Manual de Psiquiatria Crítica, Capítulo 2: Os Distúrbios Psiquiátricos são Essencialmente Genético ou Ambiental? (Parte dois)

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Por Peter C. Gøtzsche, MD


Nota do editor: Nos próximos meses, a Mad in Brasil publicará uma versão serializada do livro de Peter Gøtzsche, Manual de Psiquiatria Crítica. Neste blog, ele discute os problemas com estudos observacionais e outras falhas em pesquisas sobre TDAH. A cada quinze dias, uma nova seção do livro será publicada e todos os capítulos estão arquivados aqui

 

Distúrbios afetivos

Para distúrbios afetivos, alguns autores expressaram menos certeza do que para esquizofrenia. Em um dos manuais didáticos de psiquiatria, os autores afirmaram que o risco de desenvolver distúrbio afetivo aumenta de 3 a 4 vezes se um dos pais estiver deprimido19:210 e o risco de desenvolver bipolaridade aumenta de 4 a 6 vezes se um parente de primeiro grau for bipolar,19:216 mas também admitiram que é muito difícil separar o que é hereditário e o que é ambiental e investigar se as mudanças são causa ou consequência do quadro depressivo.19:210

Um importante fator de risco para se tornar deprimido não tem nada a ver com a psiquiatria biológica, mas simplesmente viver uma vida deprimente da qual você sente que não pode escapar. Havia muito pouca informação nos livros sobre isso. Um deles dizia que o estresse, as condições de vida e o trauma podem desempenhar um papel nos distúrbios afetivos, mas não o quanto, em contraste com suas afirmações sobre o papel dos genes, que era de 50%.17:353 Outro mencionou o trauma, especialmente em relação ao primeiro episódio maníaco,18:113 e um terceiro mencionou abuso emocional, negligência e abuso físico na proporção de 9 a 12.16:263 Também observou que esteróides, pílulas anticoncepcionais e drogas bloqueadoras de estrogênio aumentam o risco de depressão, mas não houve menção de que drogas psiquiátricas, por exemplo, os benzodiazepínicos, pílulas para depressão e drogas para TDAH também podem causar depressão,7,8,11,34,44,45 embora isso seja altamente relevante, dado seu uso generalizado.

Este foi um problema geral encontrado nos manuais didáticos de psiquiatria. Eu dei outro exemplo logo acima dos psiquiatras protegendo seus interesses corporativos ao não mencionarem que as drogas que eles usam podem causar os mesmos distúrbios que eles tentam tratar. Isso é desonesto e não ajuda em nada.

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TDAH e a possibilidade de erro dos estudos observacionais

Para o diagnóstico de TDAH, os fatores de risco incluíram consumo de tabaco, álcool ou cocaína pela mãe ao longo da gravidez; diminuição do crescimento intrauterino; exposição fetal a inseticidas, chumbo ou mercúrio; pré-eclâmpsia; nascimento prematuro; partos complicados com hipóxia; baixo peso no nascimento; infecções pós-natais; exposição a metais pesados; e possivelmente neuroinfecções.17:612,18:229

Foi alegado que, embora os fatores ambientais possam contribuir, eles desempenham um papel menor.18:229

Deve-se sempre lembrar que tais afirmações sobre causalidade vêm de estudos observacionais. Eles podem, portanto, não estar corretos, mas não notei nenhuma ressalva nos livros quanto a isso.

Em contraste, os principais pesquisadores em epidemiologia têm fortes reservas sobre o que seus colegas publicam. Os estudos observacionais são repletos de dificuldades, o que é fácil de perceber se olharmos para a pesquisa nutricional.46 Pessoas que comem pouca fruta e vegetais ou bebem mais do que outras, não podem ser comparadas a vegetarianos e abstêmios. Eles diferem em diferentes pontos que podem influenciar sua longevidade. Portanto, se devemos acreditar no aconselhamento nutricional, ele deve vir de estudos randomizados e cuidadosamente conduzidos.

Se quisermos confiar em evidências observacionais, serão necessárias pesquisas de alta qualidade e a demonstração deve ser substancial porque há muito viés nesses estudos. Os principais epidemiologistas afirmaram que, por ser tão fácil ser enganado, resultados menos impressionantes são quase impossíveis de acreditar.47 Alguns disseram que mesmo um aumento de três vezes no risco não é persuasivo e que eles só podem ser persuadidos se o limite inferior do intervalo de confiança de 95% caia acima de um risco três vezes maior.

Quando examino as alegações feitas por psiquiatras consultando as suas fontes de estudo, quase sempre descubro que as alegações não podem ser comprovadas. Para mostrar como isso funciona, examinei um dos fatores de risco apontados para TDAH, o de baixo peso ao nascer. Encontrei imediatamente um artigo relevante pesquisando no Google TDAH baixo peso ao nascer que mencionava que “vários estudos relataram que crianças com peso baixo ou extremamente baixo peso ao nascer têm 3,8 vezes mais chances de atender aos critérios diagnósticos de TDAH”. Isso é uma má ciência. Se descrevemos vários estudos, não devemos escolher aquele com o resultado mais extremo, mas devemos dizer o que eles mostram em média, ou qual foi o resultado mediano.

Os autores citaram quatro estudos e eu procurei o primeiro. Ele incluiu 137 crianças com muito baixo peso ao nascer (MBPN) que foram comparadas aos 12 anos com uma amostra de pares combinados para vários sintomas psiquiátricos.49 O principal risco era o TDAH, diagnosticado em 31/136 (23%) das crianças MBPN, em comparação com 9/148 (6%) dos pares.

A razão de risco era 3,75, mas calculei que o intervalo de confiança de 95% passou de 1,85 para 7,58. Isso significa que o risco real de obter um diagnóstico de TDAH é provavelmente entre 2 e 8 vezes maior para crianças MBPN do que para crianças normais.

Supondo que o resultado esteja correto, o que não podemos saber, já que os resultados positivos são publicados com mais frequência do que os negativos (e por acaso selecionei o mais positivo), podemos calcular o tamanho que o estudo deveria ter se o limite inferior do intervalo de confiança excedesse 3. O limite inferior torna-se 3, se eu multiplicar todos os números por 10. Assim, o estudo deveria ter sido 10 vezes maior para despertar o interesse dos principais epidemiologistas.

Este é um problema geral com estudos observacionais. Eles geralmente são muito pequenos e considerando seus vieses inerentes com o risco adicional de publicação seletiva de resultados que por acaso são positivos, pode-se considerar que a maioria dos resultados de estudos observacionais seja enganosa. Mesmo que os estudos sejam muito grandes, eles geralmente são enganosos, pois não podemos eliminar os vieses, não importa o quanto tentemos ajustá-los estatisticamente.

O estudo MBPN foi tendencioso. Uma tabela mostrou que os pais de crianças com muito baixo peso eram socioeconomicamente desfavorecidos em comparação com o grupo controle. Além disso, os autores notaram que pais com distúrbios psiquiátricos eram mais propensos a ter filhos que também eram vulneráveis ​​a problemas psicológicos; que as mães de crianças com muito baixo peso eram mais deprimidas do que as mães de outros bebês; e que a maioria das crianças MBPN teve acesso limitado às mães durante os primeiros seis meses de vida. Os autores consideraram esse fato particularmente interessante. Eu também, pois essa poderia ser a explicação para suas descobertas e não o baixo peso ao nascer.

Não é possível ajustar de forma confiável essas diferenças com métodos estatísticos. Um estudo engenhoso, no qual um estatístico usou dados brutos de dois ensaios multicêntricos randomizados como base para estudos observacionais que poderiam ter sido realizados, mostrou que quanto mais variáveis ​​forem incluídas em uma regressão logística mais longe provavelmente chegaremos da verdade.50 O estatístico também descobriu que as comparações às vezes podem ser mais tendenciosas quando os grupos parecem passíveis de comparação ​​do que quando não o são; que os métodos de ajuste raramente conformam adequadamente a diferença no case-mix; e que todos os métodos de ajuste podem ocasionalmente aumentar o viés sistemático. Ele alertou que nenhum estudo empírico jamais mostrou que o ajuste, em média, reduz o viés.

Seu estudo pode ser o mais importante que encontrei em toda a minha carreira. Mas eu não encontrei um único pesquisador que não o conhecesse pessoalmente e que estivesse ciente de seus resultados altamente importantes.

Isso não quer dizer que os estudos observacionais não possam ser úteis. Muitas coisas não podem ser estudadas em ensaios randomizados e, portanto, não temos outra opção senão fazer pesquisa observacional. Mas é inaceitável que os manuais didáticos de psiquiatria quase sempre descrevam os resultados de tais estudos como se representassem a verdade, sem ressalvas.

Outras falhas na pesquisa de TDAH

Um do manuais didáticos forneceu a informação preocupante de que o TDAH é definido arbitrariamente como uma extremidade de uma curva de distribuição normal e que o desenvolvimento do cérebro é atrasado, mas não qualitativamente diferente daquele em crianças saudáveis.18:229

Se isso estiver correto, esperaríamos que mais crianças da mesma classe escolar nascidas em dezembro tivessem um diagnóstico de TDAH e estivessem em tratamento medicamentoso do que aquelas nascidas em janeiro, pois tiveram 11 meses a menos para desenvolver seus cérebros. Este é exatamente o caso. Um estudo canadense com um milhão de crianças em idade escolar mostrou que a prevalência de crianças em tratamento medicamentoso aumenta de forma bastante linear nos meses de janeiro a dezembro51 e que 50% a mais dos nascidos em dezembro estavam em tratamento.

Existem outros estudos que mostram o mesmo. Isso significa que, se tratarmos as crianças com um pouco de paciência que lhes permita crescer e amadurecer, menos crianças obteriam um diagnóstico de TDAH.

O diagnóstico surge principalmente a partir de queixas de professores e os pais costumam ouvir que seus filhos não podem voltar à escola a menos que estejam tomando um medicamento para TDAH. Um clínico geral me disse que uma professora havia enviado a maioria de seus alunos para exame por suspeita de TDAH.7:138 Claramente ela é quem era o problema, não as crianças, mas assim que as crianças são definidas com TDAH, isso alivia todos de qualquer responsabilidade ou incentivo para consertar a bagunça que criaram, seja na escola ou em casa.

Decidimos como sociedade que é muito trabalhoso ou caro modificar o ambiente das crianças, então, ao invés disso, modificamos o cérebro das crianças. Isso é cruel, como explicarei no Capítulo 9. Os Estados Unidos gastam mais de 20 bilhões de dólares por ano drogando crianças para o TDAH, o que é suficiente para pagar os salários de mais 365.000 professores em meio de carreira.52 E isso aumenta cada vez mais. O número de crianças com diagnóstico de TDAH aumentou 41% em apenas 8 anos, de 2003 a 2011.53

Apenas um dos livros didáticos mencionou algum dos estudos importantes sobre a prevalência do diagnóstico de TDAH em classes escolares de acordo com a idade.17:51 A crença na falsa história de que o TDAH é uma doença cerebral é tão forte que é quase impossível corrigir a narrativa prejudicial.

A doutrinação é muito eficaz. Em 2022, um dos meus colegas deu uma palestra sobre pensamento crítico para residentes de psiquiatria. Ele pediu que revisassem três estudos.

Um estudo mostrou que 16% daqueles com diagnóstico de TDAH tinham anormalidades genéticas (variantes do número de cópias) em comparação com 7% no grupo controle.54 Os pesquisadores concluíram que o TDAH era uma doença genética. Os residentes foram questionados se essa pequena diferença era significativa e poderia ser aplicada ao TDAH como categoria diagnóstica.

O segundo estudo procurou uma anormalidade genética nos distúrbios neuropsiquiátricos, esse mesmo estudo é frequentemente citado por fornecer evidências disso.55 Os pesquisadores relataram que havia um componente genético comum envolvido na patogênese de cinco distúrbios neuropsiquiátricos. Um dos distúrbios era o TDAH. Eles descobriram que aqueles com TDAH eram três vezes mais propensos a ter essa anormalidade. Mas se você combinar os dados das duas tabelas, descobrirá que apenas 0,3% tinham a anormalidade genética, portanto 99,7% não a tinham. Mas como apenas 0,1% dos participantes do grupo controle o tinham, a razão de chances se tornou três.

O terceiro estudo descobriu que crianças com diagnóstico de TDAH têm cérebros menores do que outras crianças.56 O tamanho do efeito foi de 0,1, o que significa que os pacientes com o diagnóstico têm 47% de chance de ter um cérebro maior que o normal.57 O tamanho do efeito também é chamado de tamanho de efeito padronizado. É o efeito dividido pelo desvio padrão das medições. Isso permite comparações de medições em escalas diferentes, mas semelhantes. Se, por exemplo, uma escala tiver um alcance 10 vezes maior do que outra escala, o desvio padrão também será 10 vezes maior e os tamanhos de efeito podem, portanto, ser combinados em meta-análises.

Os residentes enfatizaram que as diferenças genéticas eram altamente significativas e disseram que o estudo do volume cerebral sugeria que o TDAH era uma doença do neurodesenvolvimento.

Meu colega ficou pasmo. Ele disse aos residentes que os dados mostravam que quase todas as crianças diagnosticadas com TDAH não tinham anormalidades genéticas; que a razão de chances para o estudo de cinco distúrbios não tinha sentido; e que o estudo do volume cerebral mostrou que houve uma sobreposição de 96% entre crianças com diagnóstico e crianças sem.57

Os residentes então ficaram hostis. O palestrante não entendeu que o TDAH e os outros distúrbios eram distúrbios biológicos, que eram doenças como diabetes ou câncer?

Meu colega tinha visto muita insanidade na psiquiatria, mas ele me disse que essa era a coisa mais desesperadora que ele já havia experimentado. É assustador que essas pessoas devam cuidar de pacientes psiquiátricos de maneira baseada em evidências. Eles claramente não são capazes de fazer isso, pois exige que se tenha um conhecimento mínimo de ciência.

O estudo que afirmava que crianças com diagnóstico de TDAH têm cérebros pequenos foi amplamente condenado. Lancet Psychiatry dedicou uma edição inteira às críticas ao estudo. Allen Frances, presidente da força-tarefa do DSM-IV (DSM é o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, publicado pela Associação Psiquiátrica Americana), e Keith Conners, um dos primeiros e mais famosos pesquisadores do TDAH, reanalisaram os dados e não encontraram diferenças cerebrais.58

Os pesquisadores do artigo original escreveram na discussão que “nossos resultados provenientes de análises altamente avançadas confirmam que os pacientes com TDAH realmente têm cérebros alterados, ou seja, que o TDAH é um distúrbio do cérebro. Esta é uma mensagem clara para os médicos transmitirem aos pais e pacientes, o que pode ajudar a reduzir o estigma de que o TDAH é apenas um rótulo para crianças difíceis e causado por pais incompetentes.”56

A estupidez nesta mensagem é de partir o coração. Um dos críticos do artigo escreveu no Lancet Psychiatry que “não faz sentido informar que uma criança com TDAH tem um distúrbio cerebral”.59 Claro que não. Não é verdade, e não reduz o estigma, contar essas bobagens para médicos, pais e filhos; aumenta o estigma.

A Academia Americana de Psiquiatria Infantil e Adolescente escreve em sua página inicial:60 “O TDAH é um distúrbio cerebral. Os cientistas mostraram que existem diferenças nos cérebros de crianças com TDAH… algumas estruturas no cérebro de crianças com TDAH podem ser menores do que as áreas do cérebro em crianças sem TDAH.”

Em setembro de 2021, a Declaração de Consenso Internacional da Federação Mundial (The World Federation of ADHD International Consensus Statement) de TDAH foi publicada. 61 Ela apresentava o que os autores chamam de “208 conclusões baseadas em evidências sobre o distúrbio”, mas várias delas estavam incorretas, por exemplo “Quando feito por um clínico licenciado, o diagnóstico de TDAH é bem definido e válido” e o tratamento com medicamentos para TDAH reduz o abuso de substâncias, o baixo desempenho educacional e a atividade criminosa (ver Capítulo 9).

Havia 80 autores, então a maioria deles não pode ter contribuído muito para o artigo. Eles não especificaram quais contribuições cada um fez, mas muitos deles tinham vários conflitos de interesse em relação à indústria farmacêutica. O artigo afirmou que existe uma “causa poligênica para a maioria dos casos de TDAH, o que significa que muitas variantes genéticas, cada uma com um efeito muito pequeno, combinam-se para aumentar o risco do distúrbio. O risco poligênico de TDAH está associado à psicopatologia geral … e a vários distúrbios psiquiátricos”.

A grande decepção dos médicos e do público ocorre, entre outros motivos, porque diferenças muito pequenas de grupos em relação ao grupo controle são representadas como anormalidades encontradas em indivíduos diagnosticados com TDAH, embora os dados do estudo, quando devidamente analisados, mostrem que isso não é verdade. 57 Depois que os dados são revisados, fica claro que décadas de pesquisa sobre possíveis anormalidades em genes, volume cerebral e substâncias químicas cerebrais resultaram negativas.

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Para ver a lista de todas as referências citadas, clique aqui.

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Mad in Brasil (Texto original do site Mad in America ) hospeda blogs de um grupo diversificado de escritores. Essas postagens são projetadas para servir como um fórum público para uma discussão – em termos gerais – da psiquiatria e seus tratamentos. As opiniões expressas são próprias dos escritores.


 

Tradução de Leticia Paladino : Graduada em Psicologia pela UERJ, doutoranda em Saúde Pública pela ENSP/Fiocruz, mestre em Saúde Pública pela ENSP/Fiocruz e especialista em Saúde Mental e Atenção Psicossocial pela ENSP/Fiocruz.  Pesquisadora e Colaboradora do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial (LAPS/ENSP/Fiocruz).