Nota do editor: Nos próximos meses, a Mad in Brasil publicará uma versão serializada do livro de Peter Gøtzsche, Manual de Psiquiatria Crítica. Neste blog, ele discute a falta de evidências de benefícios e a evidência de danos das drogas para psicose utilizadas em intervenções precoces ou no primeiro episódio psicótico. A cada quinze dias, uma nova seção do livro será publicada e todos os capítulos estão arquivados aqui.
Intervenção precoce? Sim, mas não com drogas para psicose
Um argumento defendido para o uso de drogas para psicose era que é prejudicial não intervir precocemente e, frequentemente, era utilizado o termo “duração da psicose não tratada” (DUP). Alegava-se que o DUP piorava o prognóstico para esquizofrenia e transtornos semelhantes; [16:194, 17:326, 18:79, 18:233, 19:235, 20:416] que era prejudicial para o cérebro estar em estado psicótico; [18:98, 20:416] e que, com intervenção precoce, um curso crônico poderia ser evitado para muitos pacientes; [17:326] que poderiam aprender a lidar com sua vulnerabilidade. [18:80].
Esses argumentos não estão corretos. Quando uma droga não funciona para uma doença, mas apenas acalma os pacientes, não é importante usá-la no início do curso da doença. Além disso, a pesquisa – nenhuma das quais foi referenciada – que afirma que a duração da psicose não tratada está relacionada ao prognóstico é pouco confiável. Pessoas que não são tratadas precocemente não são comparáveis àquelas tratadas precocemente e estão em uma condição pior, em média, com uma série de fatores prognósticos que indicam um desfecho a longo prazo ruim, como falta de moradia e alcoolismo.
Com métodos estatísticos, não é possível ajustar de forma confiável essas diferenças. Como já mencionado, quanto mais variáveis são incluídas em uma regressão logística, mais longe provavelmente se estará da verdade [50] (veja Capítulo 2, Parte Dois).
Um Manual didático observou que a psicose aguda pode ser precedida por estresse agudo ou trauma, e que a remissão completa geralmente será observada dentro de alguns meses, muitas vezes em algumas semanas ou até mesmo dias.[16:232] Isso torna ainda mais inaceitável que os autores, algumas páginas depois, tenham recomendado pílulas para psicose de segunda geração e até mesmo afirmado que “estabilizadores de humor” – provavelmente antiepilépticos – podem ser usados concomitantemente.
Psiquiatras também afirmaram que drogas para psicose são frequentemente um pré-requisito para a psicoterapia e que o tratamento sem drogas foi tentado para psicose aguda em alguns países, mas pode ser muito perigoso, com um risco provável de danos cerebrais e um alto risco de suicídio.[18:233]
Se os pacientes estiverem muito agitados, a sedação pode ajudar a estabelecer contato, mas benzodiazepínicos são melhores nisso do que pílulas para psicose.[165] E geralmente é mais fácil praticar a psicoterapia em um paciente que não está sedado do que em um que tem dificuldade de concentração e foco.
É ultrajante sugerir que não usar pílulas para psicose pode ser muito perigoso. É muito perigoso usá-las; elas não protegem contra danos cerebrais, mas causam danos cerebrais irreversíveis;[63,64] e não reduzem o risco de suicídio, provavelmente o aumentam devido aos efeitos de retirada, por exemplo, quando os pacientes precisam de uma pausa na medicação, o que aumenta o risco de acatisia,[134] e, assim, de suicídio e violência.[7]
Relatos de pacientes na internet mostram que pensamentos suicidas ao tomar pílulas para psicose estão fortemente associados à acatisia; 13,8% dos entrevistados que relataram acatisia também relataram pensamentos suicidas, em comparação com 1,5% daqueles que não mencionaram acatisia (P < 0,001).[160] Esse dano seria esperado estar relacionado à dose da droga anterior, o que claramente é.[170]
A acatisia recebeu pouca atenção por muitos anos, e os médicos geralmente interpretavam o comportamento inquieto como um sinal de que os pacientes precisavam de uma dose maior da droga, o que agrava a situação. Quando os psiquiatras finalmente se interessaram por isso, os resultados foram chocantes. Em um estudo, 79% dos pacientes diagnosticados com transtornos que tentaram se matar sofriam de acatisia.[1:187] Um estudo de 1990 relatou que metade de todas as brigas em um hospital psiquiátrico estavam relacionadas à acatisia,[171,172] e outro estudo constatou que doses moderadas a altas de haloperidol tornavam metade dos pacientes marcadamente mais agressivos, às vezes ao ponto de quererem matar seus “torturadores”, os psiquiatras. Drogas psicotrópicas podem fazer com que as pessoas percam parte de sua consciência, perdendo o controle sobre seu comportamento.[21] Essas pessoas estão em risco muito maior de cometer atos criminosos e violentos.
Um manual didático afirmou que a clozapina parece ser capaz de reduzir o comportamento suicida em pacientes com esquizofrenia e mencionou que dois estudos de pequena escala sugerem que as pílulas clássicas para psicose podem ser preventivas em diferentes diagnósticos.[17:811] Esse pensamento otimista foi manipulado de maneira astuta usando a expressão “parece”; referindo-se a dois estudos pequenos em vez de nos dizer o que todos os estudos mostraram; e omitindo os dois estudos na lista de referências após o capítulo, deixando o leitor totalmente no escuro. Isso foi a antítese da medicina baseada em evidências.
A intervenção precoce na esquizofrenia é benéfica, desde que não seja com pílulas de psicose, mas com intervenções psicossociais.[7:170] Em 1969, a OMS lançou um estudo que mostrou que os pacientes se saíam muito melhor em países pobres – Índia, Nigéria e Colômbia – do que nos Estados Unidos e outros quatro países desenvolvidos.[1:226] Em cinco anos, cerca de 64% dos pacientes nos países pobres estavam assintomáticos e em boa funcionalidade, em comparação com apenas 18% nos países ricos.
Os psiquiatras ocidentais ignoraram os resultados com o argumento de que os pacientes em países pobres poderiam ter uma doença mais branda. Portanto, a OMS fez outro estudo, concentrando-se na esquizofrenia de primeiro episódio diagnosticada com os mesmos critérios em 10 países.[1:228] Os resultados foram bastante semelhantes: nos países pobres, cerca de dois terços estavam bem depois de dois anos, em comparação com apenas um terço nos países ricos.
Os investigadores da OMS tentaram explicar essa grande diferença com vários fatores psicossociais e culturais, mas não tiveram sucesso. A explicação mais óbvia, o uso de drogas, era tão ameaçadora para a medicina ocidental que ficou inexplorada. As pessoas em países pobres não podiam pagar pílulas para psicose, então apenas 16% dos pacientes as usavam regularmente, em comparação com 61% nos países ricos.
Um estudo mais recente realizado pela Eli Lilly não encontrou diferenças entre países pobres e ricos, mas neste estudo todos os pacientes foram tratados com drogas, metade deles com a droga da Eli Lilly, olanzapina, e a outra metade com outras pílulas para psicose.[173]
Um estudo de 20 anos realizado em Chicago, liderado por Martin Harrow, mostrou que, entre 70 pacientes com esquizofrenia, aqueles que não estavam fazendo uso de drogas para psicose após os dois primeiros anos tiveram desfechos muito melhores do que aqueles que estavam fazendo uso.[174] Isso não foi influenciado por um fator de confusão. A razão de chances ajustada de não estar tomando as drogas foi de 5,99 (3,59 a 9,99) para recuperação e 0,13 (0,07 a 0,26) para reospitalização.
Harrow era um proeminente pesquisador de esquizofrenia no Instituto Nacional de Saúde Mental, e outros pesquisadores chegaram a resultados semelhantes, mas todos eles tiveram reduções de financiamento.[1,5]
Além de evitar os efeitos prejudiciais das pílulas para psicose, há outras razões pelas quais as pessoas com esquizofrenia se saíram tão bem em países pobres.[175] A doença muitas vezes é vista como resultado de forças externas, como espíritos malignos e as pessoas são muito mais propensas a manter a pessoa em sofrimento na família e a mostrar bondade, o que ajuda os pacientes a se recuperarem e a participarem novamente da vida social.
Poucos psiquiatras sabem disso. Alguns têm me perguntado se seria mais humano privar as pessoas de sua liberdade amarrando-as a uma árvore do que usar drogas. Isso pode acontecer na África, mas, de maneira geral, as comunidades fizeram um trabalho muito melhor na África do que fazemos no mundo ocidental, onde institucionalizamos a privação de liberdade por meios legais e tratamento forçado e matamos centenas de milhares de pacientes com pílulas para psicose.[6:232] Este não é um sistema humano.
A famosa iniciativa da abordagem do Diálogo Aberto na Lapônia visa tratar pacientes psicóticos em suas casas.[8:91] O tratamento envolve a rede social do paciente e começa dentro de 24 horas após o contato.[176]
Uma comparação entre a Lapônia e Estocolmo ilustra a diferença entre uma abordagem empática e a imposição imediata de drogas a pacientes em primeiro episódio de psicose.[176,177] Os pacientes na Lapônia eram comparáveis aos de Estocolmo, mas em Estocolmo, 93% foram tratados com pílulas para psicose, contra apenas 33% na Lapônia, e cinco anos depois, o uso contínuo foi de 75% versus 17%. Após cinco anos, 62% em Estocolmo versus 19% na Lapônia estavam de licença por invalidez ou afastamento por doença, e o uso de leitos hospitalares também foi muito maior em Estocolmo – 110 versus apenas 31 dias, em média. Essa não foi uma comparação randomizada, mas os resultados são tão diferenciados que seria irresponsável descartá-los. Além disso, há muitos outros resultados que apoiam uma abordagem não medicamentosa para a psicose aguda.[7:330]
O modelo do Diálogo Aberto está ganhando impulso em vários países e ensaios randomizados estão em andamento. Esse modelo começou há 25 anos,[176] e foi surpreendente que os manuais didáticos não o mencionassem. A Dinamarca tem sua própria versão de intervenção precoce com princípios semelhantes, que começou aproximadamente na mesma época. Chama-se OPUS (nome que se dá na música à obra de música clássica) – porque uma orquestra consiste em muitos instrumentos diferentes, todos trabalhando juntos para tocar uma peça de música. A ideia com o OPUS é criar uma parceria entre o paciente e todos os que fazem parte do tratamento, incluindo a família e a rede social.
Os manuais didáticos reconheceram que intervenções psicossociais têm um papel no tratamento da esquizofrenia,[16:615,20:418] e houve muitos comentários sobre os efeitos positivos dessas iniciativas, como o envolvimento da família,[16:194,17:313] abordagem comunitária assertiva nos termos do paciente,[16:616,17:313] equipes multidisciplinares, terapia cognitivo-comportamental,[16:224,17:318] e treinamento neurocognitivo.[16:624]
Foi observado que o estudo OPUS na Dinamarca e o estudo AESOP na Inglaterra mostraram que mais da metade dos pacientes não apresentavam mais sintomas psicóticos após 10 anos.[16:205] Estudos mostraram uma redução nas readmissões, menos dias de hospitalização e um efeito nos sintomas psicóticos, abuso de drogas e sintomas negativos.[16:617]
Um manual afirmou, sem referências, que estudos mostraram que a terapia cognitivo-comportamental pode aliviar tanto os sintomas psicóticos quanto os sintomas negativos, e que ensaios randomizados mostraram que a intervenção familiar reduz pela metade o risco de recaída e dias de hospitalização.[17:318] Outro livro referiu-se a uma revisão sistemática,[16:620] que descobriu que intervenções psicossociais familiares reduziam pela metade a frequência de recaídas de esquizofrenia ou transtorno esquizoafetivo.[178] As internações hospitalares foram reduzidas em 32%, enquanto os dias de hospitalização estavam disponíveis apenas em dois pequenos estudos chineses.
Os autores observaram que os efeitos do tratamento podem ser superestimados devido à baixa qualidade dos ensaios, como a falta de cegamento adequado dos avaliadores. No entanto, o efeito sobre a recaída foi tão grande que dificilmente poderia ser causado apenas por viés.
Um manual observou que o emprego apoiado tornava três vezes mais provável que os pacientes encontrassem trabalho.[16:625] A referência era para uma revisão Cochrane de ensaios em doenças mentais graves, e de longe a maioria dos pacientes foi diagnosticada com esquizofrenia ou transtorno esquizoafetivo. A revisão observou que a evidência era de qualidade muito baixa.[179] Isso se deveu principalmente ao fato de que nenhum dos 14 estudos foi cegado: “Os participantes poderiam identificar a intervenção dada pelo conteúdo do programa.”
Claro que podiam. Algumas intervenções simplesmente não podem ser cegadas, mas conclusões como essas são produzidas quando os pesquisadores seguem servilmente a abordagem do livro de receitas da Cochrane, que reduz a qualidade da evidência para muitas intervenções úteis que não podem ser cegadas como um ensaio clínico de drogas.
É lamentável que as revisões Cochrane rotineiramente diminuam os resultados das intervenções psicossociais, uma vez que estas são claramente superiores às drogas. Outra questão foi que o número de dias de emprego de ampla concorrência, o resultado principal da revisão, foi relatado apenas em metade dos 14 estudos, o que é mais sério, já que todos os estudos eram sobre emprego apoiado.
Um dos manuais, que tinha apenas psiquiatras como autores, estava ainda mais focado em drogas do que as revisões Cochrane. Alegava que a terapia ambiental e técnicas psicoterapêuticas podem ser usadas quando a psicose aguda está sob controle com pílulas para psicose.[18:79] Isso está incorreto. A psicoterapia pode abolir a necessidade de pílulas para a psicose em muitos casos, como demonstrado pela experiência com o modelo Diálogo Aberto e outras abordagens, como o OPUS.
Esse manual também se contradizia. Observava que a psicoterapia é recomendada apenas na fase de estabilização,[18:99] mas na página seguinte, ao comentar sobre o OPUS, afirmava que a psicoterapia também pode ser usada desde o início. Curiosamente, ainda nesta página, o livro afirmava erroneamente que as pílulas para psicose são frequentemente um requisito para a melhoria e para possibilitar a inclusão do paciente em outras ofertas.[18:100]
O manual também afirmava que a terapia cognitivo-comportamental é a única forma de terapia para a qual há evidências de efeito na psicose.[18:102] Isso também está errado. A intervenção familiar, a psicoeducação e a atenção plena também são eficazes.[180]
Por fim, o manual observava que a psicoterapia não era recomendada para a mania aguda, mas era um suplemento bem documentado à medicação como prevenção.[18:117] Já entendemos. Dê a eles todas as drogas. Tudo o mais é suplementar, se usado. Mesmo essa recomendação era duvidosa. Uma metanálise em rede mostrou que a psicoeducação mais a terapia cognitivo-comportamental tem um grande efeito nos sintomas maníacos em comparação com o tratamento usual, tamanho do efeito -0,95 (-1,47 a -0,43).[181]
Um manual muito mais razoável, que é o que mais falou sobre o OPUS,[16] ofereceu cinco referências a revisões Cochrane em uma lista de literatura que não estava diretamente vinculada às declarações sobre seus efeitos. Eu comentei sobre duas delas logo acima.[178,179] As outras três não eram particularmente convincentes.
Uma revisão tratava do manejo intensivo de casos de pessoas em sofrimento mental grave na comunidade, incluindo 40 ensaios clínicos, mas a maioria deles tinha alto risco de relato seletivo de resultados e nenhum deles forneceu dados para recaída ou melhoria importante no estado mental.[182] Apesar disso, os autores escreveram 273 páginas para sua revisão Cochrane – o tamanho de um livro – e concluíram que a intervenção é eficaz na melhoria de muitos resultados e pode reduzir hospitalizações, aumentar a retenção nos cuidados e melhorar globalmente o funcionamento social. Adorável, mas difícil saber se isso é apenas um desejo, dado o quão fraca era a evidência.
A segunda revisão Cochrane tratava da tomada de decisão compartilhada, mas havia apenas dois estudos. Os autores escreveram 45 páginas sobre eles, mesmo que não pudessem concluir nada.[183] Mas não precisamos estudar a tomada de decisão compartilhada em ensaios randomizados. Temos a obrigação ética de respeitar os pacientes e envolvê-los em nossas decisões. Esse imperativo ético não pode ser suspenso, nem mesmo quando os pacientes estão psicóticos, de acordo com a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, que foi ratificada por praticamente todos os países, exceto os Estados Unidos.[7:333,184] Em 2014, a Convenção especificou que os Estados membros devem tomar medidas imediatas para a realização dos direitos, desenvolvendo leis e políticas para substituir regimes de tomada de decisão substitutiva por tomada de decisão apoiada, que respeita a autonomia, vontade e preferências da pessoa.[184]
A terceira revisão Cochrane tratava da intervenção precoce para a psicose.[185] Apesar de haver 18 estudos, eles eram diversos, em sua maioria pequenos, conduzidos por pesquisadores pioneiros e tinham muitas limitações metodológicas, o que geralmente tornava as metanálises inadequadas. Os autores consideraram a evidência inconclusiva, mas ainda assim escreveram 134 páginas sobre isso. É interessante que eles não tenham encontrado evidências convincentes para a intervenção precoce com drogas, já que isso foi alardeado como sendo importante em vários manuais didáticos (ver acima).
Um manual didático observou que as pílulas para psicose reduzem ou removem sintomas positivos, como alucinações, delírios, distúrbios do pensamento e catatonia.[18:86,18:234] Isso dá a impressão errônea de que as drogas são altamente eficazes e têm efeitos específicos na psicose. Elas funcionam da mesma maneira em pacientes, voluntários saudáveis e animais;[7] são tranquilizantes potentes, como eram chamadas no passado distante; e não podem remover alucinações ou delírios. Quando a clorpromazina chegou ao mercado em 1954, foi inicialmente considerada uma lobotomia química, pois produzia muitos dos mesmos efeitos da lobotomia. Também foi chamada de camisa de força química, pois mantinha os pacientes sob controle, e os psiquiatras observaram que ela não tinha propriedades antipsicóticas específicas.[1-142]
Era recomendado tratar mulheres grávidas com esquizofrenia porque a psicose não tratada pode colocar em risco a vida da mãe e da criança.[17:669] Não houve reflexão de que as pílulas aumentam ainda mais esse risco. Este manual observou que a FDA dos EUA em 2011 emitiu um aviso geral contra o uso de drogas para psicose devido a sintomas extrapiramidais e sintomas de abstinência, o que sugere que as drogas afetam o cérebro tanto da criança quanto da mãe.
Sugerir que as drogas afetam o cérebro? Sabemos há 70 anos que as drogas prejudicam as funções normais do cérebro,[1:142] e é por isso que elas são usadas. Como pessoas supostamente especializadas em psicofarmacologia – que era o título do capítulo deste manual – podem escrever tal absurdo? Bem, todos eram professores de psiquiatria, o que parece ser um salvo-conduto para escrever o que quiserem.
Nos folhetos informativos das pílulas para psicose, por exemplo, para a olanzapina,[134] a FDA adverte que as drogas devem ser usadas durante a gravidez apenas se o benefício potencial justificar o risco potencial para o feto. Este não é um conselho útil. Como um médico deve fazer tal julgamento? A FDA observa que neonatos expostos a pílulas para psicose durante o terceiro trimestre estão em risco de sintomas extrapiramidais e de abstinência após o parto. Houve relatos de agitação, hipertonia, hipotonia, tremores, sonolência, dificuldades respiratórias e distúrbios alimentares em neonatos, e em alguns casos, isso exigiu suporte da unidade de terapia intensiva e hospitalização prolongada. Mas, segundo os professores dinamarqueses de psiquiatria, é apenas uma possibilidade que as pílulas de psicose afetem o cérebro.
Um manual observou que pacientes com diagnóstico de esquizotipia, que é um conceito muito duvidoso (como explicarei no Capítulo 15),[8:145] devem ser tratados com pílulas para psicose se houver distúrbios do pensamento, ruminações ou episódios psicóticos, já que 25% desenvolvem esquizofrenia.[18:106] Não há evidências para isso, e muitas pessoas têm distúrbios de pensamento de tempos em tempos ou ruminação.
Essencialmente, isso é um apelo ao tratamento profilático de pessoas razoavelmente saudáveis com drogas tóxicas, uma ideia terrível. O teste diagnóstico para esse transtorno é inútil e falso,[8:145] e parece que a maioria dos psiquiatras testaria positivo (como explicarei no Capítulo 15). Portanto, a maioria dos psiquiatras deveria estar em tratamento profilático com pílulas para psicose, de acordo com o conselho neste manual.[18:106]
Quatro manuais afirmaram que as pílulas também funcionam para sintomas negativos.[16:206,17:653,18:81,20:416] Sintomas negativos incluem afeto embotado, alogia (pobreza de discurso), asocialidade, avolição (falta de motivação ou habilidade para realizar tarefas ou atividades que têm um objetivo final) e anedonia (capacidade diminuída de experimentar emoções agradáveis).[186] Também foi afirmado, em dois manuais, que as pílulas para psicose têm um efeito sobre os sintomas cognitivos,[17:653,20:416] mas duas páginas adiante, um deles observou que os distúrbios cognitivos são amplamente inalterados.[20:418]
Essas informações eram confusas, contraditórias e incorretas. As pílulas pioram os sintomas negativos e a cognição, o que se sabe há 70 anos,[1:142,5,7] e que foi reconhecido em um dos manuais.[16:562]
Um deles mencionou que as drogas para psicose podem inibir estímulos sensoriais e funções psicológicas, o que pode aumentar os sintomas negativos e o isolamento social.[18:235] Isso contradiz diretamente as alegações no mesmo manual, 154 páginas antes,[18:81] de que as pílulas para psicose têm um efeito sobre os sintomas negativos.
Esse manual também observou que as drogas para psicose podem levar ao abuso de substâncias para estimular o sistema de recompensa do cérebro, o que piorará os sintomas psicóticos. Mencionou que a tristeza ou depressão diretas ocorrem, mas que muitas vezes é difícil distinguir entre uma depressão induzida por drogas e a reação psicológica compreensível de ter que viver com uma doença muito grave que abalou a autoimagem.[18:235] Esta é a única vez que me deparei com um relato honesto do que as pílulas para psicose realmente fazem aos pacientes, e isso não é benéfico para eles.
Um manual afirmou que várias meta-análises mostraram que pílulas para depressão têm um efeito sobre os sintomas negativos.[18:101] Não havia referência a essa afirmação notável. Como duvidei que estivesse correta, procurei algumas meta-análises, ambas negativas. Uma delas observou que “a qualidade da informação é atualmente muito limitada para chegar a conclusões firmes”;[187] a outra que “a literatura era de qualidade ruim” e que os resultados poderiam “refletir apenas a notificação seletiva de resultados estatisticamente significativos e viés de publicação”.[188]
Este manual observou que pode ser difícil distinguir entre sintomas depressivos, sintomas negativos na psicose e danos das pílulas para psicose.[18:101] Assim, dois manuais admitiram que as pílulas para psicose pioram os sintomas negativos. No entanto, um deles aconselhou que, em caso de sintomas negativos persistentes, algum alívio pode ser obtido adicionando pílulas para depressão às pílulas para psicose.[16:577]
Este é um tema comum nos manuais didáticos. Em vez de retirar lentamente a droga que causa o problema, os psiquiatras adicionam drogas adicionais, o que é uma razão importante para a massiva supermedicação de pacientes psiquiátricos, como está bem documentado.[5,7,8,113,114] Não importa quais drogas psiquiátricas as pessoas tomem – pílulas para psicose, pílulas para depressão, lítio, estimulantes ou benzodiazepínicos – ou qual seja o seu problema, aproximadamente um terço dos pacientes tem suas prescrições renovadas a cada ano e ainda estão em tratamento com a mesma droga ou uma semelhante 10 anos depois.[113,114]
Isso conta uma história de médicos irresponsáveis que não sabem o que estão fazendo ou o que estão causando. Também confirma o que escrevi em um artigo de jornal em 2014, que nossos cidadãos estariam muito melhores se retirássemos todas as drogas psicotrópicas do mercado, porque está claro que os médicos não conseguem lidar com elas.[189]
Os psiquiatras dinamarqueses admitiram que têm um problema. Em uma pesquisa de 2007, 51% de 108 psiquiatras dinamarqueses disseram que usavam muitos medicamentos e apenas 4% que usavam pouco.[190] Mas o uso de drogas psiquiátricas continuou a aumentar marcadamente na maioria dos países, por exemplo, no Reino Unido, as prescrições de pílulas para psicose aumentaram em média 5% ao ano e as pílulas para depressão em 10%, de 1998 a 2010.[191] Não nos tornamos mais mentalmente doentes nesse grau. Isso é efeito de marketing e corrupção.[6-8]
O foco principal da psiquiatria para as próximas décadas deveria ser ajudar os pacientes a retirarem lentamente e com segurança as drogas que estão tomando, em vez de dizer a eles que precisam continuar tomando e adicionar ainda mais.
Mas isso não vai acontecer. O foco da psiquiatria é nela mesma – uma espécie de selfie eterna que ela envia para o mundo o tempo todo.
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Mad in Brasil (Texto original do site Mad in America ) hospeda blogs de um grupo diversificado de escritores. Essas postagens são projetadas para servir como um fórum público para uma discussão – em termos gerais – da psiquiatria e seus tratamentos. As opiniões expressas são próprias dos escritores.
Tradução de Leticia Paladino : Graduada em Psicologia pela UERJ, doutoranda em Saúde Pública pela ENSP/Fiocruz, mestre em Saúde Pública pela ENSP/Fiocruz e especialista em Saúde Mental e Atenção Psicossocial pela ENSP/Fiocruz. Pesquisadora e Colaboradora do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial (LAPS/ENSP/Fiocruz).