Nota do editor: Nos próximos meses, a Mad in Brasil publicará uma versão serializada do livro de Peter Gøtzsche, Manual de Psiquiatria Crítica. Neste blog, ele continua a discussão sobre a manipulação dos testes de pílulas para depressão para crianças e adolescentes pela indústria farmacêutica. A cada quinze dias, uma nova seção do livro será publicada e todos os capítulos estão arquivados aqui.
O grande estudo TADS sobre fluoxetina, financiado pelo NIH, foi seriamente mal relatado
Houve um único ensaio independente de fluoxetina para adolescentes, o Estudo de Tratamento da Depressão Adolescente (Treatment for Adolescents with Depression Study – TADS) do Instituto Nacional de Saúde dos Estados Unidos, publicado em 2004(322). Este ensaio foi muito grande e teve uma influência significativa.
Adolescentes com depressão (n = 439) foram randomizados para quatro grupos de tratamento: fluoxetina isolada (n = 109), terapia cognitivo-comportamental (TCC) isolada (n = 111), fluoxetina com TCC (n = 107) ou um placebo em pílula (n = 112) durante a fase aguda do TADS (12 semanas).
Os investigadores relataram que o tratamento combinado com fluoxetina e TCC “ofereceu a mais favorável relação entre benefício e risco para adolescentes com transtorno depressivo maior.” No entanto, o relato foi amplamente criticado. Há problemas com o desenho do estudo, relatórios estatísticos e interpretação, discrepâncias entre resumos de artigos e seu conteúdo em mais de 30 publicações da equipe do TADS, e má representação dos danos (323).
Uma revisão sistemática de 2020 criticou 19 diretrizes internacionais de prática clínica por sua dependência das descobertas do TADS sem considerar a falha dos autores do TADS em relatar adequadamente os danos causados pela droga(324).
Os autores do TADS afirmaram eficácia e segurança para a fluoxetina, que é o mantra padrão da indústria farmacêutica, independentemente dos resultados, mas ambas as afirmações estão erradas. O efeito não foi clinicamente relevante e houve o dobro de eventos suicidas em pacientes randomizados para fluoxetina do que em pacientes randomizados para placebo(322,325).
Até hoje, o relato sobre os danos continua sendo altamente deficiente(323). Dois pesquisadores que queriam corrigir isso conseguiram acesso a dados resumidos via Institutos Nacionais de Saúde(323). Esses dados indicaram que, dos 30 eventos adversos graves registrados durante a fase aguda do estudo, 12 foram tentativas de suicídio entre crianças que tomavam ISRSs, em comparação com apenas duas tentativas entre crianças que não estavam tomando ISRSs.
Em seguida, os pesquisadores tentaram obter acesso aos formulários de registros de casos e narrativas, que são essenciais para uma reanálise rigorosa, que os termos codificados e avaliações de gravidade do MedDRA (Medical Dictionary for Regulatory Activities – Dicionário Médico para Atividades Regulatórias) não permitem. A experiência anterior dos pesquisadores com a restauração do estudo (329) da GlaxoSmithKline (GSK) sobre paroxetina em crianças e adolescentes mostrou que este passo adicional é muito importante para corrigir os erros cometidos pelos investigadores originais, o que mudou significativamente os danos em desfavor da paroxetina(300).
No entanto, a Universidade Duke, onde os dados do ensaio estavam armazenados, recusou-se a entregar os formulários de eventos adversos graves do estudo, mesmo tendo assinado um acordo sobre a entrega dos dados(323). Seus argumentos para a recusa eram inválidos.
Os pesquisadores então tentaram obter os dados ausentes da Eli Lilly, que forneceu a droga para o ensaio e recebeu todos os relatórios de eventos adversos graves dos investigadores, mas a Lilly se recusou a liberar os dados e também a publicar qualquer correspondência.
Os pesquisadores também tentaram obter os dados da FDA, mas foram informados de que levaria pelo menos dois anos antes que fossem atendidos na fila.
Outras pílulas para depressão também são inseguras e os ensaios pediátricos são manipulados
Aumento do risco de suicídio e violência não se limita à fluoxetina. É um efeito da classe. Meu grupo de pesquisa utilizou os relatórios clínicos dos ensaios controlados por placebo de ISRSs e SNRIs, e descobrimos que essas drogas aumentam a tendência suicida e a agressão 2-3 vezes entre crianças e adolescentes, com razão de possibilidade de 2,39 (1,31 a 4,33) e 2,79 (1,62 a 4,81), respectivamente(326).
Antes do desenvolvimento dos ISRSs, houve 15 ensaios randomizados de tricíclicos e compostos relacionados em crianças e adolescentes, todos negativos(327). Havia um consenso clínico de que as crianças não desenvolviam depressão endógena(279). Elas podiam estar miseráveis e infelizes, mas isso era situacional e responderia a intervenções psicossociais. Associado a isso, havia quase nenhum psiquiatra infantil com experiência em psicofarmacologia.
Os ISRSs na época tinham uma ação ansiolítica, mas foram comercializados como pílulas para depressão em parte para evitar preocupações clínicas de que qualquer novo ansiolítico necessariamente produziria dependência, como os benzodiazepínicos(328). Uma meta-análise de 2017 de ensaios publicados em crianças e adolescentes confirmou que os ISRSs são essencialmente drogas ansiolíticas, pois os tamanhos de efeito foram significativamente maiores para ansiedade (0,56) e transtorno obsessivo-compulsivo (0,39) do que para depressão (0,20).329
Nossa reanálise dos dois ensaios pivotais de fluoxetina(279) deixou claro que esta droga nunca deveria ter sido aprovada para uso em crianças e adolescentes. Mas uma vez aprovado, abriu caminho para a aprovação de outros ISRSs ineficazes e perigosos.
Após licenciar a fluoxetina para crianças, com base em estudos negativos em seu desfecho primário, a FDA emitiu uma carta de aprovação em outubro de 2002 para a paroxetina, que veio à tona por causa de um caso judicial:(330) “Concordamos [com a GSK] que os resultados dos Estudos 329, 377 e 701 não demonstraram a eficácia do Paxil em pacientes pediátricos com TDM [transtorno depressivo maior]. Dado o fato de que ensaios negativos são frequentemente observados, mesmo para drogas antidepressivas que sabemos serem eficazes, concordamos que não seria útil descrever esses ensaios negativos na rotulagem.”
Esta é uma das afirmações mais horríveis que já vi um regulador de medicamentos fazer. “O medicamento não funcionou, mas sabemos que funciona.” Se assim for, por que se dar ao trabalho de fazer ensaios randomizados? É assim que praticantes de homeopatia ou medicina chinesa e outras pseudocientistas argumentam.
Na publicação inicial de 2001 do estudo 329, que foi um ensaio de paroxetina em menores deprimidos, a GSK afirmou que a paroxetina era segura e eficaz.(331) Mas um documento interno de 1998 revela que a GSK sabia que o estudo demonstrava que sua droga era ineficaz, o que a GSK considerava comercialmente inaceitável para publicar(332,333). O documento afirma que os “bons trechos do estudo seriam publicados.”
O estudo foi negativo para eficácia em todos os oito desfechos especificados no protocolo e positivo para danos. Mas a GSK distorceu os dados para conseguir o que queria (332,334). O artigo não deixou nenhum vestígio dessa distorção; na verdade, afirmou falsamente que os novos desfechos foram declarados a priori – uma fraude clássica de quem escolhe as informações que lhe são convenientes.
Com base nessas informações, o Procurador Geral do Estado de Nova York instaurou uma ação por fraude contra a GSK em 2004(122). O acordo desta ação tornou possível acessar dados do estudo (329) e restaurá-los de forma que demonstrasse a falta de eficácia da paroxetina e o aumento de eventos suicidas em contraste com a publicação original (331), que era fraudulenta. Sete crianças na paroxetina versus uma no placebo demonstraram comportamento suicida ou autolesivo (300). No artigo publicado, cinco casos de pensamentos e comportamento suicida foram listados como “labilidade emocional” e mais três casos de ideação suicida ou autolesão foram chamados de “hospitalização.”(122) Quando a FDA exigiu que a empresa revisasse os dados novamente, houve quatro casos adicionais de autolesão intencional, ideação suicida ou tentativa de suicídio, todos com o uso de paroxetina.
O primeiro autor da fraude, Martin Keller, duplicou suas despesas de viagem; foi oferecido $25.000 para cada adolescente vulnerável; recebeu centenas de milhares de dólares para financiar pesquisas que não estavam sendo conduzidas; recebeu centenas de milhares de dólares de empresas farmacêuticas todos os anos que ele não divulgou; deu palestras para pacientes e seus parentes com dinheiro da indústria, o que ele não revelou; e seus honorários foram propositalmente não declarados(122).
As más condutas de Keller não prejudicaram sua carreira, provavelmente porque seu departamento havia recebido $50 milhões em financiamento para pesquisas. Um porta-voz da Escola de Medicina da Universidade Brown disse que “a pesquisa do Dr. Keller sobre o Paxil estava de acordo com os padrões de pesquisa da Brown.” Compreensível.
O periódico que publicou o artigo de Keller, Journal of the American Academy of Child and Adolescent Psychiatry, foi cúmplice na fraude. Embora tenha sido mostrado aos editores do periódico evidências de que o artigo distorcia a ciência, eles se recusaram a transmitir essa informação à comunidade médica e a retratar o artigo(332). Uma explicação para essa passividade pode ser encontrada seguindo o dinheiro que vai para o proprietário do periódico
A GSK promoveu ilegalmente a paroxetina para uso em crianças, embora não fosse aprovada para crianças, e omitiu resultados de ensaios que mostravam que a paroxetina era ineficaz(335). O marketing implacável funcionou. Descrevi muitas histórias de partir o coração sobre crianças e adultos jovens que não tinham problemas mentais de forma alguma, mas que se suicidaram por enforcamento ou outros meios violentos por causa dos danos das pílulas para depressão que tomaram (6:219,7:79). Essas pessoas foram prescritas pílulas para depressão devido a insônia, término de relacionamento, estresse no trabalho ou na escola e outros problemas cotidianos.
A aprovação da fluoxetina para depressão em crianças e adolescentes e a publicação de muitos artigos desde então, muitas vezes escritos por ghostwriters (escrita-fantasma, em tradução livre), reivindicando eficácia para vários ISRSs, varreu a ideia de confiar na psicoterapia e outras formas de apoio(279).
A FDA também foi enganada por outras empresas farmacêuticas. Em 2002, quando a GSK solicitou a aprovação da paroxetina para crianças, a FDA escreveu para a empresa(330):
“Você não forneceu nenhuma análise de dados de intervalo de ECG para os estudos controlados. Os resultados fornecidos para os estudos 701 e 704 consistiam em uma contagem dos números de pacientes com anormalidades no ECG. No estudo 329, as anormalidades no ECG foram consideradas eventos adversos, mas não foram analisadas de outra forma. Para completar nossa revisão desta aplicação, estamos solicitando que você envie a análise típica realizada para esse tipo de dados; como, por exemplo, uma análise da mudança média em relação ao início do ensaio para os intervalos de ECG medidos.
A FDA, além disso, criticou uma tabela que não mostrava dados dos grupos de placebo e listava crianças tratadas com paroxetina cujos eventos adversos haviam sido codificados como hostilidade, labilidade emocional ou agitação, mas não incluía eventos adversos psiquiátricos codificados sob outros termos. A FDA solicitou os resumos de casos narrativos para aqueles eventos que eram sérios ou resultaram em descontinuação prematura.
É inacreditável que tais informações não tenham sido fornecidas na aplicação para a aprovação da droga. A GSK também foi solicitada a fornecer sua “justificativa para codificar tentativas de suicídio e outras formas de comportamento autolesivo sob o termo WHOART ‘labilidade emocional.’ ”
A paroxetina parecia prejudicar o crescimento, assim como encontramos com a fluoxetina. A FDA solicitou à GSK que testasse estatisticamente seus dados sobre altura e peso e conduzisse estudos em animais juvenis para avaliar os efeitos da paroxetina no crescimento e no desenvolvimento neurológico, comportamental e reprodutivo. No entanto, assim que uma droga é aprovada, a empresa farmacêutica tende a “esquecer” tudo o que o regulador de medicamentos solicitou. Isso pareceu ser o caso também desta vez. Eu revisei a bula da FDA para paroxetina em 2022 (336), e não havia nada que sugerisse que a GSK havia feito os estudos com animais solicitados, embora fossem muito importantes.
O folheto informativo da FDA para fluoxetina mostra o quão perigosas essas drogas são (33). Ela descreve uma meta-análise de ensaios controlados por placebo a curto prazo. Para cada 1000 crianças ou adolescentes tratados com a droga em vez de placebo por uma duração média de apenas dois meses, houve 14 casos adicionais de tendências suicidas. O número necessário para dano em uma criança, portanto, foi apenas 71.
Em 2004, a FDA emitiu um alerta de advertência na caixa de medicamento sobre pílulas para depressão com base em uma meta-análise que mostrou que a taxa de pensamentos suicidas ou comportamento suicida era de 4% entre pacientes jovens que tomavam pílula para depressão e apenas 2% entre aqueles no placebo, o que foi uma diferença estatisticamente significativa(303,337) No entanto, quando a FDA publicou o dobro do risco de suicídio em crianças em um periódico médico, eles chamaram isso de um “risco modestamente aumentado.”(338)
Enquanto a FDA estava revisando os dados, os acadêmicos das escolas de medicina que haviam publicado resultados positivos dessas drogas estavam preocupados e emitiram um relatório em janeiro de 2004 defendendo a eficácia das drogas e contestando a evidência de que seu uso aumentava o comportamento suicida.339 Os pesquisadores acadêmicos haviam contatado as empresas para ter acesso aos dados que eles próprios geraram, mas algumas empresas farmacêuticas se recusaram a fornecer os dados. Esta decisão não podia ser contestada porque as escolas de medicina, ao concordarem em conduzir os ensaios, haviam assinado acordos com os fabricantes de medicamentos que mantinham os dados confidenciais.
Centros médicos acadêmicos nos Estados Unidos criaram escritórios de ensaios clínicos e cortejam abertamente a indústria, oferecendo os serviços de suas faculdades clínicas e fácil acesso aos pacientes(340). Em vez de combater a corrupção da integridade acadêmica, os acadêmicos participam de uma corrida para o fundo ético, tornando menos provável que qualquer pessoa de fora veja os dados. A ciência se mistura ao marketing e os professores acabam como promotores, enquanto alguns cientistas da indústria ficam enojados pelo processo em que se envolveram (341), mas não podem fazer nada.
O manual didático que tem apenas psiquiatras como autores observou que algumas pessoas experimentam agitação ou ansiedade no início do tratamento, especialmente em idades jovens, com um possível agravamento de pensamentos suicidas (18:238). Não é especialmente em jovens; não se limita ao início do tratamento, mas pode acontecer a qualquer momento; e é muito pior do que apenas pensamentos. Algumas crianças se matam por causa dos danos causados pelas pílulas (7).
É cruel que a maioria dos líderes psiquiátricos diga – até mesmo na TV nacional dinamarquesa, o que Lars Kessing fez (342) – que pílulas para depressão podem ser dadas com segurança a crianças porque não houve um aumento estatisticamente significativo nos suicídios nos ensaios, apenas em pensamentos e comportamentos suicidas, como se não houvesse relação entre os dois.
Os psiquiatras recompensam as empresas por sua fraude enquanto sacrificam as crianças. Todos sabemos que um suicídio começa com pensamentos suicidas seguidos de preparações e tentativas de suicídio.
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Mad in Brasil (Texto original do site Mad in America ) hospeda blogs de um grupo diversificado de escritores. Essas postagens são projetadas para servir como um fórum público para uma discussão – em termos gerais – da psiquiatria e seus tratamentos. As opiniões expressas são próprias dos escritores.
Tradução de Leticia Paladino : Graduada em Psicologia pela UERJ, doutoranda em Saúde Pública pela ENSP/Fiocruz, mestre em Saúde Pública pela ENSP/Fiocruz e especialista em Saúde Mental e Atenção Psicossocial pela ENSP/Fiocruz. Pesquisadora e Colaboradora do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial (LAPS/ENSP/Fiocruz).