Psicofármacos e Mulheres brasileiras: sobre o que nos fala essa relação?

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Mulheres e Psicofármacos. Esta combinação que não se estreia nas páginas deste artigo encontra nos meandros da história muitos caminhos e descaminhos. Entre tentativas de cura, terapêutica e cuidado, a verdade é que muito se foi produzido no palco da patologização e medicalização de corpos considerados femininos e, especialmente, daqueles que, sendo femininos, não foram reconhecidos como tal, e, logo, seguiram adoentados pela ciência vigente.

Vale lembrar que nos primeiros escritos psiquiátricos já encontrávamos publicações como Système Physique et Moral de la Femme, de Roussel, de 1755, Rapports du Physique et du Moral de L’Homme, de Cabanis, de 1803, e Histoire Physiologique de la Femme, de Lachaise, de 1825. Para os autores citados, as diferenças entre homens e mulheres se expressariam organicamente e apontariam para a inferioridade feminina e predisposição para o enlouquecimento. A noção de que “na medida em que são mulheres, são também doentes e são doentes porque são mulheres” (ROHDEN, 2001, p. 30) ocupou os tratados psiquiátricos dos séculos XVIII e XIX através de estudos que se voltavam para ossos, pélvis, crânios e sangue de mulheres, a partir do interesse no orgânico louco “feminino” (ROHDEN, 2001).

Ao relacionar sexo e gênero, pelo viés dos órgãos genitais, a medicina passou a definir cientificamente a lógica cisgênera. Ou seja, o padrão de normalidade restringiu-se às pessoas que se identificam com o gênero a elas designado, numa relação entre vagina e sexo feminino, assim como pênis e sexo masculino. Desta forma, patologizou-se a homossexualidade e a transexualidade, classificado-as como desvio sexual e distúrbio mental. Apenas na década de 1990 ser gay, lésbica ou bissexual deixou ser considerado uma patologia e somente no ano de 2018 a OMS retirou a transexualidade da lista de doenças mentais. Apesar disso, a medicalização de uma sexualidade doente ainda se faz presente, como nos lembra v, 2015.

Vale pontuar que os métodos que definiram a normalidade e a anormalidade femininas, pela Psiquiatria, aproximaram- se da ciência racial, tanto em relação aos seus recursos quanto às superioridades do corpo não só do homem, mas também do branco. As hierarquias raciais e de gênero, afirmadas por determinadas medicinas, construíram e reforçaram estereótipos de lascívia, perversão e desordem mental relacionadas às mulheres negras (CUNHA, 1989).

O fortalecimento da lógica médica hegemônica sobre as mulheres ganha força, nos dias atuais, através da medicalização. Neste processo amplo, situações como dificuldades econômicas e sociais, questões próprias da vida individual ou coletiva passam a ser definidas e tratadas como condições médicas. Apesar de não se reduzir ao uso de medicamentos, este pode ser um importante analisador da medicalização de sofrimentos, queixas e demandas sociais de mulheres, muitas vezes se baseiam em certos padrões relacionados ao “feminino”.

Já no início do século XX, propagandas de fármacos relacionavam a imagem da mulher  à geradora e cuidadora do lar, estando sua sanidade física e mental relacionada ao útero e aos ovários sadios.  O tônico “A Saúde da Mulher” prometia a ação contra doenças e a rápida suspensão da menstruação e regulação dos ciclos menstruais. Os anúncios garantiam, inclusive, que crises conjugais poderiam ser amenizadas, uma vez que atitudes intempestivas, consideradas típica das mulheres, estariam estabilizadas graças ao controle de seu corpo feminino. O organismo vulnerável e a ciência como moderadora dessas apreensões era a ideia a ser vendida:

“Mas esquecem as Senhoras de que si por um lado a Natureza estabeleceu para a Mulher um organismo delicado, sujeito permanentemente a complicações de toda a sorte, a Sciencia põe a seu alcance os meios de corrigir-lhe as irregularidades e prevenir os soffrimentos. Um dos meios, por exemplo, que está ao alcance de todas as mulheres, de todas as idades: o uso d’ A Saude da Mulher.”

(A SAÚDE DA MULHER apud CUNHA; NASCIMENTO, 2007).

Essa proposta ainda não se tornou obsoleta. Mastroianni et al (2008), em pesquisa sobre propagandas de medicamentos psicoativos no país, revelaram a construção da depressão e da ansiedade como sintomatologias femininas. Nas propagandas houve predomínio de mulheres (62,8%), sendo estas quatro vezes mais frequentes que os homens. Nestas, eram retratadas uma maioria de jovens adultas, brancas, em atividade de lazer, em suas casas ou em contato com a natureza. Os autores concluíram que a mensagem transmitida era a de que os medicamentos tratam sintomatologias de desconforto do dia-a-dia, induzindo a um apelo da prescrição medicamentosa. E aqui podemos somar: relacionando o bem viver à juventude e à branquitude.

A apresentação de fármacos como soluções de tratamento para o orgânico feminino louco vem ganhando dimensões notáveis. Carvalho e Dimenstein (2003) realizaram um levantamento de estudos que se voltavam para o tema, realizados na década de 1980 e 1990, e destacaram dados que se repetiam em diversos locais do país: mulheres como maioria de consumidoras. Aproximando-nos de pesquisas mais recentes, Prado, Francisco e Barros (2017) apontaram que o uso dos psicofármacos foi 48% maior em mulheres. Destes, 52,6% eram medicamentos antidepressivos.

Assini e Back (2017), voltando-se para farmácias privadas em Monte Carlo (SC), concluíram que as mulheres representavam 68% das usuárias. Pesquisando em serviços públicos de saúde, Mendonça e Teixeira (2005) constataram que as mulheres representaram 63,4% das usuárias desses medicamentos. Diehl, Manzini e Becker (2010) apontaram para que as mulheres representam 81, 5% das usuárias de medicação antidepressiva em um Centro de Saúde em Florianópolis. Carlini et al. (2006), em inquérito realizado em 108 cidades brasileiras, verificou que 69% das pessoas que faziam uso de medicação psicotrópica eram mulheres, sendo estas as principais consumidoras de medicamentos benzodiazepínicos sem prescrição médica. Já Rabelo (2011), em duas cidades de Goiás, observou que às mulheres eram receitadas 2,07 vezes mais ansiolíticos do que aos homens, uso que se mantinha por volta de 9 a 10 anos. Na pesquisa de Mendonça et al. (2008), as mulheres também consumiam duas vezes mais ansiolíticos que os homens, número que aumentava conforme o avanço da idade.

Nas entrevistas realizadas por Carvalho e Dimenstein (2003) com usuárias e médicos, a eliminação dos “sintomas” apareceu diretamente vinculada com a medicação, mesmo que reconhecido que os sofrimentos se referiam às questões sociais ou familiares. Para os profissionais entrevistados por Oliveira et al. (2011), a medicação era entendida como “coisa de mulher”, e como o que poderia manter a tranquilidade, chegando mesmo à conclusão de que: “a cachaça está para o homem assim como o Diazepam está para a mulher”. Já na pesquisa de Mendonça et al. (2008) os médicos associavam a velhice das mulheres a uma fragilidade emocional, sendo o remédio necessário para que a vida doméstica fosse mantida e se evitassem rancores, ressentimentos e se promovesse a harmonia familiar.

Para ginecologistas e obstetras, entrevistados por Gilbert et al. (2006), as mulheres utilizariam dos sofrimentos mentais ou “adoeceriam” o próprio corpo para fugir de obrigações sociais e familiares ou mesmo como simulação a fim de se obter atenção. Nas falas dos profissionais, as mulheres eram marcadas por um “drama, mas também foi usual a figura da “promíscua”. Nos dois casos, seria papel do médico manter a sexualidade das mulheres sob controle, a partir de um equilíbrio hormonal, medicação psiquiátrica ou mesmo conselhos.

Essas pesquisas nos aproximam de um importante processo de medicalização como fio condutor de uma lógica de atenção tecnicista, dicotomizada e fragmentada. Como chamam atenção as pesquisas citadas, muitas vezes, as mulheres que buscam os serviços de saúde em busca de medicação têm demandas graves de emprego, moradia, salário justo, educação, assim como procuram o setor médico com queixas relativas a conflitos cotidianos e familiares. Em muitos casos, a medicação acaba sendo uma resposta rápida e superficial até mesmo a sofrimentos vinculados ao racismo (RABELO, 2011).

As ponderações sobre o racismo são fundamentais em nossa discussão, principalmente considerando a escassez de estudos que se voltem para o processo de medicalização referente às mulheres negras e travestis ou transexuais, apesar do aumento dos estudos sobre o público feminino. Mesmo no material sobre a medicalização da vida, construído pelo Ministério da Saúde (2018), os aspectos referentes a raça/ etnia não ganham centralidade.

Nesse contexto, o estudo de Medeiros Filho et al (2018) merece destaque ao se perguntar sobre a questão racial em uma pesquisa sobre o uso de psicofármacos em uma USF. Os pesquisadores desvelaram que, entre os usuários, houve uma prevalência de mulheres pretas e/ou pardas, com baixa renda e escolaridade, que desempenhavam atividades laborais em casa e com adoecimento crônico.

Salvo o estudo supracitado e algumas outras exceções, de maneira geral, os dados sobre as mulheres racializadas e o uso desses medicamentos ganham destaque apenas em pesquisas que se voltam para instituições asilares, prisionais ou de cumprimento de medidas socioeducativas [1]. O  silenciamento em relação às mulheres negras, mas também em relação às mulheres travestis e transexuais e seu cotidiano patologizado  nos convoca:  com que mulheres de fato nos preocupamos quando falamos de medicalização do corpo feminino?

O aumento expressivo de psicotrópicos e ansiolíticos por usuárias da rede de saúde pública brasileira nos aponta para que as consumidoras são, em sua maioria, mulheres pobres e negras, a quem o Estado não chega pelas políticas públicas de assistência, saúde, educação, trabalho, cultura e lazer, mas a quem rapidamente apresenta seus braços através de instituições asilares e alto índice de uso de medicamentos. Mulheres que vivem as duplas jornadas de trabalho, e que são, atualmente, as principais chefes de família, responsáveis pelas crianças, doentes e idosos. Mulheres que, quando habitantes de territórios de favela, vivenciam a violência cotidiana e acompanham seus filhos vítimas diretas ou indiretas do tráfico ou do Estado repressor e apenas encontram o remédio psiquiátrico como resposta em serviços públicos cada vez mais sucateados e precarizados.

Acionamos a interseccionalidade, forjada pelas feministas negras [2], e importante disparador conceitual de feministas indígenas, comunitárias e do sul global. Critica-se, aqui, qualquer tentativa de redução das mulheres -em suas experiências de opressão, exploração e agências -a uma homogeneização. Marcadas pelas relações de gênero, mas também de raça, classe, orientação sexual, identidade de gênero, religiosidade, estatuto migratório, idade, entre outras, a patologização de mulheres se apresenta interseccionalizada nas práticas e ações psiquiatrizantes, diferenciando mulheres de homens, mas também as mulheres entre si, através de relações hierarquizadas que se acirram quanto mais sofisticado se torna o método de medicalização que ganha materialidade nos corpos daquelas sobre quem recai.

Referências Bibliográficas

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Obs. Este artigo sintetiza problemáticas e debates apresentados nos artigos Pereira e Amarante (2017) e Pereira (2018)

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Notas de pé de página:

[1] Importantes estudos são os de Magno (2019) e Arruda (2017)

[2] A autoria do conceito é referenciada a feminista negra estadunidense Kimberlé Crenshaw, que o utilizou pela primeira vez no final da década de 1980. Apesar disso, vale lembrar que outras ativistas e teóricas já apontavam para a importância de se considerar as relações raciais nos debates sobre gênero, a exemplo das brasileiras Lélia Gonzalez, Beatriz Nascimento, Sueli Carneiro, entre outras.

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