Demandas de Saúde Mental em Unidades do Degase

Estudo analisa quais demandas de saúde mental são consideradas pelos profissionais de duas unidades socioeducativas do Rio de Janeiro.

0
1734

A demanda de saúde mental em duas unidades socioeducativas do Rio de Janeiro é o tema do artigo publicado na revista Ciência & Saúde Coletiva. O objetivo é analisar os discursos dos profissionais de saúde mental das unidades através de entrevistas, identificando quais necessidades dos adolescentes internados são consideradas demandas de saúde mental.

Alguns dados chamam a atenção, entre os adolescentes em conflito com a lei é recorrente os diagnósticos de transtorno mental, chegando até mesmo, em alguns estudos, a 100% dos internados apresentarem algum tipo de diagnóstico psiquiátrico.

O Estatuto da criança e do adolescente prevê a medida socioeducativa para adolescentes em casos de atos infracionais. No Rio de Janeiro a gestão do sistema socioeducativo é realizada pelo Departamento Geral de Ações Socioeducativas (Degase). Cada unidade deve ter uma equipe de saúde mental, a qual deve realizar ações de prevenção de agravos, escuta subjetiva e articulação com a rede de saúde mental. No entanto, as unidades vem enfrentando dificuldades, especialmente em relação a superlotação.

As autoras do artigo, Débora Stephanie Ribeiro, Fernanda M. L. Ribeiro e Suely F. Deslandes, entrevistaram profissionais de saúde mental de duas das seis unidades existentes no Rio de Janeiro, uma feminina e outra masculina. No total foram nove entrevistas semi estruturadas, realizadas em 2016. Os profissionais participantes foram 4 psicólogos, 2 assistentes sociais, 1 psiquiatra, 1 musicoterapeuta e 1 terapeuta ocupacional. Para a análise das entrevistas utilizou-se a Análise de Discurso Crítica (ADC).

A partir das entrevistas, notou-se que os maiores encaminhadores para a equipe de saúde mental é a equipe de medida. Formada por psicólogo, pedagogo e assistente social, são responsáveis por acompanhar os processos judiciais dos adolescentes e responsáveis pela elaboração de relatórios para as audiências.

Com a análise das entrevistas foi possível identificar quatro grupos discursivos, discurso psiquiátrico, discurso da reforma psiquiátrica, discurso dos determinantes sociais e o discurso institucional, relacionados aos “maus” comportamentos dos jovens.

O primeiro bloco discursivo apresenta uma forte intertextualidade com o discurso psiquiátrico, associando as demandas de saúde mental às mudanças bioquímicas no cérebro durante a adolescência. Por outro lado, o segundo bloco discursivo, apresenta uma negação do transtorno psiquiátrico, se preocupando com a não rotulação dos adolescentes, ao mesmo tempo em que reconhecem um sofrimento mental intenso.

Já o terceiro bloco discursivo está relacionado à situação de pobreza dos adolescentes, falta de supervisão das famílias e ausência de proteção social por parte do Estado. Por fim, o quarto bloco discursivo associa problema disciplinares a demandas de saúde mental. O uso de drogas ilícitas também apareceu nas entrevistas como demanda de saúde mental, no entanto, também aqui os discursos se alternam.

“É…enfim, eu acho que o que mais chega, é, garotos que dão problema. Aí você ai ver, na visão de quem dão problema?” (Entrevista 7)

“Numa casa super lotada, é fácil um garoto dar problema, entendeu. O que que é dar problema? O que que é dar problema numa unidade super lotada? é tirar a paz dos funcionários […]” (Entrevista 7)

As autoras concluem que existem concepções diferentes coexistindo no campo da saúde mental, porém o desafio é se aproximar do sofrimento sem se ligar a categorias pré-determinadas, com uma compreensão flexível e diversa, assim como nas estratégias de intervenção. É importante destacar a ausência de outros profissionais no encaminhamento, como os agentes socioeducativos. Além disso, há conflitos entre as equipes de medida e as equipes de saúde mental, quando a equipe de medida não sabe o que fazer quanto ao “mau” comportamento de um adolescente ela faz o encaminhamento para a equipe de saúde mental.

Talvez o fator mais importante encontrado na pesquisa é o pouco acesso direto dos adolescentes à equipe de saúde mental para apresentarem suas próprias demandas e como isso é atenuado nos discursos dos profissionais. Não seria importante que os principais interessados tivessem acesso livre a equipe de saúde mental, sem necessariamente passar pela equipe de medida?

•••

RIBEIRO, Débora Stephanie; RIBEIRO, Fernanda Mendes Lages; DESLANDES, Suely Ferreira. Discursos sobre as demandas de saúde mental de jovens cumprindo medida de internação no Rio de Janeiro, Brasil. Ciênc. saúde coletiva,  Rio de Janeiro ,  v. 24, n. 10, p. 3837-3846,  Oct.  2019. (Link)

Artigo anteriorPsiquiatria e sistema prisional
Próximo artigoDisfunção Sexual Pós-Uso de Antidepressivos
Graduada em Psicologia pela UERJ, especialista em Terapia Familiar pelo IPUB/UFRJ, com ênfase em saúde mental. Pesquisadora auxiliar do Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz Antonio Ivo de Carvalho (CEE/Fiocruz) e Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial(LAPS/ENSP/Fiocruz) Produtora e apresentadora do podcast Enloucast. Além de atuar como psicóloga clínica. Áreas de interesse: Saúde Mental, Terapia Sistêmica, Diálogo Aberto, Construcionismo Social, Medicalização e Patologização da vida