O artigo El sesgo de género en el discurso y en las intervenciones psiquiátricas aborda o viés de gênero que existe no campo da psiquiatria. Para tal, o artigo se divide em três partes: o viés de gênero na história da psiquiatra; análise das críticas feministas à psiquiatria atual e uma narração em primeira pessoa, resultante de uma entrevista com uma usuário de um CAPS em Florianópolis.
As mulheres são as mais diagnosticadas com depressão, mas também, com os transtornos de ansiedade, transtornos alimentares e de pânico. Além disso, a desigualdade de gênero também é verificada no fato de mulheres consumirem mais drogas psiquiátricas prescritas, principalmente antidepressivos e ansiolíticos. O artigo sustenta que essas diferenças de gênero não são naturais ou biologicamente determinadas, e propõe desconstruir tal ideia. Mas alertam para a dificuldade dessa empreitada visto que esse viés de gênero acompanha a psiquiatria desde as suas origens.
Nesse sentido, o livro Women and Madness de Phyllis Chesler, cuja primeira edição foi publicada em 1972 e a última edição em 2005, aparece como importante referência para este artigo. O livro atribui as diferenças de gênero nos diagnósticos ao castigo que as sociedades patriarcais impõe às mulheres, por comportamentos que são considerados socialmente inaceitáveis para elas, embora sejam admissíveis para os homens. O artigo destaca que apesar dos anos que nos separam da primeira publicação deste importante livro, pouca coisa mudou.
Poucos anos depois do trabalho de Chesler ser publicado, Franca Basaglia publica uma crítica ao livro “A inferioridade mental da mulher”, escrita pelo neurologista e psiquiatra Paul Julius Moebius no ano de 1900. Franca tem por objetivo desmontar o argumento incansavelmente repetido sobre a loucura das mulheres, mostrando a funcionalidade que certos discursos com pretensão de cientificidade tem tido ao longo da história para reforçar estigmas, para negar direitos e para legitimar a exclusão social de grupos considerados subordinados.
Desde Philippe Pinel, que inaugura a psiquiatria moderna, a loucura das mulheres é associada à genitália e aos fenômenos biológicos como a menstruação, gravidez, parto e menopausa. Pegando Moebius como referência desse saber médico-psiquiátrico sobre a loucura feminina, o artigo expõe algumas de suas estratégias para construir seus argumentos sobre a loucura e inferioridade mental da mulher.
- A primeira estratégia se baseia na cronometria e na anatomia cerebral comparada. Moebius compara cérebros de mulheres com cérebros de homens “normais”. E conclui que as mulheres tem o diâmetro menor, similar àqueles homens com, citando o mesmo, “deficientes mentais e idiotas”. Também situa as mulheres próximo às bestas.
“A semelhança das bestas carecem de opinião própria, são rígidas, conservadoras e odeiam a novidade, exceto quando o novo aporta uma vantagem pessoal ou agrada a seu amante” (Moebius, 1982, p.10).”
Franca questiona o valor de tal investigação ao comparar os cérebros de mulheres com o cérebro de homens (eles são a referência do cérebro “normal”, do “ideal”?), o que já deixa claro que o que baseia tais afirmações são argumentos morais e não científicos.
2. A segunda estratégia utilizada por Moebius foi o recurso da teoria da degeneração. Em 1857, o psiquiatra Benedict Morel definiu a loucura dos degenerados como um “desvio mórbido do tipo normal da humanidade”, tal degeneração era hereditária e essa transmissão deveria ser limitada. Assim, Moebius agrega uma nova patologia na galeria das degenerações: o nervosismo das intelectuais e feministas. Ele as associa ao “hermafroditismo psíquico”, que segundo ele ocorre quando se intenciona “introduzir um cérebro de homem dentro do crâneo de uma mulher”.
“Assim, a mulher prostituta e a mulher feminista representam os dois desvios mórbidos do estado normal representado pela mulher mãe. Por isso “uma mulher que não quer ter filhos ou que tendo o primeiro diz: “Um só e basta”, demostra, indubitavelmente, uma natureza degenerada” (MOEBIUS, 1982, p. 59). Se trata de uma patologia psíquica que afeta a mulher intelectual, feminista ou erudita, porque ali existe antagonismo entre a atividade cerebral e a procriação, duas funções intimamente ligadas, mas que perderam seu equilíbrio.”
Pesquisadoras e estudiosas feministas vêm criticando o machismo e misoginia presente em que tem caracterizado a psiquiatria e disciplinas afins desde o seu início. O artigo salienta duas contribuições das pesquisadoras feministas para a discussão:
- As etiquetas diagnósticas estão atravessadas pelas relações de poder da sociedade a qual pertencem, sendo um produto social. Portanto, os diagnósticos têm um viés de gênero.
No séc. XIX a histeria aparece como o diagnóstico principal para as mulheres numa sociedade em que estas estavam se rebelando e se organizando politicamente. Mas este tipo de mecanismo não é algo do passado, de forma até certo ponto análoga ao que aconteceu com a histeria, hoje as mulheres que encarnam o estereótipo contraditório da mulher ao mesmo tempo sedutora, de personalidade débil e emocionalmente volátil são consideradas casos de “transtorno de personalidade limítrofe”. As mulheres também são muito mais diagnosticadas com depressão e ansiedade do que os homens, e as explicações para esse fato continuam passando por estereótipos patriarcais que não levam em consideração a raiz do problema: que a desigualdade afeta a saúde mental das mulheres.
O artigo alerta para a necessidade de se fazer consciente sobre a influência do viés de gênero na hora de avaliar os comportamentos das pessoas e considerá-los patológicos ou não. Nesse sentido, Joan Busfield (2002), sugere uma classificação de dois tipos de transtornos atuais: transtornos relacionados com a emoção, transtornos relacionados com os pensamentos (fundamentalmente a psicose), transtornos relacionados ao comportamento (adições ou transtornos de personalidade). Segundo dados, as mulheres são mais diagnosticadas com o primeiro tipo, pois se relacionam com a feminizada esfera da emoção. Já os diagnósticos relacionados ao comportamentos, como as adições, apresentam mais o homens. Enquanto que os diagnósticos relacionados ao pensamento, em sua opinião, menos suscetíveis a apresentar um viés de gênero, se distribui mais igualitariamente entre homens e mulheres.
Outro aporte relevante de Busfield (2002), é a classificação lógica dos mecanismos que podem provocar essas diferenças epidemiológicas. O primeiro é aquele que não questiona a categoria diagnóstica em si, aceita que as diferenças de gênero são reais e tenta explicar o porquê. O segundo tipo de explicação se fixa no processo de diagnóstico, identificando que o viés de gênero pode ser encontrado no momento de identificar o transtorno como tal.
2. A crítica que fazem ao efeito despolitizador que tem a patologização do sofrimento.
A psicóloga britânica Jane Ussher, apresenta uma explicação completa de como reinterpretar padecimentos individuais em termos coletivos e políticos. Ussher explora como muitos dos critérios diagnósticos do DSM são respostas habituais e compreensivas para situações de violência e patriarcado que mulheres vivenciam, colocando o enfoque na necessidade de mudanças sociais. A socióloga Heidi Rimke para essa tendência ocidental de individualizar os sofrimentos como “psicocentrismo”.
“Devemos escutar a palavra silenciada das especialistas por experiência, das sobrevivientes da psiquiatría, prestar atenção nas histórias em primeira pessoa, narradas pelas mulheres que sofreram em seus corpos os abusos do poder psiquiátrico.”
Desde o final do séc. xx, um movimento internacional de usuárias e sobreviventes da psiquiatria vem ganhando força. No Brasil, esse movimento foi possível a partir da Reforma Psiquiátrica. “Nada sobre nós sem nós” se tornou uma bandeira representativa sobre o protagonismo das pessoas em sofrimento.
Como caso modelo, o artigo traz a história de Vanessa, que está há mais de um ano sem tomar medicamentos psiquiátricos, ainda frequenta o CAPS e faz tratamentos alternativos. A mesma faz um duro relato sobre os efeitos que o uso de psicofármacos teve na sua vida.
Vanessa sofreu abuso sexual quando criança. Seu pai tinha problemas com álcool e os pais brigavam recorrentemente. Quando adolescente não tinha muitos amigos e sentia dificuldades de socializar. A primeira vez que sentiu que estava vivendo um sofrimento psíquico e emocional mais intenso, tinha 15 anos e foi mandada pela família para cuidar da avó que estava com demência e Alzheimer, parando de estudar. Após uma crise da avó, Vanessa sente uma tristeza profunda e passa três dias sem conseguir sair da cama. Foi nessa ocasião a sua primeira consulta psiquiátrica e sua primeira experiência com psicofármacos. Viveu um verdadeiro drama por conta do uso de remédios.
“Às vezes, dormia duas horas por noite. Segundo conta, a risperidona (antipsicótico) lhe provocava temores no pescoço, sentia que a boca se retorcia, entre outras sensações desagradáveis. O ácido valproico, uma vez tomado, causava uma sensação de que algo lhe explodia no estômago, provocando náuseas e vômitos constantes.”
Em 2018, Vanessa começou a reduzir a medicação. Ela acredita que só se deve tomar medicamentos em momentos de crise e não de forma contínua. Durante e depois do processo de retirada dos psicofármacos, Vanessa continuou com as sessões de psicoterapia individual, a participação em grupos terapêuticos e se implicou fortemente na militância. Atualmente estuda arquivologia na Universidade Federal de Santa Catarina.
Como no caso de Vanessa, a psiquiatria parece repetir o mesmo viés de gênero desde o século XIX até hoje. Isso ocorre quando considera normal que mulheres exerçam tarefas de cuidado desconsiderando o preço subjetivo que elas pagam para exercer tal papel. É preciso contextualizar e despatologizar atitudes e comportamentos de mulheres que padecem sofrimentos psíquicos, entendendo que seu sofrimento pode ser uma resposta a circunstâncias adversas da vida. Por fim, entender que seus problemas não são biológicos ou individuais, mas sociais e políticos.
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