Tenho o prazer de trazer ao público brasileiro, em particular aqueles que seguem o nosso site do Mad in Brasil (MIB), uma entrevista entre dois colegas que tive a oportunidade de recentemente conhecer em Gotemburgo (Suécia), na reunião do Instituto Internacional para a Retirada das Drogas Psiquiátricas (International Institute for Psychiatric – IIPDW). O entrevistado é o Dr. Magnus Hald, psiquiatra, Diretor da Divisão de Saúde Mental e Abuso de Substância, na Noruega. Quem o entrevistou foi Auður Axelsdóttir, terapeuta ocupacional, Islândia. A entrevista foi dada, muito recentemente, em uma estação de rádio de grande audiência na Islândia.
Eu fiz a transcrição não literal dessa entrevista. Mas você poderá ouvir na íntegra o conteúdo da entrevista clicando o link que está no término desta matéria.
Antes de apresentar o conteúdo da entrevista, algumas informações importantes que ajudarão a melhor compreender o seu contexto.
Na semana seguinte da reunião do IIPDW, em Gotemburgo, houve na Noruega o 24º. Encontro da Rede Internacional para o Tratamento da Psicose. Entre os diversos temas, foi discutido o trabalho e o desenvolvimento da psiquiatria sem drogas na Noruega. O colega Magnus Hald é um dos protagonistas de uma experiência bastante inovadora, relatada por Robert Whitaker e postada aqui no MIB. Trata-se de uma iniciativa do Governo da Noruega, através do seu Ministério da Saúde. É, portanto, uma política de saúde do Estado Norueguês. Que consiste em que é obrigatório que sejam oferecidas na rede de assistência em saúde mental nacional o direito a ter a opção de tratamento livre de drogas psiquiátricas. É algo fortemente inovador no cenário internacional da assistência psiquiátrica.
Na próxima última semana de Outubro, nos dias 29, 30 e 31, no Rio de Janeiro, na Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP/FIOCRUZ), haverá o III SEMINÁRIO INTERNACIONAL A EPIDEMIA DAS DROGAS PSIQUIÁTRICAS. O foco neste ano são os dois pilares do ‘modelo biomédico’ da Psiquiatria: o diagnóstico psiquiátrico e o tratamento psicofarmacológico.
Essa entrevista com o Dr. Magnus Hald, narrando com detalhes a experiência norueguesa de tratamento sem drogas psiquiátricas, é uma boa ocasião para a abertura de novos horizontes para a assistência em saúde mental em nosso país.
A ENTREVISTA
Atendendo à demanda dos usuários
Foi decidido, em 2016, que teríamos uma enfermaria livre de drogas no Hospital da Universidade de Tromsø, em que eu era o Diretor da Divisão de Saúde Mental e Abuso de Substâncias. Isso foi em 2016. E em 2017 eu abri as portas para o inicio do Programa.
Isso na verdade começou por iniciativa dos usuários, por cinco organizações de usuários, demandando opções por liberdade para tratamento sem drogas. Portanto, foi uma iniciativa dos usuários.
Deveríamos ouvir as vozes dos pacientes, uma demanda do Ministério da Saúde. E as organizações dos usuários se uniram. É por isso que o Ministério da Saúde decidiu que deveríamos ter isso no país.
Houve uma forte oposição dos psiquiatras, e ainda há hoje uma forte pressão contra essa iniciativa. Pensam que isso não é correto, que é uma irresponsabilidade. Eles (psiquiatras) acreditam que não deve haver esse tipo de opção [tratamento sem drogas psiquiátricas].
Eu penso que é ainda um começo.
Em muitas partes do mundo isso está ocorrendo fora dos locais da Medicina, mas aqui faz parte do nosso sistema público de saúde.
Os problemas conectados com as drogas psiquiátricas
Eu penso que há diferentes desenvolvimentos da Psiquiatria. Eu, da minha parte, não considero ser difícil apoiar essa direção que estamos tomando. Eu trabalho como psiquiatra desde os anos 70. E tenho visto que há muitos problemas conectados com as drogas. Na Noruega já temos muitas unidades livres de drogas. É isso um problema? Por que deveria ser? É difícil dizer isso. É um bom debate.
O que nos leva a não apenas debater o não uso de drogas, mas também, ao usá-las, discutir o quanto. Eu penso que a maioria dos psiquiatras irão concordar que nem todos os pacientes podem ter um bom uso das drogas psiquiátricas. O que acontece quando você vê que um paciente não está tendo um bom uso das drogas? Ao invés de interromper, em geral o que se faz é prescreve mais e mais drogas.
Na agenda dos Direitos Humanos
[o direito a ser tratado sem drogas psiquiátricas] Eu concordo muito com isso. Eu desenvolvo isso há mais de 2 anos, e vejo que ainda há um longo caminho a percorrer para que possamos oferecer um serviço realmente bom para as pessoas. Mas penso que entre as principais coisas que alcançamos [ com a experiência em Tromsø] é que nós colocamos isso na Agenda. Quero dizer, que as pessoas passam a ver isso. Que nós temos que debater essa Agenda.
Ainda que no sistema hospitalar (…)
Sim. Isso é no sistema hospitalar nosso. É uma enfermaria [livre de drogas psiquiátricas] ao lado de outra enfermaria. É um grande desafio. Porque é um desafio para a nossa enfermaria.
A questão é como não conter pacientes (…)
Na Noruega somos obrigados a dar um Consentimento Informado e Esclarecido. E o paciente deve ter condições para dar o Consentimento. E se alguém é considerado como sendo incapaz para dar o Consentimento, ele não pode ter um tratamento voluntário. Assim sendo, como dar conta dessa questão em uma Unidade livre de drogas?
Como funciona a Unidade?
Tentamos fazer um planejamento individualizado, para cada pessoa. Tentamos fazer esse plano com a rede social do paciente, assim como com a rede social dos profissionais. Mas pode ser apenas com o paciente e em sua rede social natural de vida. E se tenta sempre educar as pessoas da rede natural do paciente.
Geralmente as pessoas pedem voluntariamente para entrar no Programa. Recebemos a referência vinda de um Centro Especializado de Psiquiatria ou de psiquiatras privados. Em geral, o próprio paciente é quem preenche ele próprio o pedido: “o que você quer ao vir para este Programa?”
Pode haver diferentes tipos de coisas que as pessoas queiram alcançar. Por exemplo, muitas e muitas pessoas querem reduzir o seu consumo de drogas. Então chegam já fazendo uso de drogas e nós iniciamos um programa de redução e de término. Nós iremos tentar desenvolver com o paciente um Programa de redução das drogas. E isso pode durar algum tempo, como de 1 ano a 2 anos. Pelo menos com aqueles que já estão fazendo o consumo de drogas há algum tempo.
Nós damos suporte ao que querem fazer. Esse é um grande desafio: dar suporte às pessoas que estão em processo de redução das doses usadas! Esse é um grupo.
Mas há um outro grupo dos que querem estar na enfermaria sem fazer uso algum de drogas psiquiátricas. E temos que construir um Programa para essas pessoas.
E há algumas outras pessoas que não estão em consumo pesado de drogas psiquiátricas, que entram em contato conosco porque necessitam ser hospitalizadas e não querem ir para um lugar onde serão tratadas forçosamente com medicamentos.
É muito interessante ver que há diferentes tipos de pessoas que querem fazer tratamento livre de drogas psiquiátricas. Isso é um desafio.
A equipe
Há um médico em formação em psiquiatria. Há um psicólogo. 6 enfermeiro(a)s. 2 fisioterapeutas. 2 ex-pacientes com experiência de vida de retirada das drogas psiquiátricas. Há estudantes de psicologia. Há 2 arte-terapeutas. 1 terapeuta ocupacional. Sei que no total somos 20 pessoas. Há pessoas para o trabalho durante o dia. Há aqueles para a noite. Há o trabalho não apenas para os pacientes na enfermaria, mas fora, com reuniões com as redes sociais. Há vezes que temos que viajar por longas distâncias, até mesmo de avião. Há vezes que as reuniões são feitas por Skype, com os pacientes, os profissionais e a rede social dos pacientes, porque estão em diferentes partes da região.
A orientação teórica
Eu penso que em Tromsø as pessoas não dizem que se trata de um modelo de assistência baseado no Diálogo Aberto. Temos tido muita colaboração ao longo de muitos anos [com os colegas da Finlândia]. Eu penso que estamos trabalhando mais com “Processos Reflexivos” ou “Equipes Reflexivas”. [Uma metodologia desenvolvida pelo norueguês Tom Andersen].
O histórico de tratamento psicofarmacológico
A maioria que nos procura tem uma história de sucessivas tentativas de deixar de tomar as drogas psiquiátricas e de ouvir que mexer com a medicação pode provocar o retorno dos sintomas. Que ouviram das equipes que as ‘sensações’ ruins retornarão. E que sabem que esse processo não é fácil, a partir da sua própria experiência. Que se os sintomas retornarem, o que farão?
A permanência no Programa
Assim é que chegam. E ficam 2 a 3 semanas. Às vezes, vindo 3 vezes durante o ano. É feito um Plano individualizado.
Se houver necessidade de retorno [sintomatologia insuportável] há sempre um leito disponível, para qualquer necessidade (demanda).
Apenas creio eu que tivemos apenas uma paciente que permaneceu por meses, porque não queria de modo algum fazer uso de drogas, e que apresentava muitos sintomas, que lhe eram impossíveis de ser manejados. Então ela permaneceu na enfermaria, com uma recuperação muito lenta, em um processo que durou muito tempo. Sua família tinha dúvidas se seria ou não uma boa ideia permanecer sem drogas. Se ela estaria ou não melhorando (…) Porém, a grande maioria fica apenas por um tempo muito limitado.
Os resultados (follow-up)
Os resultados? Muita gente vem conseguindo muito bons resultados. Mas o nosso Programa está funcionando há apenas 2 anos. Nós ainda não temos uma experiência de longo prazo.
Começamos a fazer uso das ‘tiras’. A indústria farmacêutica não produz doses com as quais se possa fazer a redução de uma forma segura e eficaz. Tentar dividir esses medicamentos é algo muito difícil! E nem sempre isso é possível.
Na Holanda, há uma farmácia que produz as ‘tiras de afunilamento’. Nós as compramos da Holanda. Há muita burocracia envolvida aqui na Noruega para importar medicamentos. O que temos que fazer é preencher muitos e muitos pedidos, e argumentar muito. Cada vez mais fazemos uso das ‘tiras’. Eu penso que sai muito caro.
Mas temos que fazer isso. Porque quando se usa as ‘tiras de afunilamento’ o paciente não precisa se preocupar com qual o medicamento ele deve tomar, quantos medicamentos deve ingerir, qual o ritmo do processo de redução. Porque está tudo em uma ‘tira’. Basta tomar a dose da ‘tira’ correspondente ao dia.
[Por exemplo] Em 3 meses você sai de 50 mg. de Seroquel até chegar a 0 mg. Isso ocorrre em apenas 3 meses.
A dinâmica do Programa
4 vezes na semana temos as chamadas ‘recovery workshops’. Cada um percorre as diferentes equipes, como ‘medicação psiquiátrica’, ‘vida cotidiana’, ‘vida sexual. As pessoas compartilham as suas experiências.
3 vezes na semana há um ‘treinamento físico’, com os fisioterapeutas. Em grupos, mas que também pode ser individual. Você sabe, as pessoas têm altos e baixos, muitas coisas ocorrendo em seus corpos. Consideramos as atividades físicas essenciais para o êxito do tratamento.
Há ainda arte-terapia em grupo, 1 vez por semana, e que também pode ser individual, conforme a demanda. Também essencial para o bom êxito.
Há também as reuniões com as redes sociais dos pacientes.
Sobre a ‘resistência’ dos colegas (psiquiatras)
Estou acostumado.
Acho que o debate é fundamental.
Acho importante que saibamos que existem diferentes opções, diferentes possibilidades.
Penso que devemos lutar contra os regimes de opressão.
Que as diferenças não são perigosas.
Que devemos fazer diferentemente do que já estamos acostumados. As pessoas não querem que as coisas sejam sempre como já são.
Há algumas pessoas que querem fazer uso das drogas. E há outras pessoas que não querem fazer uso de drogas. Temos que respeitar a ambas.
Temos que respeitar, por exemplo, aquelas pessoas que querem parar de fazer uso das drogas de uma vez só. E as outras que querem reduzir lentamente. É a nossa experiência.
Futuro
Que a experiência se aprofunde.
Eu quero desenvolver um Programa de pesquisa. E que seja adequada à experiência que estamos desenvolvendo. A experiência não pode ser pesquisada usando o método do duplo cego randomizado, para dar um exemplo. Esse tipo de metodologia não é adequada à clínica.
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Como eu disse no início desta matéria, a transcrição da entrevista que fiz não é literal. Portanto, é possível que tenha omitido algo importante, involuntariamente.
O MIB é um espaço informativo. Mas, sobretudo, um espaço destinado a despertar um debate e a buscar pela construção de alternativas ao paradigma psiquiátrico hoje dominante entre nós, seja lá fora seja aqui no Brasil.
E mais uma vez renovo o convite a participar do III SEMINÁRIO INTERNACIONAL, na ENSP/FIOCRUZ. Você poderá acompanhar ao vivo tudo o que será apresentado no SEMINÁRIO, pelas redes sociais na Internet. Informações mais detalhadas estarão disponibilizadas aqui e na página do Facebook do Mad in Brasil.
E para quem interessar, clique aqui para ouvir a entrevista na íntegra →
Olá! Sou Educadora Especial e gostaria de saber como você visualiza que as ações desse Programa poderiam ser utilizadas para as crianças com TEA , por exemplo. Muitas são usuárias de medicamentos,os quais a sociedade acredita serem indispensáveis para seu convívio social “adequado”. Agradeço a oportunidade de informação através da entrevista. At.te – M.Angelina