O Poder Opressor do Modelo Biomédico em Psiquiatria

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Uma leitura atualizada de Paulo Freire em diálogo com os aporte de Iván Illich é a proposta do artigo publicado pela Revista Ideação. O objetivo é fundamentar uma prática em saúde mental que os autores vem chamando de arqueologia da dor. Tal artigo nasce da constatação da colonização e dominação dos sujeitos psiquiatrizados por parte do saber biomédico, a fiscalização da gestão política do sofrimento, o mandato neoliberal do capacitismo e uma consciência ingênua que não permite o agir político.

“Com relação ao sofrimento psíquico e particularmente a dolências como a esquizofrenia, que a força constitutiva dos aspectos citados descansa em uma série de hipóteses de signo biomédico que a duras penas encontra respaldo nas evidencias científicas disponíveis.”

As relações de poder que amparam o saber biomédico se materializam na hierarquia e unidirecionalidade do poder especializado diante dos saberes populares, o que vem ocasionando uma série de iatrogênias (estado de doença, efeitos adversos ou complicações causadas pelo tratamento médico): médica, cultural e social.

Ao confiar exclusivamente no saber especializado, as pessoas se tornam cada vez mais incapazes de serem autônomas, de organizar suas próprias vidas em torno de suas próprias experiências e recursos dentro de suas próprias comunidades. Portanto, a patologização do sofrimento e do mal-estar humano é uma forma de dominação, pois inibi qualquer ação relacionada com a autogestão do sofrimento, incluindo a politização. Como consequência, qualquer iniciativa de autogestão, individual ou coletivo, são dificultadas.

Paulo Freire adverte que um dos primeiros elementos nas relações de opressão é a prescrição. Consiste na imposição de uma consciência sobre a outra, negando seu direito fundamental e impedindo esta de ser autêntica. Dessa forma, a pessoa acaba perdendo sua autonomia, e aderindo a mentalidade do opressor.

“A hegemonia biomédica conseguiu privar as pessoas que sofrem dos cuidados que não estão sujeitos as prescrições técnicas correspondentes, impondo o consumo obrigatório de determinados serviços e atenções.”

Para Freire, enquanto os oprimidos não se dão conta da sua opressão, aceitam fatalmente sua exploração, mantendo intacto o estado das coisas. A pedagogia do oprimido é, então, uma ferramenta para a manifestação crítica da realidade que pode e deve ser modificada.

“De tanto ouvir de si mesmos que são incapazes, que não sabem nada, que não podem saber, que são enfermos, indolentes, que não produzem, em virtude de todo isto terminam por convencer-se de sua ´incapacidade´” (FREIRE, 2012a, p. 51)

O processo de liberação ocorre permanentemente, através do encontro e do diálogo entre as pessoas. A arqueologia da dor significa reescrever a própria história com significados novos, recuperando novas cosmovisões, se afastando – se da burocracia e dos termos impostos pelos especialistas. Assim, é possível iluminar os fatos e atos em que se gera o sofrimento, deixando emergir sua dimensão social. O encontro com o outro é essencial para a construção de sentido.

Como exemplo do processo de inserção crítica os autores trazem o Movimento internacional Hearing Voices (Escutadores de Vozes), que compreende grupos  e organizações locais até nacionais e internacionais guiado e chefiado por usuários, ex-usuários e sobreviventes da psiquiatria. Sua ação se baseia nos princípios de autogestão e apoio mútuo, na simetria e reciprocidade de saberes, assim como na liberdade de eleição.

“Experiências comumente denominadas como sintomas psiquiátricos, são entendidas como reações humanas compreensíveis a situações vitais complexas cujo significado permite orientar a mudança e a recuperação.”

Seus membros defendem uma visão crítica com relação ao modelo médico hegemônico e promovem um tipo de ação politica que se afasta da atenção clínica hierarquizada. Por fim, os autores concluem que esse tipo de estratégia coloca em seu centro o empoderamento individual, mas reconhecendo que é imprescindível localiza-lo em uma estratégia coletiva,  a fim de fomentar a transformação radical da sociedade. Ou seja, a liberdade experimentada no âmbito pessoal é utilizada par ajudar outras pessoas a libertar-se.

 

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SONEIRA, M. S.; BALAGUER,  A. P. ARQUEOLOGÍA DEL DOLOR. UN (RE)ENCUENTRO CON PAULO FREIRE E IVÁN ILLICH PARA APRENDER DEL SUFRIMIENTO. Revista Ideação. v. 23, n. 1, 2021. (Link)