Os sentidos e as práticas em saúde mental produzidos por comunidades quilombolas do estado de Rondônia são o tema de um artigo publicado pela revista Psicologia: ciência e profissão. Os autores Eraldo C. Batista e Katia B. Rocha realizaram entrevistas abertas e rodas de conversa com 18 participantes, todos pertencentes a duas comunidades quilombolas do Vale do Guaporé, de ambos os sexos. A análise do material foi realizada através da proposta da Análise do Discurso.
As comunidades quilombolas apresentam uma identidade social própria, sendo remanescentes dos antigos quilombos. São considerados pelo Ministério da Saúde como pertencentes a um grupo minoritário dentro da população negra. As comunidades estão espalhadas por todo o Brasil e são muito variadas, podendo ocupar áreas rurais ou urbanas. Principalmente as comunidades quilombolas que ocupam áreas rurais vivem em um certo isolamento geográfico e social em relação à sociedade urbana. O que implica em desigualdades sociais e de assistência à saúde, ainda mais graves no caso das comunidades estabelecidas na região amazônica.
As comunidades quilombolas amazônicas apresentam algumas especifidades em relação as demais espalhadas pelo restante do Brasil. A partir do fim do poder dos jesuítas sobre os índios, aumentou o tráfico de Africanos para aquela localidade, resultando em quilombos formados por negros e índios. Baseado nisso, a relação das comunidades quilombolas com a população indígena sempre foi forte. Os autores ainda apontam a importância do estudo, visto que, existe uma escassez de publicações que abordem a questão da saúde mental da população quilombola.
A partir da análise do material foram organizados três repertórios interpretativos: reconhecimento e formas de lidar com os sintomas psiquiátricos; recursos utilizados pelos moradores da comunidade no cuidado em saúde mental: ervas e plantas medicinais e práticas religiosas; consumo excessivo de bebidas alcoólicas como problema de saúde mental.
Foi possível perceber no diálogo com os quilombolas que a sua percepção sobre o que é “doença mental” está baseada em saberes médicos, onde a doença mental é entendida principalmente como desordem emocional, assim como também está relacionada ao senso comum, associado principalmente àquelas pessoas que estão “fora da realidade”.
Algo que se destacou foi a utilização do termo “banza” e “landú” para descrever pessoas com sintomas identificados com o diagnóstico de depressão. Parece ser uma variação do termo “banzo” que se refere ao estado de tristeza causada pela desculturação, nostalgia e saudade da África, descrito pelos africanos escravizados recém chegados ao Brasil. Os participantes relatam que não se tomam medidas com relação a esses comportamentos, porque “logo passa”. Mas também relatam ser comum se isolar no meio da mata como forma de aliviar os sofrimentos.
“Como afirmam Teixeira e Xavier (2018), as matas foram o elemento principal de continuidade da vida após a escravidão, percebidas pelas comunidades negras como uma extensão da própria casa, e os vínculos existentes entre os membros das comunidades guaporeanas com o espaço natural florestal e fluvial são profundos.”
As plantas e chás são invocados, assim como as “rezas”, como sendo os principais tratamentos para saúde. Quando em contato com profissionais de saúde, o principal tratamento estabelecidos por estes são os medicamentos farmacológicos. No entanto, as práticas tradicionais ainda são as principais protagonistas na comunidade. Com isso, o rezador (a) possui uma relevância ímpar, sendo praticado principalmente por mulheres e ensinado de geração para geração.
“A Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN) destaca em seu texto o reconhecimento dos saberes e práticas populares de saúde, sobretudo os saberes de matrizes africanas.”
Os autores também destacam que o consumo de álcool parece ter uma conotação cultural e de sociabilidade nas comunidades. Alguns entrevistados relatam que o consumo de álcool é a única diversão disponível. Também foi destacado que o aumento da infraestrutura e acesso à cidade são facilitadores do maior consumo de bebidas alcoólicas. Além disso, pesquisas realizadas em outras comunidades quilombolas destacam o uso abusivo de álcool como um problema e agravo à saúde. Alguns autores associam isso à questões de relações de gênero, assim como ao racismo sofrido pelos quilombolas.
Como conclusão, o artigo relata algumas limitações da pesquisa, como o fato de realizar entrevistas apenas com duas das cinco comunidades quilombolas existentes no Vale Guaporé. Além disso, os autores esperam que essa pesquisa auxilie no enfrentamento das desigualdades e na redução da vulnerabilidade social dessas comunidades, de forma que as políticas públicas levem em consideração e respeitem os aspectos sócio-históricos e culturais dessas comunidades.
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BATISTA, Eraldo Carlos; ROCHA, Katia Bones. Sentidos e Práticas em Saúde Mental em Comunidades Quilombolas no Estado de Rondônia. Psicol. cienc. prof., Brasília , v. 39, n. spe, e222123, 2019 . Disponível em → (link)