O artigo argentino Medicalización, salud mental y género: perspectivas sobre el uso de psicofármacos por mujeres (Medicalização, saúde mental e gênero: perspectivas sobre o uso de psicofármacos por mulheres) analisa o uso de psicofármacos em mulheres na Argentina a partir da investigação da literatura sobre a temática durante o período de 2020-2021.
A partir da Lei Nacional de Saúde Mental 26.657, a Argentina passa de um modelo de atenção hospitalocêntrico a um modelo de atenção comunitária, passando a buscar propostas e dispositivos extramuros para substituir o modelo manicomial-asilar. O uso de psicofármacos nesse contexto acaba emergindo como uma nova forma de controle social em substituição do manicômio.
A Argentina é um dos países que registra maior consumo de psicofármacos no mundo (Observatorio de Políticas Públicas en Adicciones, 2010). Um estudo aponta que cerca de 15 % da população entre 12 e 65 anos já consumiram alguma vez na vida tranquilizantes ou ansiolíticos, e o consumo aumenta gradualmente com o avanço da idade. Já 1,3% da população já consumiu estimulantes ou antidepressivos alguma vez na vida. Até 35 anos o consumo é maior entre homens, a partir de 35 anos torna-se maior entre as mulheres. Enquanto metade das prescrições de ansiolíticos e tranquilizantes foi feita por clínicos gerais, os antidepressivos e estimulantes são mais prescritos pelos psiquiatras.
Estatísticas mostram que o gênero é um dos determinantes em saúde mental:
“Entre os 35 e os 49 anos, 19,3% das mulheres consumiu tranquilizantes ou ansiolíticos alguma vez na vida, e entre os 50 e os 65 a prevalência foi de 35% (Sedronar, 2017). Investigações realizadas em outros países, observam o mesmo fenômeno: as mulheres têm maior probabilidade de receberem prescrição de psicofármacos (Markez et al.,2004), com uma tendência à feminização do consumo de tranquilizantes (Angulo et al., 2018).”
Alguns estudos avaliaram o impacto da desigualdade de gênero na saúde das mulheres, na construção do discurso médico e na organização dos sistemas de saúde. Os resultados mostram que o alto índice de medicalização das mulheres com psicofármacos e a ausência de uma política de saúde mental preocupada com as questões de gênero, reforçam ainda mais as desigualdades. Mulheres são duas vezes mais diagnosticadas com depressão em relação aos homens. Na Espanha, constatou-se que as mulheres eram as que mais receberam prescrição de psicofármacos na Atenção Primária.
Durante a pandemia de Covid-19 também foi verificado o aumento do uso de psicofármacos por mulheres, principalmente benzodiazepínicos, devido a sobrecarga de trabalho.
“As desigualdades de gênero se refletiram no uso dos psicofármacos desde o começo da emergência sanitária. A distribuição das tarefas de cuidado e das tarefas domésticas impactou fortemente nas mulheres adultas. O informe de Sedronar (2021) expõe que, para as mulheres, “o fato de haver iniciado ou retomado o consumo de psicofármacos apareceu relacionado às situações de estresse ou ansiedade ligadas ao excesso de tarefas cotidianas, a partir da incerteza que gerou o prolongamento no tempo do ASPO ou as mudanças experimentadas no sono” (Sedronar, 2021, p. 39).
No Brasil, não é diferente. O artigo cita alguns estudos que relatam que as mulheres são as maiores consumidoras de remédios psiquiátricos nos serviços de saúde, de maneira especial, as mulheres idosas. Os autores apontam a descriminção e a estigmatização da velhice feminina.
No campo da saúde mental as desigualdades de gênero aparecem, por um lado determinando a prevalência e a distribuição dos padecimentos psíquicos. Mas também como um determinante na atenção à saúde mental.
O processo de medicalização promove práticas altamente tecnocientíficas. Tais tecnologias não focam apenas em controlar e regular o que os corpos podem fazer, mas também a transformar o próprio corpo. A literatura vem chamando de “identidades tecnocientíficas” as identidades construídas através da aplicação da ciência e das tecnologias nos corpos.
O artigo descreve que estudos que analisaram o discurso de mulheres consumidoras de psicofármacos estabelecem certas particularidades no consumo segundo a idade: mulheres mais novas articulam seu discurso em torno da ansiedade, as mulheres de meia idade vinculam ao estresse e as mulheres mais velhas à depressão.
“Esta investigação encontrou como um aspecto recorrente a crença de que há uma subjetividade feminina patológica. Além disso, constataram no discurso de alguns profissionais, uma minimização da importância direcionada aos mal estares das mulheres e uma maximização da mesma afecção quando se apresenta em homens.”
Por fim, o artigo destaca que aprofundar o uso de psicofármacos por mulheres de forma descritiva e analítica exige acrescentar os contextos em que se vivenciam esses tratamentos psiquiátricos.
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