O artigo “Eu fui no peito e na raça”: fotografias e narrativas da vida no território de usuários da saúde mental se utiliza do método fotovoz que faz parte do campo da pesquisa-ação, e é bastante influenciada pelo pensamento de Paulo Freire. Os participantes produziram fotos e narrativas individuais que depois foram discutidas em grupo. Tal método permite um maior protagonismo dos participantes, ao possibilitar que eles tomem as rédeas da pesquisa, decidindo os tópicos que serão trabalhados e dando autonomia para a produção do material a ser discutido nos grupos.
A pesquisa começou com nove participantes e terminou com oito. Destes foram seis homens e três mulheres, com média de idade de 58 anos. Sete se autodenominaram pardos, um branco e um negro. Todos com uma longa trajetória na saúde mental.
“Thornicroft aponta que ser alvo de comportamento discriminatório pode trazer um prejuízo maior do que a condição de saúde mental em si, com consequências diretas em vários domínios: relações interpessoais, educação, trabalho e moradia.”
Os autores entendem a descriminação como uma consequência comportamental do estigma. O tema da descriminação foi o primeiro escolhido pelos participantes da pesquisa, talvez por ter um impacto direto na vida deles. Os participantes fotografaram representações da discriminação que eles experimentam em suas vidas e trouxeram para a discussão no grupo. Uma participante fotografou um carrinho de mão de brinquedo sem um braço.
“[…] É o preconceito da pessoa ser discriminada de alguma forma, por apresentar um defeito. […] Mas nós não temos deficiência, nós temos transtorno mental, aí o único que me lembrou assim foi o carrinho. […] que era da minha irmã […] mas a minha irmã ainda não se desfez dele. Está lá. Assim é a gente, quando dá problema, deixa pra lá, não tem conserto mesmo. A gente antes tinha opinião, agora não faz mais valer a nossa opinião, não sabe de nada. A gente tem problema mental, é discriminado.”
Os autores destacam que a fala da participante pode ser compreendida através do conceito de injustiça epistêmica, visto que se refere a uma injustiça feita a uma pessoa que se confere um grau menor de credibilidade do seu testemunho. Pessoas diagnosticadas com algum transtorno psiquiátrico tendem a receber mais esse tipo de injustiça pois seus relatos tendem a ser encarados como falsos e suas narrativas escutadas com desconfiança, o que tende a isolar o sujeito em sofrimento psíquico.
A narrativa de alguns participantes demonstram como a pessoa em sofrimento psíquico é lida através do seu diagnóstico, qualquer comportamento é interpretado a partir da doença.
“Ah, o Guilherme tá [sic] ouvindo muita música e tá [sic] passando a madrugada aí orando. […] Ah, eu vou falar pro seu irmão.” Quando ela [mãe] fala isso, ai meu Deus! Meu irmão é novo, então tem muita voz ativa, né, se meu irmão falar, então, “Tem que internar ele, mãe, vamos internar” [usa uma voz de vilão], aí eu fico a-pa-vo-ra-do!”
As narrativas que aparecem na pesquisa são cheias de metáforas exemplificam a capacidade de trazer novos significados para palavras que inicialmente estava carregada de um significado negativo.
“Essa bolsa que está aqui, sabe o que que é? É porque, além de tudo que eu ouvi na vida, eu ouvi também: “Eu vou ter que carregar essa mala o resto da minha vida!” E eu me coloquei dentro da mala. Eu não consigo ficar sem bolsa e eu fico com medo de perder. E tudo, tudo que tem em volta na minha vida foi minha conquista. […] Eu me coloquei dentro da mala, eu me carrego e me sinto bem leve.”
Na outra etapa da pesquisa, os participantes tiraram fotos que representavam seu território e suas relações. São diferentes realidades, alguns moram sozinhos, outros com familiares. Alguns tem condição de contratar uma “colaboradora” e outros contam com a ajuda de vizinhos ou familiares. Mas todos parecem desejar criar laços com as pessoas de sua comunidade e nesse processo se deparam com o preconceito, dificuldades, mas também experimentam a sensação de pertencimento e conexão em determinados contextos. O serviço de saúde mental aparece aqui como um elemento importante, além da família, associação de moradores, igreja, vizinhança, Academia da Terceira Idade…dispositivos que favorecem a troca comunitária.
“Luiz Eduardo fotografou a Academia da Terceira Idade (aparelhos para a prática de exercícios disponibilizados em praças públicas). Segundo Barnabé, esse espaço funciona como um ponto de convivência, onde não há exclusão. […] Existe dia do aniversariante, […] o grupo de pessoas, né, promovia passeios. Ali rola uma familiarização, não é só o exercício. […].”
O território e as relações aparecem como elementos significativos para a vivência dos participantes, por isso é importante que os profissionais não se atentem apenas ao sinais e sintomas, mas também para as relações que os usuários travam com seu entorno. Os autores destacam que não basta a inserção de serviços de saúde mental, é necessário a mudança das mentalidades, pois é no plano sociocultural que acessamos a dimensão existencial dos sujeitos. É necessário um novo lugar social para a loucura.
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Peixoto, M. M. e Serpa, O. D. de . “Eu fui no peito e na raça”: fotografias e narrativas da vida no território de usuários da saúde mental. Ciência & Saúde Coletiva, v. 27, n. 03, 2022. (Link)