome de insensibilidade androgênica, disgenesia gonadal, hipospádia, síndrome de Turner e síndrome de Klinefelter. Destas seis condições mais comuns dentro do espectro intersexual, apenas uma é descrita como potencialmente mortal (hiperplasia adrenal congênita), todo o resto são desvios do padrão corporal esperado. No entanto, o discurso médico aponta que existe um risco para o sujeito que apresenta uma condição de corpo inconforme é passível de ser estigmatizado, e seu corpo deve ser corrigido. Segundo esse argumento, os médicos defendem a urgência das intervenções clínicas em corpos infantis por uma razão de cunho social. Uma resolução do Conselho Federal de Medicina sobre os casos de ADS afirma:

“O nascimento de crianças com sexo indeterminado é uma urgência biológica e social. Biológica, porque muitos transtornos desse tipo são ligados a causas cujos efeitos constituem grave risco de vida. Social, porque o drama vivido pelos familiares e, dependendo do atraso do diagnóstico, também do paciente, gera graves transtornos.”

Apesar do documento citar que existe risco à vida dos pacientes, como vimos, apenas um dos casos mais comuns de intersexualidade realmente coloca diretamente em risco a vida de um sujeito intersexo. SANTOS (2003) aponta:

“quando um corpo se apresenta ambíguo, para que este entre na normalidade da diferença sexual, para tal fazendo valer as tecnologias, de modo a evitar que este corpo cause um desequilíbrio na organização da sociedade. Os corpos sexualmente ambíguos são controlados pela medicina, submetidos a processos de “normalizacão”no intuito de que o sexo, corpo, comportamento, sexualidade e caracteres secundários funcionem em harmonia entre si e conforme a ideologia de uma sociedade heterossexista.’

É possível argumentar que a intervenção médica é urgente para evitar a estigmatização da criança intersexo. Mas os autores se questionam se mesmo com a cirurgia corretiva para o sujeito intersexo teria, socialmente, o efeito de adequação desejado, ou se a “correção”da intersexualidade não seria responsável por produzir um novo estigma, criando um sujeito normal de segunda classe, com uma aparência passável, mas incapaz de mudar sua essência doente.

“Assim, quando a política passa a ser aplicada como uma gestão da vida, a normalidade serve como dispositivo de controle dos corpos. Ao corpo anormal, leia-se aqui, intersexo, portanto, restava a conformidade – possível à época , pois ao sujeito se lhe fazia escolher um sexo e cabia a ele portar-se de acordo com o padrão esperado para esse sexo, respeitando, sobretudo, a performance heterossexual – ou a institucionalização.”

Na maioria das vezes, a escolha não é feita pelo próprio sujeito intersexo já que amiúde a cirurgia é realizada em uma criança neonata, sem condições de fazer sua própria escolha. Portanto, essa responsabilidade recai sobre os cuidadores, orientados pelos médicos.

Ana Lúcia Santos (2013) argumenta em favor da necessidade de uma descolonização da epistemologia biomédica para a produção de uma prática menos binária. Os autores defendem que a proposta de um discurso biomédico (re)construído em torno da noção de hospitalidade médica incondicional (usando uma noção Derridiana) é um grande passo para a despatologização de uma condição que se torna mais perigosa ao ser estigmatizada como doença pendente ao tratamento urgente. Nesse sentido, cabe uma produção transdiciplinar que permita repensar além dos limites do binarismo, e não permita a a-historicidade dos corpos e discursos biomédicos.

Para a bióloga Anne Fasuto-Sterling, o binarismo sexual é empírica e epistemologicamente insustentável, já que existem diversas graduações entre fêmea e macho. É possível dizer que há pelo menos cinco sexos e talvez até mais. A sua posição vai no sentido de despatologizar a condição intersexual e ressignificá-la enquanto condição natural. Entretanto, Fausto-Sterling afirma que a pretendida universalidade do discurso biomédico ocidental não atinge seus objetivos totalizantes, visto que diferentes culturas codificam algo patologizado pelo referencial biomédico a partir de seus referenciais próprios.

Por fim, o artigo conclui que todo conhecimento científico-natural é também científico-social, uma vez que seus desdobramentos têm impactos reais na vidas das pessoas. Tais impactos são sentidos pelos indivíduos patologizados e por seu círculo social próximo. Os sujeitos intersexo sofrem tratamentos invasivos em um corpo ainda incapaz de tomar decisões por conta própria. Nesse sentido, pensar uma hospitalidade biomédica incondicional passa pela tentativa de tornar factíveis novas condições de possibilidades para corpos que, via de regra, são impossibilitados de existir devida à práticas e discursos excludentes.

Também é importante que profissionais da área da biomedicina passem a ter uma formação mais compreensiva e integral, concebendo que as áreas de conhecimento dialogam entre si e não são saberes isolados, o que pode contribuir com profissionais mais humanizado(a)s, capazes de se questionarem acerca do processo de patologização.

***

Nota do Editor: Todos os artigos, matérias, notícias e traduções publicadas no Mad in Brasil são previamente autorizadas e revisadas pelo nosso editor-chefe, Paulo Amarante. 

***

de Almeida Trindade Braga, P., & Costa da Silva, M. A. (2023). Discurso Biomédico e Intersexualidade: Apontamentos sobre a patologização de corpos inconformes. Perspectivas Contemporâneas18(1), 1–15. https://doi.org/10.54372/pc.2023.v18.3531.