Entrevista com Robert Whitaker

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Image 22-10-17 at 18.43Vida Integrada entrevistou Robert Whitaker: jornalista, autor de 5 livros, que recentemente publicou “Anatomia de uma Epidemia” livro premiado e traduzido em diversos idiomas, que aborda a contravertida questão do uso abusivo de drogas nos tratamentos psiquiátricos.

1) Caro Robert, como o Sr. vê a evolução dos tratamentos de Saúde Mental durante as últimas décadas?

Existe pouca evidência de que durante os últimos trinta anos tenha havido qualquer progresso real no tratamento de doenças mentais. As pesquisas não levaram a nenhum avanço real em encontrar causas “biológicas” para as doenças mentais, e mesmo no que tange a tratamentos medicamentosos, há pouca evidência de que as drogas de segunda geração tenham resultados melhores que as de primeira.

Mais assustador ainda é o seguinte: como diversos países do Mundo adotaram o “modelo de doença” e estão utilizando cada vez mais essas drogas, o número de pessoas incapacitadas só vem aumentando ao longo do tempo (índice medido pela porcentagem da população afastada do trabalho por doença mental e que depende de ajuda financeira do governo, nos EUA). Então na prática, há pouquíssima evidência de qualquer progresso em psiquiatria para doenças conhecidas como “doenças ou desequilíbrios químicos do cérebro”. A maior evidência de que a teoria desequilíbrio químico está incorreta, é que os tratamentos propostos para essa teoria fizeram mais mal do que bem durante as últimas décadas.

2) No seu livro recente “Anatomia de uma Epidemia” você se posiciona contra a ideia de que a doença mental seja causada por qualquer “desequilíbrio químico” no cérebro. Você acredita que isto seja um mito? 

anatomia_de_uma_epidemia_imagem_2Não é uma questão pessoal de acreditar ou não, já que a própria ciência revela que a teoria é um mito. A Psiquiatria sabe disso…A melhor referência sobre o assunto vem de um Psiquiatra, o Dr. Ronald Pies que foi o último Editor Chefe da revista “Psychiatric Times”, basicamente um braço da Associação Americana de Psiquiatria (APA). Ele escreveu: “Na verdade, a ideia de um desequilíbrio químico sempre foi uma espécie de lenda urbana, nunca foi uma teoria seriamente proposta por psiquiatras bem-informados”.

Existem muitos comentários similares a esse, feitos por cientistas que investigaram a fundo a hipótese do desequilíbrio químico e que mostraram que essa hipótese não tem fundamento científico algum. Por isso não se tratar de uma questão pessoal minha sobre ser um mito ou não.

Em 1998 Dr. Elliot Vallenstein, professor de neurociências na Universidade de Michigan, escreveu um livro que se chama “Blaming the Brain” ou “Culpando o cérebro” e nele ele diz: “As evidências coletadas não sustentam nenhuma teoria bioquímica como causadora de doenças mentais”. Mais recentemente, em 2005, Kenneth Kendler, co-editor da revista “Psychological Medicine” disse o seguinte: “Por muito tempo nós procuramos explicações neuroquímicas simples, que pudessem ser tidas como causas das doenças mentais, mas simplesmente não as encontramos. Ou seja, as pessoas que pesquisaram o assunto a fundo concluíram que essa teoria não se respalda, o que também é verdade sobre a teoria de que as pessoas deprimidas também têm baixas taxas de serotonina no cérebro.

3) Algo que chama a atenção tanto no livro quanto nos seu vídeos é que você postula que os efeitos das drogas psiquiátricas são nocivos a médio prazo, tanto no sentido cognitivo quanto também comportamental. Você poderia explicar em que se baseia para fazer essas afirmações?

Todos os estudos de longo prazo com drogas psiquiátricas mostram os mesmos resultados: aqueles que tomam as drogas por períodos mais longos se saem pior do que aqueles que não as tomam. Enquanto isso, os pesquisadores que buscam entender esses resultados ruins acharam uma explicação biológica para isso: no longo prazo, as drogas acabam causando anormalidades ao cérebro, o que é exatamente o oposto do que deveria ser o seu efeito inicial previsto.

Por exemplo, tome os casos dos antidepressivos conhecidos como Inibidores Seletivos de Recaptação de Serotonina (ISRS). Eles bloqueiam a recaptação normal de serotonina na fenda sináptica e portanto, aumentam a atividade serotonérgica. Fomos ensinados que isso resolveria o desequilíbrio químico cerebral, mas os pesquisadores nunca encontraram pessoas com depressão que tivessem baixas taxas de serotonina antes de começarem a tomar os remédios.

Ou seja, as drogas aumentam a atividade serotonérgica, mas o cérebro tem mecanismos de biofeedback, feitos para manter um equilíbrio homeostático (mantendo funcionamento normal dentro da sopa química cerebral). Esses mecanismos agora sinalizam ao cérebro para reduzir a atividade serotonérgica, uma vez que há excesso de serotonina em circulação. Então os neurônios pré-sinápticos começam a reduzir a quantidade produzida de serotonina, e os neurônios pós-sinápticos diminuem a densidade de seus receptores de serotonina de forma a tornar o cérebro menos sensível ao excesso circulante. Resumindo, a droga aumenta a atividade de serotonina e o cérebro aciona o freio exatamente nessa mesma atividade, de forma a manter o equilíbrio.

Veja que ironia: antes de começar a medicação, o paciente deprimido não tinha nenhum problema conhecido com seu sistema serotonérgico, mas agora ele tem! Agora ele tem menos receptores de serotonina do que o normal. Ou seja, o uso constante das drogas criou exatamente o problema que imagina-se causar a depressão. E ao se retirar a medicação, há menos receptores e menos serotonina sendo produzida e portanto a pessoa recai.

Os pesquisadores então chegaram à conclusão de que provavelmente é esse o motivo pelo qual as pessoas não melhoram com os remédios a longo prazo. “As drogas induzem a modificações opostas ao previsto” disse um dos pesquisadores.

4) Será que esse mesmo mecanismo de biofeedback explica porque as pessoas têm tanta dificuldade em deixar as medicações psiquiátricas, em geral?

Claro, é essa a razão pela qual deixar a medicação se torna tão difícil. O seu cérebro se adaptou à presença da droga e quando você tenta retirá-la, o cérebro entra em um estado anormal. Se voltarmos ao exemplo dos Inibidores de Recaptação Seletiva de Serotonina, ao deixar o remédio, você agora está equipado com um sistema serotonérgico que está deficiente, ou até comprometido. E isso provavelmente irá levá-lo a uma recaída quase que imediata, além de possíveis complicações, efeitos colaterais e de abstinência, etc.

Eu devo dizer que esta é uma explicação muito simplista de como sistemas de neurotransmissores cerebrais funcionam. Na realidade, um sistema afeta o outro, e tomar medicação psiquiátrica é como atirar uma chave inglesa dentro desse complexo mecanismo que é o cérebro humano. É por isso que tentar parar a medicação pode ser uma tarefa tão difícil para os pacientes.

5) Na sua opinião essa hipótese do feedback cerebral e da homeostase adaptativa é a mesma para outras drogas psiquiátricas, seja para depressão, ansiedade, hiperatividade, etc?

Sim, eu acredito que isso aconteça com todas as drogas psiquiátricas. Foi isso que Stephen Hyman, um ex-diretor do Instituto Nacional de Doenças Mentais dos Estados Unidos (NIMH), escreveu em 1996 num paperintitulado “A paradigm for understanding psychotropic drugs”. Ele descreve que esse é um processo universal que acontece com todos os tipos de medicação psiquiátrica.

6) Aqui no Brasil também seguimos o mesmo modelo de doença preconizado pelos manuais de Psiquiatria e pela Organização Mundial da Saúde – OMS. Mas se essas políticas claramente não têm dado resultados, porque não há ninguém alertando sobre isso, mundialmente falando?

Bom, essa é uma boa pergunta… Na verdade quem escreve as diretrizes para a OMS? São os próprios psiquiatras contratados para fazerem parte dos painéis de desenvolvimento da OMS e que suportam esse “saber convencionado.” Então é uma teoria suportada pelos seus próprios criadores.

Além disso, os psiquiatras são treinados nas universidades exatamente para aprenderem a medicar. Eles são educados dentro de um espectro profissional que indica drogas específicas, recomendadas para doenças bem definidas do cérebro, desequilíbrios químicos, distúrbios neurobiológicos, entre outros. Ou seja,  a “boa medicina”, como eu falo no livro, é aquela que encontra a causa para uma doença e portanto uma medicação adequada para tratá-la. Foi esse modelo que a psiquiatria abraçou e que buscou no cérebro um culpado para a aparente “causa” das doenças mentais.

7) Como você vê o aumento da medicação também em crianças, especialmente nos casos de TDAH – Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade, cada vez mais comuns atualmente?

Há “evidência” de que as drogas reduzem os sintomas de TDAH – o tamborilar dos dedos, inquietação, desatenção e outros, a curto prazo. Se fôssemos avaliar nesse sentido, as drogas parecem “funcionar” e portanto com a efetiva redução dos sintomas, medicar as crianças se tornou a norma e também a prática recomendada. Mas ninguém está se perguntando se sufocar esses movimentos das crianças nas salas de aula é realmente bom para elas, e claro, ninguém está preocupado com os efeitos a longo prazo.

Como os estudos para aprovação das drogas duram em média seis semanas, a avaliação fica restrita à diminuição dos sintomas de forma bastante imediatista. Mas ninguém está realmente se questionando se as drogas ajudam as crianças a se saírem melhor no longo prazo. O que se sabe é que as drogas funcionam ao serem mensuradas escalas de sintomas, tais como movimentos excessivos das mãos, pernas inquietas, etc. Os pesquisadores sabem que as drogas até pioram o desempenho das crianças a longo prazo, mas ao serem confrontados com esses resultados, eles voltam a sua atenção para os resultados imediatos e com isso, justificam e validam sua utilização. Então as políticas medicamentosas são muito bem recebidas pelo meio médico e social, e as drogas, aprovadas.

8) Seria possível traçar alguma associação entre este movimento medicamentoso e o financiamento para pesquisas exercido pela indústria farmacêutica?

A pressão exercida pela indústria farmacêutica é um dos problemas. O outro problema, ainda maior do que este, é que organizações ditas “independentes” são povoadas por psiquiatras formadores de opinião, que recebem milhares de dólares via pesquisas ou diretamente das próprias companhias farmacêuticas, para promoverem e disseminarem suas novas drogas. Então esses psiquiatras que são tidos como autoridades e líderes em seus segmentos, acabam “financiados” pelas grandes indústrias que se beneficiam em vendas, a partir da recomendação direta ou indireta do médico.

9) Ainda falando de TDAH, você acredita que o uso massivo de equipamentos eletrônicos tais como Iphones e Ipads possa estar contribuindo para esse aumento nos casos diagnosticados da doença em crianças?

Sim, com certeza. Basta perceber que uma criança que cresce tendo o hábito de ler livros terá um comportamento e uma mente diversa da criança que passa horas na frente de computadores, televisão ou jogos eletrônicos. A primeira aprende a manter o foco por longos períodos de tempo enquanto a segunda aprende a ser responsiva a múltiplos estímulos, de curta duração e de forma rápida, aprendendo a estar alerta a novos impulsos a qualquer segundo. Os cérebros dessas “novas” crianças está sendo treinado para ser hiperativo.

10) Você conhece a iniciativa o método de tratamento conhecido por “Open Dialogue” , criado para tratar episódios de psicose na Finlândia? Eles parecem ter algumas das melhores taxas no Mundo inteiro quando se pensa em readaptação dos pacientes, recidivas e sociabilidade a longo prazo. Será que isso poderia ser uma alternativa para tratar também TDAH, depressão, etc?

Eu viajei para Tornio e conheci o Open Dialogue quando estava escrevendo “Anatomia de uma Epidemia”. Enquanto meu maior interesse era pesquisar como eles utilizavam esse processo para tratar pacientes psicóticos, acabei descobrindo que eles usam o mesmo método para tratar pacientes deprimidos e até mesmo crianças que estão tendo dificuldades na escola, o que poderíamos chamar de TDAH.

É muito interessante perceber que eles veem todos os problemas como sendo oriundos de um contexto social, em vez de uma doença que afeta um indivíduo e não outro. Open Dialogue é um método e uma forma de terapia desenvolvidos para ajudar a curar não apenas os indivíduos mas também toda a sociedade que os envolve.

 11) Então qual seria o caminho a seguir, se queremos desenvolver um novo modelo, capaz de tratar as doenças mentais de uma maneira mais humanizada?

Eu acredito que o Open Dialogue promova um modelo. Trata-se de pensar em dificuldades psiquiátricas como consequência de dificuldades de adaptação a um contexto social. Portanto se tentarmos melhorar esse contexto social e também cuidarmos das pessoas para que possam tolerar melhor essa realidade, talvez tenhamos uma boa chance de sucesso.

Nós podemos utilizar drogas como acessórios temporários neste processo, mas entendendo que elas não estão curando nada e, mais do que isso, a longo prazo elas tendem a piorar os resultados daquilo que elas deveriam tratar. Mas sim, é verdade que elas promovem algum alívio a curto prazo e esta é a armadilha paradoxal do que estamos observando acontecer atualmente.

O ponto mais importante é que precisamos enterrar o paradigma atual de tratamento mental, no qual é dito que existem doenças mentais ou desequilíbrios químicos dentro dos cérebros de alguns indivíduos, e que podem ser consertadas de alguma forma por remédios. Esse paradigma é falso e precisamos substituí-lo por um novo, que seja humilde o suficiente para reconhecer que a mente humana é extraordinariamente complexa, que seu modo de funcionamento ainda é misterioso para nós, e que, portanto, fingir que podemos consertá-la apenas com um remédio é de uma extrema arrogância, sem precedentes. As pessoas existem, vivem e se relacionam dentro de um contexto social e ambiental. Elas respondem a essa sociedade e a esse ambiente. As concepções psiquiátricas dos problemas mentais e de seus tratamentos deveriam começar a partir desse entendimento.

Esta entrevista foi originalmente postada em meu blog →

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Ilan Segre é Psicólogo Clínico formado pela USP e pós graduado em Fitoterapia pela Fac. Mario Schenberg. Ajudou a fundar o NUMIER – Núcleo de Medicina Integrativa do Hospital Emilio Ribas e é autor do livro Terapia Integrativa (ed. Ágora), 2012. Complementou sua formação como psicólogo residente no Gupta Yogic Hospital (Lonavala), Jipmer Hospital (Pondicherry) e no Nisargopchar Ashram (Pune), na Índia. Atualmente atende em seu consultório em São Paulo, unindo psicoterapia com técnicas respiratórias para tratamento de sintomas. Escreve regularmente no seu site www.vidaintegrada.com.br.