A Medicalização do Sofrimento da Mulher: Uma Entrevista com Dana Becker

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Dana Becker é professora emérita de serviço social e de pesquisa social na Bryn Mawr College e tem trabalhado como psicoterapeuta por mais de três décadas. Com um doutorado em psicologia e um mestrado em serviço social, ela tem sido uma crítica da igualdade de oportunidades em seu trabalho sobre os efeitos da cultura terapêutica na mulher nos EUA.

Estes temas são explorados em seus livros, Through the Looking Glass: Women and Borderline Personality Disorder (Westview Press, 1997) e The Myth of Empowerment: Women and the Therapeutic Culture in America (NYU Press, 2005). Seu livro mais recente, One Nation under Stress: The Trouble with Stress as an Idea (Oxford University Press, 2014), aborda os efeitos da cultura terapêutica através de um exame do trabalho ideológico que atualmente realizado através conceito de estresse. Seu trabalho foi premiado pela Society for the Psychology of Women.

Becker é conhecida por seu trabalho sobre o uso do transtorno de personalidade limítrofe para medicalizar os problemas da mulher. Ela também tem feito algumas críticas significativas à maneira como falamos e lidamos com o estresse em nossa sociedade e constatou como é que a psicoterapia feminista tem sido enfraquecida em seu potencial revolucionário.

A transcrição abaixo foi editada para maior extensão e clareza. Ouça aqui o áudio da entrevista.

Ayurdhi Dhar: Você poderia nos dizer brevemente o que é “cultura terapêutica” e suas preocupações e críticas?

Dana Becker: É a cultura na qual estamos todos mergulhados, impregnados de conceitos psicológicos, valores e de instituições baseadas neles.

Na cultura terapêutica, a psique é o principal objeto de nossa atenção. A psicologia é vista como a principal fonte de problemas em nossa sociedade e a saúde de nossas “psiques” é o objetivo final. Estas suposições compartilhadas sobre a psique e a sua importância, assim como a importância do eu, moldam os nossos valores, comportamentos e até mesmo as instituições.

Esta ênfase sobre a Psique e o Eu torna o mundo, os problemas da sociedade e os problemas estruturais e institucionais menos visíveis para nós. Nossa confiança americana em idéias sobre o individualismo também molda a cultura terapêutica.

Dhar: Como você traz esta consciência sobre a cultura terapêutica para o seu trabalho como terapeuta com os seus clientes? Como isso influencia o seu trabalho?

Becker: Temos que trazer o contexto social para a terapia, mas não podemos parar no consultório. Uma sessão de 45 minutos não cria um mundo.

Por exemplo, as mulheres cujos problemas são há muito tempo medicalizadas vêem os seus próprios problemas enquanto problemas médicos, mas nós como terapeutas temos que ver todos os problemas de uma forma bem mais ampla. Isso não significa que, se alguém sofre de depressão clínica, não iremos ajudá-las a obter a medicação. Mas como terapeuta familiar que tem trabalhado muito com mulheres, eu vou perguntar não apenas sobre o contexto familiar e de relacionamento, mas também entender a perspectiva do cliente sobre o mundo e sobre gênero – como as mulheres se vêem a si mesmas.

Passei várias décadas fazendo este trabalho; e quando comecei, ninguém chegava dizendo: “Eu sou bipolar”. Você nunca ouvia isso. Ninguém estava fazendo auto-diagnóstico. Com o tempo trabalhando, as mulheres chegam dizendo: “minha mãe pensa que eu sou bipolar”.

Eu não gosto que as pessoas se chamem a si mesmas com um diagnóstico. Elas não dizem “eu tenho transtorno bipolar” hoje em dia. Elas dizem: “Eu sou isto, eu sou aquilo”. Nos anos 80, havia um livro chamado Mood Swings, e alguns clientes e seus pais ou parceiros liam estas coisas e diziam imediatamente: “Oh, se você está mais zangado hoje do que no último dia, isso deve significar que você tem mudanças de humor, e isso significa que você é bipolar”.

Para mim, como terapeuta, trata-se de descobrir o contexto em que essas idéias surgiram. O que está acontecendo lá? Às vezes a mulher se sente justificadamente zangada, mas seu parceiro ou seus pais dizem: “há algo de errado com isso, e isso significa que você tem mudanças de humor”, o que significa um diagnóstico. É assim que a emoção é medicalizada.

Não estou dizendo que não exista tal coisa como bipolar. Quando se toma uma posição como esta, as pessoas sempre criticam; não é tão extremo quanto as pessoas supõem. Como terapeuta, você tem que se aprofundar o suficiente para entender o contexto do que o cliente está trazendo.

Dhar: Portanto, a cultura terapêutica não é apenas psiquiatria, mas uma narrativa social e cultural maior que existe, mudando a nossa autodefinição. Tenho estudantes que entram dizendo: “Sou isto ou sou aquilo (um diagnóstico), mas meu terapeuta não me dá um diagnóstico, mas sei que sou isto”.

Becker: Existem outros conceitos, também, não apenas diagnósticos. Eu tive clientes dizendo: “Estou me sentindo realmente terrível esta semana. Estou com pena de mim”. De onde vem a ideia de que as mulheres, quando estão tristes ou chateadas com algo que está acontecendo, devem ter pena de si mesmas? O aspecto ter pena de si próprio é depreciativo.

Para um terapeuta, não ficar curioso sobre isso é problemático. Se eu entendo algo sobre socialização de gênero, então eu vejo que aquela mulher que me traz essa ideia traz todo um mundo de associações de gênero.

Dhar: A primeira coisa que fazemos quando algo acontece é olhar para dentro e olhar para as nossas emoções e não para as questões maiores, externas, sistêmicas. Por que você acha que estas narrativas psicologizadas ou terapêuticas se tornaram tão poderosas e difundidas? É uma questão do que elas se beneficiam?

Becker: Em primeiro lugar, certamente há um benefício para as profissões psicológicas. Há um benefício na medicalização dos problemas humanos. Não há dúvida sobre isso. Quando o Manual de Diagnóstico e Estatística saiu pela primeira vez, ele tinha menos de um centímetro de espessura e agora está tão inchado que qualquer coisa pode ser chamada de problema psicológico. As profissões se beneficiaram muito, e o número de profissões psicológicas proliferou. Você tem aconselhamento profissional e assistente social, que costumavam ser um tipo diferente de profissão.

A outra parte é sobre a natureza do gênero das ideias sobre emoção, porque as mulheres sempre foram as principais candidatas à psicoterapia, aos livros de autoajuda e ao aconselhamento psicológico. Com a Oprah e outros, tornou-se popular falar sobre problemas que tinham sido ocultados do ponto de vista público. Além disso, há a veneração da ciência – a partir do século XIX, tem havido uma enorme cientificação de todos os fenômenos. Isto também influenciou a medicalização.

O próprio Freud nunca quis que a psiquiatria se tornasse uma profissão médica. Mas, nos Estados Unidos, foi decidido que era preciso se tornar um médico para se tornar um psiquiatra.

Dhar: Recentemente, você escreveu sobre a ausência de contexto na terapia feminista, a qual, você escreve, ficou desdentada. Você poderia falar mais sobre isso?

Becker: Em certo sentido, não existe hoje nenhuma terapia feminista, nenhuma pessoa que se intitula terapeuta feminista. Há pessoas que são feministas que fazem psicoterapia, mas isso é diferente.

No início, havia a conscientização – um fenômeno de classe média e branca. Esta era uma crítica à terapia para as mulheres – queremos realmente que as pessoas olhem para dentro e não para fora, para a origem de seus problemas? Muito rapidamente, as ideias que a conscientização trouxe para a terapia, que estava trazendo o contexto social para dentro do consultório de terapia e ajudando as mulheres a alcançar um maior ativismo fora do consultório, rapidamente se tornaram subsumidas à medida que a profissionalização tomou conta.

Foi um período bastante curto. Hoje, para as mulheres, o trauma tornou-se a palavra de ordem. Trauma e mulheres se tornaram um pacote que muitos terapeutas que se consideram feministas consideram estar juntos – “Vamos descobrir como você foi traumatizada”.

Agora, falar de eventos traumáticos se tornou muito mais estigmatizado, assim como ter problemas psicológicos, o que é muito útil. Mesmo nos anos 80, era raro que as terapeutas perguntassem a uma mulher se ela tinha sido abusada sexual ou fisicamente. Agora é rotina. É uma boa notícia que estes problemas saiam do armário e que o contexto social e social dos problemas psicológicos seja visível.

Dito isto, quando tudo no mundo é rotulado de traumático, há uma perda de sentido. Se eu estou traumatizada porque tenho muitas mensagens de texto em vez de ter sido prisioneiro de guerra… São coisas que hoje em dia são rotuladas de traumáticas, e a idéia de trauma perdeu sentido.

O outro problema é que aqueles que praticam terapia, particularmente nos Estados Unidos, assumem que todo desastre induz a traumas em todos. Este não é o caso. Por exemplo, depois dos tsunamis que aconteceram há uma década, os psicólogos americanos passaram a oferecer ajuda psicológica às vítimas de trauma. As pessoas diziam: “não temos casa, calor, e a família não tem comida”. E você está falando comigo sobre estar traumatizado!”.

Os acontecimentos do 11 de setembro foram lançados firmemente dentro da narrativa dos traumatismos. Mesmo dez anos mais tarde, o psicólogo americano da Associação Americana de Psicologia precisou colocar em questão uma apologia de pesquisa para todo o trabalho psicológico que insistia que todos iriam ficar traumatizados. Todos os que tinham testemunhado, ou visto na TV, ou as crianças expostas – todos iriam sofrer. A pesquisa descobriu que esta era na verdade uma porcentagem muito pequena da população. Mas agora, quando a pesquisa for feita, uma alta porcentagem da população dirá que passou por pelo menos um ou mais eventos traumáticos em sua vida.

Dhar: Está ligado à idéia de Ian Hacking do conceito de “looping” –  uma narrativa popular que muda a sua autodefinição e, em seguida, a sua experiência. Eu me pergunto se trauma é a próxima grande coisa depois da narrativa de medicalização. Você pode dar exemplos de como especificamente o trauma foi cooptado e usado para medicalizar ainda mais os problemas das mulheres?

Becker: No DSM III, os eventos que eram causadores do TEPT tinham que ser considerados fora do âmbito da experiência humana. Muitas feministas protestavam para que estes critérios fossem ampliados para que a experiência das mulheres em relação ao abuso sexual e físico fosse incluída. Inicialmente, eu me sentia realmente tomada por isso porque estava estudando o diagnóstico limite, que não podia aceitar, e o TEPT era o único diagnóstico com causas situacionais externas reais. Eu pensava, “isto é maravilhoso”. Então, expandimos o diagnóstico. E mudei a minha posição.

Eu fiz um giro completo 360º e fiquei horrorizada com a freqüência com que o diagnóstico de TEPT era apenas um tapa nas mulheres. Elas não preenchiam todos os critérios. Não quer dizer que não devamos tomar nota do abuso e de seus efeitos nocivos, mas se tornou mais uma ferramenta para medicar o sofrimento das mulheres. É assim que eu penso sobre a narrativa de trauma que alimenta o diagnóstico de TEPT.

Houve uma pesquisa fantástica feita por Jeanne Marecek e Diane Kravitz nos anos noventa, onde entrevistaram aquelas que se chamavam terapeutas feministas. Elas diziam: “Este é o único diagnóstico que eu já dei. Não é que eu o dê a todas as mulheres”. Eu digo às pessoas que você tem TEPT, e que esta é uma reação normal ao trauma”. Em primeiro lugar, os sintomas do TEPT não são uma reação normal ao trauma; caso contrário, não estaríamos chamando isso de transtorno. O TEPT como diagnóstico havia sido muito ampliado.

Dhar: O TEPT sendo uma reação normal ao trauma não se traduz quando olhamos para outros lugares do mundo.

Becker: Não, culturalmente é simplesmente um terrível absurdo

Dhar: E a segunda questão é que precisamos de verbalização – que falar de trauma é a única maneira saudável de lidar com ele e processá-lo. Você tem que ir a um profissional. Simplesmente, isso não funciona assim.

Becker: Não. Como culturas, nós decidimos o que é normal e o que não é. Derek Summerfield fala sobre isso – em uma sociedade, decidimos o que dizemos que devemos suportar ou não.

Após o bombardeio de Londres, os londrinos não estavam se chamando traumatizados. Não havia nenhuma linguagem, não havia nenhuma narrativa para isso. Havia uma atitude de manter a calma e continuar indo em frente. Mesmo na guerra, o bombardeio era considerado uma humilhação. Tudo isso era terrível, mas era tão diferente de nossa resposta ao 11 de setembro – um discurso diferente.

Dhar: Em Uma nação sob estresse, você escreve que as disciplinas-psi se concentram nos efeitos do estresse, em estar sob estresse, e não sempre nas causas. Você escreve que nossa cultura individualista desempenha um papel. Você poderia dizer mais?

Becker: Fazendo uma ponte entre o trauma e o estresse, ambos os conceitos agora compartilham o mesmo tipo de problema. A causa e o efeito são conjugados de uma forma que os torna um só, mas é na resposta emocional em que nos concentramos. Portanto, o que o estressa e sua reação a ele são ambos ‘estresse’, mas nós nos concentramos na sensação de estar estressado.

No livro, eu falo sobre esta louca ideia americana de equilíbrio. As mulheres são alvos deste discurso de estresse. Por exemplo, você é uma mãe trabalhadora que faz trabalho sem vínculos trabalhistas ou uma mulher profissional. Este discurso de equilíbrio se aplica a todas igualmente, mesmo que os estressores sejam bem diferentes. A mulher profissional que é CEO pode ter uma babá e não está na mesma posição que a mulher que trabalha em turnos loucos, sem aviso prévio e, portanto, não podendo cuidar das crianças. Mas devemos alcançar um equilíbrio entre o que estamos fazendo lá fora, o que estamos fazendo na família, e cuidar muito bem de nós mesmos, não importa quais sejam os estressores externos, qual seja o contexto de nossas vidas. A idéia é que, se pudermos fazer isso, não seremos estressados e irritados e seremos capazes de cuidar de tudo.

O cuidado tem sido uma província feminina neste país, particularmente desde a industrialização. Como as mulheres de classe média inundaram o local de trabalho nos anos 80 e posteriormente, a expectativa de cuidados não mudou. Mas agora, a expectativa de equilíbrio se tornou outro peso sobre os ombros das mulheres.

Eu posso me usar como exemplo. Eu nunca me chamei de estressada o tempo todo. Eu não tinha dinheiro. Eu era uma mãe solteira. Eu estava fazendo meu doutorado e cuidando do meu filho, de um cachorro, de uma tartaruga, de tudo o mais. E minha expectativa era de que eu fazia tudo perfeitamente. Assim, passamos a esta idéia de equilíbrio, de que deveríamos ser capazes de fazer malabarismos com várias coisas. Se não conseguirmos, a culpa é nossa. Culpamo-nos a nós mesmos e deveríamos comprar mais commodities para nos ajudar. Se você é pobre, você não tem tempo, dinheiro ou apoio para fazer as coisas de cuidado que a cultura de classe média nos diz que devemos fazer.

Dhar: É aí que entra a narrativa do autocuidado. Tenho que contar aos meus alunos que as velas em um banheiro não vão resolver os problemas que emergem da pobreza.

Becker: E quando chamamos isso de estresse, nós então achatamos isso. Se dizemos que estamos estressados, então é meu problema resolver.

Dhar: Então, o estresse é uma maneira de individualizar isto? E então o diagnóstico do limite para o TEPT também são maneiras?

Becker: Muitas das mulheres que são diagnosticadas no limite são mulheres que sofreram abuso extremo, negligência e invalidação. O estresse é uma ferramenta não-diagnóstica para aquelas mulheres que, como muitas de nós, tomam nossas deixas da cultura popular.

Dhar: Sim, eu tenho um bebê de três semanas, e sempre que me sinto sobrecarregada a minha mente vai para a depressão pós-parto. Tenho lido tantas críticas ao diagnóstico. Além disso, tenho um tornozelo quebrado, estou longe de casa, e preciso ir ao trabalho. Mas apesar de saber sobre estes importantes fatores externos, mesmo como psicóloga crítica, a depressão pós-parto é o conceito que continua voltando à minha cabeça. Mesmo se você estiver ciente deles, o poder destas narrativas é forte!

Becker: Se estamos apenas estressadas, nós nos culpamos por não cuidarmos melhor de nós mesmas. Então não há necessidade de ir lá fora e perguntar: “Por que ainda somos a única nação industrializada ocidental que não tem qualquer licença familiar remunerada”?

E as mulheres mais estressadas não têm tempo para o ativismo. Esta é outra parte do problema: “Estou muito estressada para ir lá fora”. Não tenho tempo para chamar o meu deputado”. É uma forma de aliviar as nossas consciências. Podemos dizer: “Estou estressada; vou colocar algumas velas, tomar o banho de espuma, tomar mais suco de couve”. Há mulheres em nosso país que não têm a opção de fazer essas coisas ou de ter qualquer ajuda. E como você sugere, não estamos olhando para a comunidade como você faria se estivesse de volta à Índia.

Dhar: Há uma conversa recente sobre os determinantes estruturais da saúde mental, sobre como coisas como pobreza, violência, racismo podem ser psicologicamente prejudiciais. Pergunto-me se isso será cooptado e absorvido – se for apenas um discurso simpático, e a resposta for novamente a terapia individual. O que você acha?

Becker: Isso é o que me preocupa. Veja o que aconteceu nos bairros pobres do sistema escolar público. Nós entendemos a discriminação, os efeitos da pobreza, do bullying. Sabemos que estas coisas contribuem para que uma criança não se saia bem na escola ou aja bem. O que fazemos? Chamamos a mãe, apenas a mãe.

É o problema da mãe. Ela tem que levar a criança à terapia, que muitas vezes não é uma terapeuta familiar. Então, a criança está com o terapeuta, que é muito compreensivo durante 45 minutos por semana e depois volta para o mesmo ambiente. Portanto, a mãe não tem apoio ou compreensão do que está acontecendo na terapia porque ela não está incluída nisso.

Ao estudar o estresse, encontrei alguns artigos populares realmente loucos sobre pobreza e depressão. Isto me preocupou muito ao ver como estas coisas estão sendo cooptadas pelo estabelecimento médico – “Vamos tratar a depressão. Tantas pessoas que são pobres estão deprimidas”. É o mesmo que o trauma e os problemas de estresse – a causa externa passa para segundo plano para os efeitos emocionais posteriores.

É muito mais fácil lidar com os efeitos. Não temos que lidar com discriminação, pobreza, racismo, com diferenças nos dólares dos impostos que vão à escola em bairros pobres. Isto cria um ambiente perfeito para individualizarmos estes problemas.

Dhar: Já que estamos falando em ignorar questões sistêmicas maiores, passemos à psicologia positiva, que costumava ser muito popular. Você tem levantado preocupações sobre a psicologia positiva. Você poderia elaborar?

Becker: Assim como com o TEPT, inicialmente com a psicologia positiva, você pensaria que a psicologia estaria se voltando para o contexto. Jeanne Marecek e eu argumentamos que a psicologia positiva reforçou a profissão de psicologia em um momento em que grandes avanços estavam sendo feitos através de cuidados administrados, assistentes sociais se tornando terapeutas, a profissionalização do aconselhamento etc. O problema era que a psicologia positiva é tão acontextual como qualquer outra forma de psicologia individual.

A psicologia positiva é mais uma das muitas “psicologias de ajuste” que amamos nos Estados Unidos. Por psicologia de ajuste, quero dizer aqueles movimentos como o movimento de higiene mental no qual o objetivo era de produzir estes indivíduos felizes, saudáveis e “bem ajustados”. Por exemplo, uma mulher que pode cuidar de si mesma e de sua família sem muitas reclamações e raiva. Isso seria um ajuste ideal.

Então o problema é que se você falar sobre “que tipos de famílias resultam em crianças que florescem”, e essa é a citação de Seligman sobre psicologia positiva, você não pode fazê-lo sem pensar no meio ambiente, nas instituições e no contexto social. A família nuclear é um ambiente muito pequeno demais para ser analisado.

Fui treinada em terapia familiar multidimensional, que olha para o contexto muito maior das famílias e suas conexões com instituições mais amplas. Não podemos simplesmente nos concentrar na dinâmica de uma família e depois dizer: “Vamos ajudar essa família a criar bem-estar entre as crianças”.

Outro exemplo é o enorme contrato de Martin Seligman com o governo dos Estados Unidos para trazer psicologia positiva para os militares. Por exemplo, você tem um soldado que vai para a guerra, que tem medo de ser morto, que presumivelmente vai matar outras pessoas e vê-las morrer. Você vai inoculá-los de alguma forma com psicologia positiva contra estes horrores. Mas não falamos de guerra ou socialização masculina e de como criamos guerreiros. Vamos apenas treinar pessoas para serem mais resilientes.

O conceito de dano moral é outra internalização de um problema muito maior. Quando os militares falam de dano moral, é individualizar um problema que é criado porque há a existência da guerra e essas decisões políticas. Falamos apenas do dano moral aos soldados, e qualquer coisa que use a linguagem medicalizada do dano nos traz para a terra do trauma. Mais uma vez, toda nossa discussão, em muitos aspectos, apenas se curva sobre si mesma.