Limites da Medicina: Revisitando Ivan Illich

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Traduzido por Tiago Pires Marques (Mad in Portugal) do texto original publicado pelo Mad in America e revisado para o português do Brasil por Camila Motta (texto original).

O livro de Ivan Illich, A Expropriação da Saúde (Limits to “Medicine: Medical Nemesis- the Expropriation of Health”) me deixou boquiaberta quando o li pela primeira vez, há muitos anos, enquanto estudante de medicina. Relendo-o recentemente, fiquei impressionada com a sua originalidade e audácia, bem como com a atualidade do pensamento de Illich. Illich foi um visionário no sentido correto, um homem que ousou questionar algumas das nossas crenças mais profundas e imaginar uma forma de vida radicalmente diferente.

Quando me inscrevi para fazer medicina na Universidade, ser médica parecia um empreendimento totalmente progressista e benevolente. Como é que alguém poderia se opor a que os doentes melhorassem? Eu queria ir para o estrangeiro e espalhar as maravilhas da medicina ocidental pelo mundo subdesenvolvido. Mas rapidamente comecei a ouvir preocupações sobre o rumo da medicina. Wendy Savage veio falar sobre a medicalização excessiva do parto. Um estudante mais velho sugeriu que os médicos ocidentais que trabalham na África e na Ásia poderiam prejudicar os sistemas de saúde locais. Algumas pessoas se opuseram ao álcool gratuito e a outras regalias que as empresas farmacêuticas ofereciam aos estudantes de medicina desde o momento em que chegavam.

Havia também algo de desconcertante para mim no estudo incessante dos fatos do corpo humano. Nas aulas de dissecação, traçávamos a anatomia do braço, da perna e do tronco ao mais ínfimo pormenor e, em outras aulas, adquiríamos uma compreensão meticulosa da estrutura celular, da fisiologia e da bioquímica do corpo. Toda a biologia do ser humano nos era apresentada, incluindo o cadáver de uma pobre alma que tinha doado o seu corpo à ciência médica. Nunca duvidei de que este tipo de conhecimento é necessário se quisermos compreender os vários sistemas do corpo, de modo a intervir e a melhorá-los quando vão mal, mas me sentia desconfortável por razões que não conseguia identificar.

A Expropriação da Saúde traduz o meu mal-estar em palavras. Escrito como parte de uma crítica mais alargada da sociedade industrializada e das suas instituições, a tese básica de Illich é que a arrogância tecnológica nos levou a esquecer os limites da condição humana. Acreditámos que a tecnologia pode erradicar todo o sofrimento humano e proporcionar uma felicidade imaculada e eterna. Pagamos por esta expectativa irracional com a nossa autonomia, a nossa dignidade e a nossa capacidade de resistir.

Por muito difícil que seja escrever isto enquanto médica, há algo de inerentemente degradante na medicina. Afinal de contas,  se trata de permitir que outra pessoa interfira no nosso corpo, no nosso ser pessoal e físico. Quando se tratava apenas do médico local, apoiado por alguns medicamentos básicos, era uma degradação relativamente privada e contida, mas agora existe todo um sistema orientado para examinar, testar e ajustar diferentes partes de nós. Nos submeter à medicina exige agora a renúncia total à nossa integridade corporal.

Illich reconheceu que a medicina moderna desenvolveu algumas intervenções incrivelmente eficazes. Muitas das mais úteis, como a vacinação, são relativamente simples e podem ser administradas sem demasiada interferência. Outras, como o tratamento de ataques cardíacos ou do câncer, por exemplo, requerem uma grande intrusão corporal, incluindo a cirurgia para remover partes doentes, a inserção de dispositivos e a ingestão de medicamentos potentes e debilitantes como a quimioterapia. Não há dúvida de que estas intervenções podem proporcionar às pessoas mais anos de vida de qualidade boa ou razoável. No entanto, há uma contrapartida que raramente é reconhecida, uma vez que a medicina se tornou uma parte aparentemente indispensável das nossas vidas. Os milagres médicos têm um custo – e esse custo é a dignidade.

A medicina já não se limita a aliviar o sofrimento, mas envolve agora uma vida inteira de escrutínio, com controles e rastreios do berço ao túmulo. Depois, quando se fica realmente doente, desencadeia-se um esforço implacável para identificar, remover ou neutralizar a parte do corpo que está funcionando mal. Estes esforços concentram-se nos últimos meses de vida, numa batalha heróica para desafiar o inevitável.

No entanto, o problema da medicina não é apenas a sua relação com o corpo individual. É também a premissa de que podemos, e devemos, fazer tudo o que estiver ao nosso alcance para combater e atrasar a morte. A medicina criou o mito de que podemos curar tudo, se tivermos tempo e dinheiro suficientes. Consequentemente, muitas pessoas passaram a acreditar que a medicina venceu efetivamente a doença; que existe um tratamento para cada sintoma ou que a cura está mesmo ao virar da esquina. Apesar do crescente ceticismo do final do século XX, a fé no progresso científico para resolver todos os problemas continua a ser forte.

Mas somos mortais e a morte chegará mais cedo ou mais tarde. As doenças do envelhecimento, como a maioria dos cânceres e a demência, provavelmente nunca serão curadas. Em todo o caso, haverá sempre doenças que não podemos tratar e que causam morte prematura, dor, sofrimento e mágoa. O pensamento desejoso que a medicina tem vindo a incorporar obscurece as limitações da condição humana, deixando as pessoas menos conscientes da sua própria natureza. Esta negação da nossa fragilidade e mortalidade reduz a nossa capacidade de resistir à inevitável tragédia da vida.

As críticas mais específicas de Illich à medicina foram presságios. Descreveu a fabricação de doenças e a “invasão farmacêutica” e chamou a atenção para a importância da medicina baseada em evidências e do envolvimento dos doentes e do público muito antes destes começarem a ser aceitos pela medicina tradicional. A sua crítica ao diagnóstico por negar a autonomia da “autodefinição” é mais profunda do que qualquer um dos debates atuais sobre o DSM-5 (ver, por exemplo, a crítica da BPS ao DSM-5). Apesar dos seus argumentos apaixonados, A Expropriação da Saúde é um livro incrivelmente acadêmico, que se baseia amplamente na antropologia e na literatura transcultural, bem como em estudos sobre a epistemologia da doença e a linguística do sofrimento, entre muitas outras áreas.

Illich foi um homem notável, um acadêmico e ex-padre, que viveu de acordo com os seus princípios e recusou tratamento para o câncer que acabou por matá-lo. Embora a visão de Illich de uma sociedade alternativa seja descrita com mais pormenor em outros locais (como na sua famosa crítica à educação moderna, Sociedade sem Escolas),A Expropriação da Saúde apresenta alguns dos princípios em que essa sociedade se basearia. Seria organizada em torno das necessidades das pessoas para viverem vidas com significado, e não em torno da produção e do consumo por si só. Promoveria a autonomia dos indivíduos e das comunidades e a sua capacidade de autossuficiência, mas também reconheceria a necessidade de interdependência e de apoio mútuo. Integraria os aspetos mais úteis da tecnologia moderna, incluindo as intervenções médicas, mas as submeteria ao escrutínio democrático.

A Expropriação da Saúde tem muito a dizer sobre a psiquiatria, e o atual setor de saúde mental impulsionado pela indústria farmacêutica resume o monstro tecnocrático em constante expansão de Illich. A ideia de que os nossos descontentamentos são uma manifestação de cérebros defeituosos que podem ser abolidos com um tratamento médico sofisticado é exatamente o tipo de ilusão à qual Illich está respondendo. A promessa da medicina de uma solução rápida diminui a capacidade dos indivíduos e das comunidades para lidarem com as dificuldades e diferenças que são rotuladas como problemas de saúde mental. Embora não negue as muitas realizações da medicina, penso que a mensagem de Illich ainda precisa de ser ouvida.

 

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Nota do Editor: Todos os artigos, matérias, notícias e traduções publicadas no Mad in Brasil são previamente autorizadas e revisadas pelo nosso editor-chefe, Paulo Amarante.