Em Gaza, o enfoque nos sintomas de “transtorno mental” oculta a violência estrutural e a opressão

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Traduzido por Tiago Pires Marques de Mad in America (texto original) e revisado por Camila Motta.

Depois de entrevistar 30 clínicos de saúde mental em Gaza, os investigadores concluíram que o enfoque estrito no trauma, nos sintomas de “transtorno mental” e no diagnóstico psiquiátrico não consegue abordar e captar as causas e expressões do sofrimento na Palestina.

Os investigadores escrevem que “promover e restaurar o bem-estar mental atuando exclusivamente sobre sintomas e síndromes psicológicos impede a aplicação da justiça social e da equidade numa sociedade caracterizada pela violência estrutural e pela opressão”.

Marwan Diab, diretor do Programa de Saúde Mental Comunitária de Gaza, juntamente com colegas dessa organização e da Universidade de Stellenbosch, na África do Sul, liderou a investigação. Os resultados foram publicados na revista Transcultural Psychiatry.

O estudo foi realizado antes da atual e contínua ofensiva israelita no território ocupado de Gaza, que resultou em mais de 22.000 mortes de palestinianos, na sua maioria civis, e que se seguiu ao ataque do Hamas em 7 de outubro, que matou cerca de 1.200 israelitas, na sua maioria civis. Esta última onda de violência agrava as condições de vida já difíceis e angustiantes em Gaza, um território que tem estado sob ocupação prolongada. Estas condições fazem parte de um conflito mais vasto e contínuo, profundamente enraizado em injustiças históricas e políticas, que contribui para um sofrimento humano e dificuldades significativas.

(INT) Os habitantes de Gaza estão de luto por uma grande perda, uma vez que milhares de pessoas se reuniram para se despedir das vítimas da explosão que ocorreu na zona de Malka, a leste da cidade de Gaza. O Ministério da Saúde emitiu um comunicado confirmando o trágico incidente e comunicando a morte de cinco pessoas e o ferimento de outras 25, algumas das quais se encontram em estado crítico. A explosão foi causada por um engenho suspeito que explodiu no campo de Malka, a leste de Gaza. As vítimas cujos nomes foram divulgados pelo Ministério são: Baraa Al-Zard, Muhammad Qaddum e Ali Ayyad. Enquanto os seus nomes ecoavam nas ruas de Gaza, a sua morte súbita deixou uma marca profunda nos corações dos habitantes de Gaza, que se reuniram para oferecer condolências e apoio às famílias enlutadas. Credit: Hashem Zimmo/Thenews2 (Foto: Hashem Zimmo/Thenews2/Deposit Photos)

A saúde mental na Palestina ocupada (Cisjordânia e Gaza) tem sido considerada uma das piores do mundo. De acordo com a Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina no Médio Oriente (UNRWA), em 2022, 26,4% da população necessitava de serviços de saúde mental, o valor mais elevado entre todas as áreas de operação da UNRWA.

No entanto, “a escassez de dados sobre as necessidades de saúde mental da população de Gaza é uma barreira ao desenvolvimento de intervenções eficazes para melhorar o sofrimento psicológico”, observam o psicólogo Marwan Diab e colegas. A sua investigação qualitativa, que tem como objetivo criar uma estrutura para lidar com o trauma coletivo utilizando as perspetivas diretas dos prestadores de cuidados de saúde mental em Gaza, parece ser a primeira do gênero.

Através de uma análise temática das transcrições das entrevistas, o recente estudo publicado na revista Transcultural Psychiatry estabelece correlações entre a crise de saúde mental em Gaza e as condições sociais e políticas de repressão sistêmica, aprisionamento físico, dificuldades econômicas e ciclos de violência e deslocamento que os palestinianos vivem sob a ocupação militar israelita.

Marwan Diab e colegas realizaram entrevistas com 30 profissionais de saúde mental de várias disciplinas, incluindo psicólogos, assistentes sociais, enfermeiros psiquiátricos e psiquiatras que prestam serviços às comunidades de Gaza. Foi pedido aos participantes que falassem sobre os problemas de saúde mental, diagnósticos e condições psicossociais mais frequentes que observaram nos seus clientes. Utilizando um modelo de sistemas ecológicos, que considera o papel do microssistema, do mesossistema e do macrossistema no funcionamento individual, conseguiram conceitualizar intervenções de saúde mental que seriam apropriadas para problemas de saúde mental a diferentes níveis, do individual ao coletivo.

“Os participantes indicaram que as dimensões sociais e políticas da saúde mental e as consequências econômicas, educacionais e relacionadas com a saúde do bloqueio em curso de Gaza eram os principais determinantes da carga psicológica entre os seus clientes”, escrevem os investigadores.

A análise temática das transcrições identificou um tema mais abrangente, “o impacto do bloqueio na saúde mental e na qualidade de vida”, contendo quatro temas de segunda ordem que incluíam “preocupações com problemas sociais”, “preocupações gerais com a qualidade de vida”, “preocupações com a saúde mental da comunidade” e “preocupações relacionadas com a saúde mental das crianças”.

Algumas das palavras árabes recorrentes que emergiram da análise foram Makhnogeen (sentir-se sufocado), Masjoneen (sentir-se preso) e Maazoleen (estar segregado), que foram utilizadas para refletir o estado psicológico e emocional das pessoas que vivem em condições de isolamento rigoroso. Os autores explicam que estas expressões comunicam a natureza coletiva do seu sofrimento.

Um psiquiatra da Faixa Média de Gaza falou sobre o fato dos clientes terem uma sensação generalizada de estarem coagidos e controlados: “As pessoas não podem fugir para procurar oportunidades. É como uma grande prisão. Não podem entrar nem sair”. Outros profissionais de saúde mental indicaram que os seus pacientes têm uma sensação de perda em relação ao seu futuro, de desespero, bem como de medo e ansiedade constantes.

Os participantes explicam o impacto do estado de sítio nas suas rotinas diárias:

“O estado de sítio afeta a situação em Gaza de forma muito dura, uma vez que afeta vários níveis: saúde, educação, alimentação e eletricidade”. De fato, nos últimos 12 anos, a eletricidade só estava disponível entre 4 a 8 horas por dia”.

“A insegurança alimentar conduz à subnutrição e a dietas pouco saudáveis.”

“As estações de tratamento de esgotos são frequentemente fechadas devido ao fornecimento limitado de eletricidade e, consequentemente, a contaminação da orla marítima com esgotos tornou-se um grande perigo para a saúde pública.”

Uma limitação significativa deste estudo é o fato de estas entrevistas terem sido realizadas pouco antes da rápida mudança das condições atuais em Gaza. A recente e contínua ofensiva militar israelita e o bloqueio de recursos agravaram fortememnte as condições, levando a um enorme número de mortes de civis (1 em cada 100 habitantes da região), à fome generalizada e à deslocação interna quase total.

No entanto, as conclusões dos autores elucidam como as terríveis condições atuais podem, até certo ponto, ser vistas como uma exacerbação dos desafios sociais e políticos crônicos que os palestinianos que vivem num espaço sitiado enfrentam há muito tempo.

Os autores argumentam que, uma vez que os problemas de saúde mental dos palestinianos em Gaza parece estar principalmente enraizada nas condições atuais de grave falta de água potável, acesso limitado à eletricidade, serviços de saúde e de educação deficientes e liberdade de circulação e de viagem restrita, estes fatores estruturais teriam de ser abordados para que se verificassem melhorias na saúde mental coletiva.

Sentimentos semelhantes foram partilhados por acadêmicos palestinianos, como Rita Giacaman, que advertiu contra “a redução das experiências palestinianas de violações e injustiças à prevalência de sintomas e ao status de transtorno mental, o que tem o efeito de minar ainda mais o apelo palestiniano à justiça, ” e Lena Meari, que explica como o enfoque no trauma como uma experiência individual através de uma “adoção acrítica do conceito e da linguagem do trauma para representar as experiências palestinianas de violência contém o perigo de despolitizar e descontextualizar questões de justiça social, ocupação e desapropriação. “

Diab e os seus colegas afirmam que as suas conclusões demonstram a importância de adotar uma abordagem da saúde mental que inclua a compreensão dos indicadores psicológicos num quadro mais amplo, informado pelos direitos humanos e pela justiça social.

Samah Jabr (psiquiatra palestiniano e chefe da Unidade de Saúde Mental do Ministério da Saúde da Palestina) e Maria Helbich (psicoterapeuta) já tinham defendido este tipo de enquadramento, argumentando que “há uma tendência para ignorar a realidade político-social das pessoas com quem estamos trabalhando, aderindo ao conceito de neutralidade. Para compreender verdadeiramente o sofrimento social nos territórios palestinos ocupados, esse sofrimento tem de ser relacionado com a prevalência de violações dos direitos humanos”.

Jabr e Helbich afirmam que as normas éticas da nossa profissão exigem uma compreensão mais sólida das implicações políticas e sociais do trauma e um papel mais ativo no que diz respeito às injustiças sociais e às violações dos direitos humanos. Um artigo anterior publicado no The New England Journal of Medicine salientou a importância do papel dos profissionais de saúde enquanto defensores da justiça social e da mudança de políticas para combater os danos estruturais do racismo sistêmico, do colonialismo e de outras estruturas de marginalização e desigualdade.

Os comentários recentes de Jabr na revista Lancet Psychiatry sugerem como este quadro pode orientar a ação e a defesa de políticas para os problemas de raiz que conduzem ao sofrimento no contexto atual, salientando que “a necessidade imediata agora [em Gaza] não é a saúde mental, mas um cessar-fogo. Em comparação com o fim do ataque imediato, a satisfação das necessidades de saúde mental – por muito importantes que sejam – não pode ter a máxima prioridade”.

Diab e os colegas partem ainda das suas conclusões para sugerir que “os prestadores de cuidados de saúde não devem trabalhar apenas em termos de estruturas centradas no trauma e orientadas para o aconselhamento, mas também ao nível do apoio à população afetada e da mobilização dos seus recursos pessoais e coletivos de resiliência e resistência”. Lena Meari sugeriu, de forma semelhante, que os profissionais de saúde mental devem reconhecer e afirmar a luta coletiva dos palestinianos sob ocupação e os seus esforços em prol da justiça, uma vez que estes servem de recursos para a coesão social e a preservação da saúde mental.

Diab e os colegas encorajam a investigação futura a continuar a destacar a experiência vivida pelos palestinianos sob ocupação, uma vez que estas perspetivas serão cruciais para informar a resposta internacional à crise de saúde mental na Palestina ocupada.

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Diab, M., Veronese, G., Abu Jamei, Y., Hamam, R., Saleh, S., Zeyada, H., & Kagee, A. (2023). Preocupações psicossociais num contexto de opressão política prolongada: Gaza mental health providers’ perceptions. Psiquiatria Transcultural, 60(3), 577-590. (Link)