Implementação do Diálogo Aberto para psicose em Atlanta mostra-se promissora

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Estudo revela que a intervenção de suporte inspirada no Diálogo Aberto reduz os sintomas e melhora o funcionamento.¹

Uma nova pesquisa descobriu que a abordagem do Diálogo Aberto pode ser implementada com sucesso em um contexto de saúde nos EUA, especificamente em um hospital público que atende uma população com instabilidade financeira e dificuldade de acesso aos serviços necessários.

O estudo, que se concentrou em indivíduos de 18 a 35 anos com sintomas recentes de psicose, investigou uma intervenção de apoio inspirada no Diálogo Aberto. A intervenção foi considerada viável, aceitável e associada à redução dos sintomas e melhora do funcionamento. O estudo também destacou a necessidade de adaptações específicas ao contexto para uma implementação bem-sucedida.

A abordagem do Diálogo Aberto, desenvolvida na Finlândia, é uma alternativa ao atendimento psiquiátrico tradicional que prioriza a recuperação pessoal, a comunicação e o engajamento no serviço. Envolve tratar os indivíduos na presença de sua rede de apoio, incluindo a família, quando apropriado, e garantir a continuidade dos cuidados em todos os ambientes de tratamento. Uma característica fundamental dessa abordagem são as “reuniões de rede”, que envolvem uma reunião colaborativa entre o indivíduo, membros de seu sistema de apoio e dois profissionais de saúde para abordar o sofrimento psiquiátrico.

O psiquiatra e pesquisador Robert Cotes, da Escola de Medicina da Universidade Emory, liderou o estudo. Cotes e seus coautores explicam:

“Durante as reuniões de rede, os clínicos utilizam o processo de reflexão, onde têm uma conversa breve e honesta entre si sobre o que estão observando ou sentindo com a rede presente. A abordagem enfatiza as histórias sobre os sintomas, é direcionada pelos valores e preferências da pessoa e é considerada uma abordagem alinhada aos direitos humanos”.

 

Os benefícios de longo prazo do Diálogo Aberto na Finlândia foram demonstrados por pesquisas anteriores. Por exemplo, indivíduos que participaram do Diálogo Aberto demonstraram altas taxas de remissão de sintomas e baixas taxas de uso de medicamentos antipsicóticos e incapacidade em cinco anos, com resultados positivos mantidos em 19 anos.

A intervenção também foi adotada por espaços de prestação de serviços nos Estados Unidos com resultados positivos preliminares relacionados à viabilidade e experiência do paciente, tanto em organizações comunitárias de saúde mental (por exemplo, Advocates em Framingham, MA) quanto em ambientes de internação hospitalar (por exemplo, Hospital McLean em Boston, MA). Em conjunto com o apoio de colegas, o modelo do Diálogo Aberto já recebeu financiamento federal para promover uma implementação difundida nos serviços de crise de Nova York (Parachute NYC).

Dr. Cotes e os pesquisadores enfatizam como a implementação do Diálogo Aberto requer reestruturação organizacional, particularmente no contexto de serviços de saúde pagos nos Estados Unidos. Além disso, dadas as restrições de prestação de serviços, os pesquisadores destacam a necessidade de mais pesquisas que caracterizem as configurações da prestação do Diálogo Aberto:

“…as descrições dos contextos e práticas de implementação foram identificadas como uma lacuna na literatura do Diálogo Aberto e são valiosas para informar os sistemas de saúde ou grupos de profissionais que implementam o modelo.”

Para preencher essa lacuna, os autores começaram a descrever o modelo que usaram para implementar uma abordagem inspirada no Diálogo Aberto para o tratamento precoce da psicose no Grady Health System, um hospital público urbano em Atlanta, Geórgia. Eles também procuraram avaliar seus resultados relacionados à viabilidade, aceitabilidade, praticidade, adaptabilidade e eficácia limitada.

O modelo de mudança organizacional utilizado pelos pesquisadores foi denominado Addressing Problems Through Organizational Change – APTOC (Abordando problemas por meio de mudanças organizacionais em tradução livre), que inclui três etapas: preparação, implementação e sustentabilidade. Os pesquisadores descrevem o processo de construção de relação necessária para se preparar para a implementação do Diálogo Aberto:

“… primeiro envolvemos os líderes do sistema, pessoas que estão no centro de importância, famílias e funcionários para esclarecer o “porquê” e “por que agora”. Em seguida, criamos uma equipe clínica central, identificamos os defensores do projeto, contratamos especialistas em Diálogo Aberto para a assistência técnica, preparamos a organização para a mudança e criamos um cronograma do projeto. Identificamos as barreiras/facilitadores atuais e desenvolvemos um plano de mudança com metas individuais, clínicas e da iniciativa.”

Depois de desenvolver um plano de mudança, os consultores especializados do Diálogo Aberto realizaram visitas e treinamentos no local. O treinamento consistia em três segmentos de múltiplos dias que incluíam componentes didáticos e atividades de aprendizado em pequenos grupos.

Após o treinamento, os consultores realizaram teleconferências com os profissionais participantes duas vezes por mês, durante as quais as gravações de áudio das reuniões de rede foram revisadas para verificar a fidelidade do trabalho. A intervenção foi realizada por meio de reuniões regulares de rede em que participantes, suportes sociais e profissionais se engajavam em escuta reflexiva e tomada de decisão compartilhada sobre o cuidado. Reuniões de rede adicionais também ocorreriam conforme necessário em resposta a crises.

A mesma equipe de atendimento realizaria reuniões de rede em contextos de tratamento hospitalar e ambulatorial e incluiria membros adicionais da equipe de atendimento (por exemplo, gestores de caso), conforme necessário. Os autores descrevem como a intervenção funcionou como um “sistema dentro de um sistema” adjuvante aos serviços tradicionais.

Os pesquisadores relatam que aproximadamente 100 clientes (cadastrados em serviços de ambientes hospitalares e ambulatoriais) participaram de reuniões de rede como parte da intervenção do Diálogo Aberto entre janeiro de 2017 e fevereiro de 2019. Dessa amostra, um subgrupo de 25 indivíduos consentiu em participar de avaliações de pesquisa em 3, 6 e 12 meses.

Desses, apenas 18 avaliações foram totalmente concluídas. Cinco participantes também fizeram uma entrevista qualitativa aos 12 meses.

Os participantes eram indivíduos com idades entre 18 e 35 anos que experimentaram sintomas de psicose no mês anterior à inscrição na intervenção e puderam identificar pelo menos uma pessoa de apoio em sua vida para participar das reuniões de rede. A maioria da amostra (N= 15; 83%) se identificou como afro-americana/negra, duas se identificaram como hispânicas e uma como caucasiana/branca.

Os membros da equipe da rede profissional (N = 14) relataram as seguintes identidades raciais/étnicas: metade identificada como branca/caucasiana (N = 7; 50%), quatro como afro-americanas/negras e duas como hispânicas, enquanto a identidade racial de três membros da equipe não estavam disponíveis.

Os resultados sugerem que a implementação da intervenção inspirada no Diálogo Aberto, apoiada por assistência técnica de especialistas, foi viável e realizada com alta fidelidade. Além disso, os pesquisadores observaram uma mudança nas políticas organizacionais que permitiram a realização bem-sucedida desse novo modelo:

“Por exemplo, os indivíduos podem entrar no sistema de atendimento por meio de um caminho separado. Em vez de entrar sem hora marcada e receber uma consulta tradicional de admissão centrada na biomedicina, os indivíduos poderiam começar sua interação com o sistema no contexto de uma reunião de rede, então os clínicos poderiam voltar e recriar as informações necessárias para a consulta inicial de admissão ao longo do tempo.  A equipe clínica envolveu famílias, teve vários profissionais de saúde em reuniões de rede e forneceu continuidade em todos os níveis de atendimento.”

Os resultados também destacam as principais adaptações de intervenção que foram necessárias devido ao contexto do tratamento. Por exemplo, devido à cobertura limitada da equipe, as reuniões de rede ocorreram apenas em clínicas, e não na comunidade ou por meio de visitas domiciliares. Além disso, as reuniões de rede eram agendadas apenas durante a semana e ocorriam até 3 vezes por semana, em vez de diariamente. Por fim, uma breve sessão introdutória foi adicionada para explicar a abordagem do Diálogo Aberto aos participantes, dada a diferença do modelo em relação aos serviços tradicionais.

Os resultados das entrevistas qualitativas ilustram que o modelo foi bem recebido pelos participantes, que descreveram uma apreciação pela transparência e flexibilidade do modelo e compartilharam como as reuniões de rede os apoiaram no desenvolvimento de uma conceituação mais pessoal de suas próprias dificuldades (em contraste com uma conceituação de diagnóstico biomédico).

Além disso, três dos cinco entrevistados descreveram a transposição das habilidades de comunicação praticadas em reuniões de rede para seus relacionamentos cotidianos e contextos familiares. Curiosamente, todos os cinco entrevistados relataram que as reuniões de rede poderiam ocorrer com menos frequência, como mensalmente em vez de semanalmente.

A gravidade dos sintomas psiquiátricos (conforme medido pela Escala Breve de Avaliação Psiquiátrica) e o funcionamento global (medido por meio do Esquema de Avaliação de Deficiência da Organização Mundial da Saúde 2.0) diminuíram desde o início até a marca dos 6 meses e dos 12 meses, sugerindo um declínio na gravidade dos sintomas e um aumento no funcionamento.

Os achados do presente estudo devem ser entendidos no contexto das suas principais limitações. Primeiro, o estudo de viabilidade utilizou um estudo de coorte sem grupo de comparação. Além disso, dos 100 indivíduos que passaram pela intervenção do Diálogo Aberto, apenas 18 finalmente participaram de avaliações de pesquisa quantitativa e, desses, apenas cinco completaram as medidas em todos os três momentos. Além disso, apenas cinco concordaram com a entrevista qualitativa.

Os autores não coletaram sistematicamente dados sobre os motivos da falta de participação. Ainda assim, essas baixas taxas de conclusão dos estudos colocam em questão a potencial praticidade da pesquisa nesse contexto. Além disso, os resultados relatados podem estar sujeitos ao viés de auto-seleção do participante. Ademais, as descobertas de viabilidade do presente estudo podem não ser generalizáveis, uma vez que alguns dos principais esforços de implementação (por exemplo, pagamento de médicos) foram financiados, o que será limitado à duração da pesquisa.

Os autores apontam que, dada a homogeneidade racial e o cenário rural na Finlândia, onde a abordagem do Diálogo Aberto foi desenvolvida pela primeira vez, é essencial identificar as adaptações que podem ser necessárias para a implementação bem-sucedida do Diálogo Aberto em contextos urbanos mais diversos. O presente estudo é o primeiro a avaliar a implementação de uma intervenção inspirada no Diálogo Aberto com uma população majoritariamente negra/afro-americana em uma grande cidade nos Estados Unidos.

Embora os autores descrevam evidências anedóticas para apoiar a ideia de que o modelo não hierárquico de reuniões de rede foi útil para promover um espaço seguro para os participantes discutirem experiências de discriminação e racismo, a pesquisa não capturou isso sistematicamente como resultado. Os autores destacam a necessidade de pesquisas futuras que capturem explicitamente as necessidades e perspectivas de diversos participantes do Diálogo Aberto para informar adaptações culturalmente responsivas:

“As reuniões de rede podem ter oferecido um espaço seguro o suficiente para que os participantes compartilhassem suas experiências com racismo e maus-tratos, sejam eles encontrados dentro ou fora do contexto da saúde. A escuta contínua, a introspecção e a pesquisa futura são necessárias em nosso ambiente para garantir que o Diálogo Aberto esteja culturalmente sintonizado e ativamente aborde as disparidades raciais/étnicas que existem para os jovens que experienciam a psicose”.

O presente estudo contribui para um crescente corpo de pesquisa demonstrando a viabilidade e aceitabilidade da implementação do tratamento inspirado no Diálogo Aberto no contexto dos EUA. A descrição detalhada do autor sobre seu modelo de implementação, processo e lições aprendidas pode servir como um modelo para futuros esforços de disseminação.

¹Nota da Tradução: Funcionamento nesse contexto diz respeito ao conceito usado para abordar a habilidade, física e/ou mental, de performar atividades básicas diárias


Tradução de Leticia Paladino: Graduada em Psicologia pela UERJ, doutoranda em Saúde Pública pela ENSP/Fiocruz, mestre em Saúde Pública pela ENSP/Fiocruz e especialista em Saúde Mental e Atenção Psicossocial pela ENSP/Fiocruz.  Pesquisadora e Colaboradora do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial (LAPS/ENSP/Fiocruz)


 

Cotes, R. O., Palanci, J. M., Broussard, B., Johnson, S., Grullón, M. A., Norquist, G. S., … & Ziedonis, D. (2023). Feasibility of an Open Dialogue-Inspired Approach for Young Adults with Psychosis in a Public Hospital System. Community Mental Health Journal, 1-8. (Link)