O Fenômeno da Medicalização no Ensino Superior Brasileiro

0
245

O artigo Patologização e Medicalização da Educação Superior tem como objetivo compreender de que maneiras os discursos e práticas medicalizantes se materializam no cotidiano universitário e se desdobram nas políticas universitárias. A pesquisa foi realizada através da observação participante, pesquisa documental e encontros individuais e de grupo.

Apesar da medicalização ter se tornado um tema central na discussão no campo da educação, ainda se concentra muito na educação básica. No entanto, não é um fenômeno restrito à essa etapa, deixando claro a necessidade de pesquisas sobre a medicalização no contexto da educação superior, ainda pouco estudada.

O fenômeno de medicalização pode ser definido como:

“Conrad (2007) define esse conceito como o processo pelo qual problemas não médicos tornam-se definidos e tratados como problemas médicos, geralmente em termos de doenças e transtornos. O autor enfatiza uma ampliação desse processo a partir dos anos 2000 representada pela criação de novos diagnósticos, como Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH), Anorexia, Síndrome do Pânico, Tensão Pré-menstrual etc. Fenômenos comuns da vida humana, como nascimento, menstruação, obesidade, ansiedade e envelhecimento foram medicalizados.”

No Brasil, a medicalização vem gerando a camada “era dos transtornos” que se torna visível no aumento vertiginoso do uso de psicotrópicos, criação de projetos de leis medicalizantes e ampliação progressiva do número de pessoas diagnosticadas com supostos transtornos.

Da mesma maneira, alguns autores se referem ao fenômeno da patologização, similar ao fenômeno da medicalização, porém com o foco maior no status de doença em que problemas da vida cotidiana estão ganhando atualmente. Dessa forma, acabam individualizando problemas sociais e relacionais, negligenciando os aspectos sociais, econômicos, históricos e políticos do desenvolvimento humano, biologizando os conflitos sociais.

A escola, por sua vez, é um espaço em que desde o início da vida as pessoas são avaliadas de maneira individual por seu desempenho. A partir de uma dificuldade no desenvolvimento escolar, como ler e escrever, o aluno é encaminhado para uma avaliação médica, a fim de descobrir uma incapacidade. Uma vez com o diagnóstico em mãos, esse aluno será tratado de maneira diferente, gerando uma dupla exclusão: a diferença é patologizada e o aluno é descriminado de acordo com ela.

As autoras decidiram por utilizar de maneira conjunta os termos “patologização e medicalização da educação” para destacar dois lados desse complexo reducionismo. Nas palavras das autoras:

“Concebemos que a primeira é uma expressão que amplia a compreensão, por não remeter a uma área específica do conhecimento, e marca o processo de transformação de fenômenos de escolarização em doenças de indivíduos. Já a segunda nos insere tanto numa discussão histórica ampla quanto numa militância política atual e evidencia como o aparato técnico-científico singular da medicina tem, ao longo da história, ainda que com diferentes intensidades em cada momento, avançado sobre o contexto educativo.”

As autoras trazem como exemplo dois diagnósticos controversos, o diagnóstico de TDAH e de dislexia. O primeiro retrata o não aprender e o não se comportar como sintomas de uma doença, ao invés da escola construir conjuntamente com o aluno a prática pedagógica. Enquanto que a dislexia é um diagnóstico que tem sua base em conceitos, advindos de pesquisas com metodologias questionáveis, e algumas apresentarem problemas éticos significativos.

Foi realizada uma pesquisa qualitativa participativa no Programa de Apoio às Pessoas com Necessidades Especiais (PPNE) da Universidade de Brasília (UnB) por meio de observação participante, pesquisa documental e encontros individuais e em grupo com estudantes de graduação, professores e servidores da universidade no período de março de 2011 a junho de 2013. Foram sujeitos desta pesquisa 84 estudantes de graduação dos quatro campus, quatro estudantes de pós-graduação, seis servidores, 28 professores e nove coordenadores de curso que participaram dos encontros do PPNE analisados na pesquisa.

Na pesquisa documental foi encontrado:

Resolução CEPE n. 48/2003. A Resolução CEPE n. 48/2003, que “dispõe sobre os direitos acadêmicos de alunos regulares Portadores de Necessidades Especiais” (UnB, 2003), representou a formalização do Programa na Universidade. De acordo com esse documento, os estudantes deveriam ter sua “deficiência ou incapacidade diagnosticada e caracterizada por equipe multidisciplinar de saúde, homologada pela Junta Médica da UnB e/ou parecer do Programa de Apoio ao Portador de Necessidades Especiais”, a fim de “obterem concessão de benefícios e serviços” (idem, Art. 1o).

Os autores chamam a atenção para o fato de que o serviço educacional é submetido à lógica saúde-doença, apenas a partir de um diagnóstico é que o aluno consegue se inserir no programa, o que eles caracterizam como processo patologizante, visto que a diferença é vista como doença. Vygotski mostrou quão insuficiente e limitante é essa compreensão, para ele a deficiência ao produzir desafios ao indivíduo, proporciona caminhos alternativos ao seu desenvolvimento que deveriam ser potencializados pelo sistema educacional.

 “A intenção aqui não é ignorar ou idealizar a diferença, mas sim tomá-la pelo que
é e acolhê-la ao processo educativo, não como estorvo, mas em seu potencial. A compreensão patologizante da diferença a mantém no âmbito da ação terapêutica, limitando o alcance da atividade pedagógica e eximindo a instituição educacional de sua responsabilidade sobre todos os estudantes.”

O PPNE geralmente atendiam os estudantes a partir de uma acolhida inicial e de encontros realizados a partir da demanda dos estudantes em relação às dificuldades que encontravam na vivência acadêmica. Já os encontros individuais com professores e servidores aconteciam para esclarecer sobre os direitos acadêmicos dos estudantes e informações sobre suas necessidades e adaptações pedagógicas específicas.

Os encontros em grupo eram reuniões feitas preferencialmente com a presença dos estudantes e de seus professores coordenador de curso, a fim de discutir a situação acadêmica dos alunos e disseminar as sugestões usuais do programa quanto às adequações pedagógicas e direitos dos estudantes cadastrados.

Durante os grupos ficou nítido que muitas vezes os professores viam certas adaptações em sala de aula, para contemplar alunos que estavam cadastrados no programa, como vantagens oferecidas aos estudantes com diagnósticos, gerando preocupação acerca do favorecimento de alguns alunos em detrimento de outros, manifestando assim uma percepção meritocrática da educação. As práticas avaliativas eram as que entravam na discussão da necessidade de mudança.

“Esse cenário denuncia uma educação universitária voltada para uma abstração idealizada: o estudante “normal”. Trata as diferenças como estorvos com os quais o professor tem que lidar e que atrapalham seu fazer. É mais uma vez a expressão da compreensão da diferença como falta e uma aproximação a ela numa perspectiva corretiva, normativa e homogeneizante (Angelucci, 2014).”

Ao invés de propiciar ao estudante as condições para o seu processo de individuação como sujeito único com uma experiência específica, promove a imposição de padrões em busca de eliminar a diferença em nome de uma suposta “normalidade”. Isso tem influenciado o próprio processo de subjetivação dos estudantes quando se referiam as suas dificuldades acadêmicas a partir do sue diagnóstico: “Eu não consigo estudar porque sou TDAH”, se referindo a ser inquieto, impulsivo, descontrolado (elementos descritivos do TDAH), e
identificando essas características com anormalidade e doença.

Em algumas situações a conversa com os professores permeava a importância de saber os interesses e necessidades dos alunos para diversificar a prática pedagógica e flexibilizar as atividades avaliativas como forma de favorecer a todos os alunos. Os autores concluem que quando a lógica do ensino não se baseia em uma assimilação acrítica de conteúdo, é possível ressignificar a lógica de justiça e de igualdade de condições.

“A patologização e a medicalização da Educação Superior, além de uma violação do direito das pessoas à educação sem precisarem ser identificadas como doentes ou transgressoras, é contrária à própria função da universidade, constituída na e pela diversidade do conhecimento. Acolher as diferenças de desenvolvimento humano nessa instituição é, mais do que garantir direitos, trazer a riqueza dessa diversidade para o projeto educativo.”

Por fim, o estudo conclui que é necessário que a Universidade se volte para sí e questione suas práticas atuais de educação. Para tal, é necessário repensar a estrutura universitária, a formação docente, currículos, espaços físicos, ações culturais, relações interpessoais, metodologias de ensino, pesquisa e extensão, bem como a própria concepção de conhecimento e ciência.

O acolhimento à diferença se faz no cotidiano, pela convivência em comunidade e pela construção de relações mais democráticas com respeito à alteridade e valorização da diversidade como fundamentais à construção da qualidade na educação.

•••

J.C. Chagas & R.L.S. Pedroza. Patologização e Medicalização da Educação Superior. Psicologia: Teoria e Pesquisa, vol. 32 n. esp., pp. 1-10.

Artigo anteriorManual de Psiquiatria Crítica, Capítulo 7: Psicose (Parte Três)
Próximo artigoA psicanálise libertária de François Tosquelles
Graduada em Psicologia pela UERJ, especialista em Terapia Familiar pelo IPUB/UFRJ, com ênfase em saúde mental. Pesquisadora auxiliar do Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz Antonio Ivo de Carvalho (CEE/Fiocruz) e Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial(LAPS/ENSP/Fiocruz) Produtora e apresentadora do podcast Enloucast. Além de atuar como psicóloga clínica. Áreas de interesse: Saúde Mental, Terapia Sistêmica, Diálogo Aberto, Construcionismo Social, Medicalização e Patologização da vida