Fernando de Freitas: um “amigo querido” que foi um guerreiro da mudança radical

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Na última década, o apelo por uma mudança radical na psiquiatria tornou-se mais forte e mais organizado e, na América Latina, não havia voz mais alta – ou mais eficaz – do que a de Fernando de Freitas e seu colega Paulo Amarante. Juntos, eles lideraram um esforço psiquiátrico crítico de grande alcance; lançaram oo Mad in Brasil em 2016; e eles se tornaram associados do Instituto Internacional para a Retirada das Drogas Psiquiátricas (IIPDW) quando foi fundado, com Fernando viajando para Gotemburgo, Suécia, para sua reunião inaugural.

Fernando Freitas

Fernando, aos 68 anos, faleceu na última segunda-feira, 30 de janeiro, após cinco meses lutando contra um câncer no pâncreas.

À medida que a notícia da morte de Fernando se espalhava – para seus colegas no Brasil, para a comunidade internacional Mad in America, para os membros do IIIPDW e outros – havia um sentimento comum em suas expressões de pesar: Fernando de Freitas era um “querido amigo”, que deixou sua marca em todos aqueles que tiveram a sorte de conhecê-lo, e ele foi um guerreiro por mudanças radicais.

Confira abaixo algumas das homenagens:

Do Reino Unido:

“Conheci Fernando pela primeira vez em Gotemburgo e nos correspondemos depois disso, onde ele me apresentou a outras pessoas e discutimos muitos assuntos. Encontrei nele um companheiro de viagem não apenas na política de saúde mental, mas na política de maneira mais ampla. Ele era uma pessoa adorável e generosa. As pessoas que fornecem o tipo de solidariedade que ele fez são preciosas e sua perda será profundamente sentida em muitos lugares ao redor do mundo”. – Sami Timimi

“Que notícia terrivelmente triste. Nunca conheci o Fernando pessoalmente, mas graças ao zoom, tive várias conversas remotas com ele. Ele era tão caloroso, amigável e engraçado – essa é a minha lembrança dele. Mesmo no zoom, sua exuberância e paixão transbordavam. Realmente perdemos um ativista carismático e enérgico por mudanças na saúde mental, justiça social e política em geral”. – Joanna Moncrieff

“Ele foi um anfitrião gentil e generoso quando visitei o Brasil há alguns anos. Ele era muito bem informado sobre política, e compartilhamos nosso desgosto com o estado do partido governante do Reino Unido e nossa alegria com a reeleição de seu amado Lula. Ele fará muita falta.” – Lucy Johnstone

Da Islândia:

“Senti seu amor e amizade desde o primeiro momento. Conversamos muito em Gotemburgo e mantivemos contato via messenger. Sinto muita falta dele.”– Audur Axelsdottir

Da Holanda: 

“Estamos perdendo um amigo de grande coração.” – Peter Groot

“Sentiremos sua falta. Ele sempre foi uma pessoa inspiradora nas reuniões online. Ele plantou sementes; que outras pessoas continuem a receber atenção e crescer.” – Monique Timmermans

Da Suíça: 

“Minhas mais profundas condolências pela perda de um bom ser humano, um ser humano dedicado, e pelo Brasil – o país onde cresci – que perde uma pessoa boa e lutadora por fazer deste mundo um lugar melhor.” – Cláudia Esteve

Da Finlândia-

“Sou budista, então acredito no karma. Que suas muitas boas ações continuem a crescer e florescer e nos ajude a alcançar a mudança de paradigma vital na psiquiatria.” – Soili Takkala

Da Noruega

“Eu o conheci em Gøteborg e ele foi uma grande inspiração para começar o Mad na Noruega. Tive ótimas conversas com ele, ele foi tão caloroso e me apoiou. Um homem maravilhoso e uma inspiração para todos nós. Toda a equipe da Mad in Norway envia nossas condolências, ele é uma grande perda para nossa comunidade.” – Birgit Valla

Da Itália 

“Essa notícia me entristece muito. E entristece-me ainda mais que tenha sido impossível enviar ao Fernando o nosso abraço e as nossas palavras de estima no momento da sua doença. Nunca tive a chance de conhecê-lo pessoalmente, mas fiquei impressionado com seu senso de propósito, curiosidade, conhecimento sobre Basaglia (mais do que muitos italianos) e capacidade de se conectar mesmo online.”– Raffaella Pocobello

Da Suécia:

“Fernando era uma das pessoas mais gentis, mas também muito determinado a fazer uma mudança para um mundo melhor. Tenho lindas lembranças de nossos dias juntos em Gotemburgo.—Carina Hakkansson

Da Alemanha

“Uma perda real – seu legado sobrevive a ele e a todos aqueles tocados por sua bondade e generosidade. Dedicamos a ele o nosso livro “Withdrawal from Prescribed Psychotropic Drugs” (com sua excelente contribuição “Attitudes of investigador on the descontinuation of psychopharmacological treatment”) – que será lançado em duas semanas.” – Peter Lehmann e Craig Newnes

Dos EUA.

“Fernando foi um companheiro maravilhoso na minha viagem ao Brasil e ajudou na minha pesquisa antipsicótica. Tivemos várias conversas vibrantes e ele trouxe um espírito muito forte para o trabalho e para o mundo. Eu não fazia ideia de que ele estava doente. Uma verdadeira perda.” – Will Hall

“Estou muito triste ao saber da morte de Fernando. Nós nos conhecemos em Gotemburgo e ele, Kleo e eu éramos as únicas pessoas que ficaram um dia a mais e realmente se relacionaram. Nunca mais nos encontramos, mas mantivemos contato por e-mail e redes sociais. Ele exalava um firme senso de propósito com um profundo calor e bondade. É uma grande perda para a nossa comunidade”. – Swapnil Gupta

E do Brasil:

“Lamento profundamente a morte do nosso querido amigo Fernando Freitas, porque ele foi uma daquelas raras pessoas que souberam lutar pelas suas convicções, criando espaços de debate, fóruns de discussão e redes de solidariedade visando fortalecer um permanente questionamento dos abusos poder da psiquiatria biológica e os problemas derivados dos tratamentos psicofarmacológicos, como efeitos adversos graves, dependência e vícios muitas vezes sistematicamente negados. Como leitor e colaborador da Mad in Brasil, sinto uma enorme tristeza porque perdemos um trabalhador incansável, editor, tradutor e escritor em questões urgentes e atuais no campo da saúde mental. Fernando teve que lidar com críticas intolerantes mesmo entre os psiquiatras considerados humanistas. Destaco sua última colaboração, que acaba de ser publicada em Dossiê organizado por Marcia Mazon e por mim, na revista brasileira Estudos de Sociologia. No último número do ano de 2022, encontramos aquela que será provavelmente a última publicação de Fernando Freitas, escrita em colaboração com Luciana Jaramillo Caruso de Azevedo e intitulada “Medicalizando crianças e adolescentes“. – Sandra Caponi

Quanto a mim, pessoalmente, derramei mais do que algumas lágrimas na semana passada. Aqui está como ele costumava assinar seus e-mails, que falam sobre o calor que ele regularmente mostrava aos outros: “Um forte abraço, meu caro amigo”.

Reunião inaugural dos Associados do IIPDW. Fernando Freitas é o segundo da esquerda na linha de trás.

Fomentando a Psiquiatria Crítica no Brasil

Fernando Ferreira Pinto de Freitas doutorou-se em psicologia, com ênfase em psicologia social, pela Université Catholique de Louvain, na Bélgica. Ele e Paulo Amarante se conheceram em 1982, no curso de saúde mental;  Fernando era aluno  e Paulo Amarante, professor. Para Amarante foi um “curso pioneiro, que iniciou o processo de crítica em psiquiatria – crítica ao modelo de psiquiatria manicomial e da medicalização no Brasil.”

Juntamente com outros ativistas, e inspirados pelo trabalho de Franco Basaglia na Itália – que ganhou fama por abolir os hospitais psiquiátricos naquele país-, eles ajudaram a fomentar um esforço de desinstitucionalização no Brasil. No final da década de 1980, Amarante foi um dos principais autores da legislação nacional que previa o tratamento comunitário de pacientes psiquiátricos e procurava proteger seus direitos humanos.

Em 2007, Freitas e Amarante uniram forças para criar um fórum de saúde mental e direitos humanos em cooperação com a Universidad das Madres de Plaza de Mayo na Argentina. Este foi um primeiro passo para iniciar a reforma psiquiátrica na década de 1980, quando os manicômios foram, em sua maioria, suplantados por uma rede nacional de Centros de Atenção Psicossocial e outros dispositivos de cuidado. Em seguida, Freitas e Amarante participaram da criação da Associação Brasileira de Saúde Mental (ABRASME). Por um tempo, Freitas foi um dos diretores da ABRASME, que é a maior entidade “crítica” de saúde mental da América Latina. Sob sua liderança conjunta, a ABRASME realizou conferências anuais, que foram projetadas em parte para ajudar a promover um movimento liderado por usuários no Brasil.

 

 

 

Fernando Freitas e Paulo Amarante

Foi assim que conheci Fernando e Paulo, pois eles me convidaram para falar nas conferências da ABRASME realizadas em Manaus, João Pessoa, Florianópolis e Rio de Janeiro. Foi então que experimentei o calor, a amizade e a generosidade de que tantos, nas suas homenagens a Fernando, escreveram.

Um dos momentos mais marcantes de uma conferência da Abrasme ocorreu durante uma palestra de Olga Runciman, que contou sobre sua recuperação – e a suspensão da medicação antipsicótica – após internação com diagnóstico de esquizofrenia. Muitos na assistência nunca tinham ouvido falar de tal coisa, e sua fala foi o equivalente a jogar uma pedra nas águas calmas de um lago. Você podia ver a onda de emoção se espalhando pela platéia e as “luzes” internas piscando enquanto suas palavras eram absorvidas.

“Conheci Fernando quando fui convidado por ele e Paulo Amarante para o Brasil em 2015”, lembrou Runciman. “Fui recebido não apenas no Brasil, mas em sua casa, onde conversamos sobre o estado do mundo e principalmente sobre a psiquiatria e suas drogas, e descobri que aqui estava outra pessoa que compartilhava a paixão por querer mudar o mundo no que diz respeito aos direitos e necessidades daqueles que sofrem em psiquiatria. Acontece que nós dois compartilhamos um sonho de que um dia haveria um movimento para apoiar a abstinência de drogas psiquiátricas. Mal sabíamos que um ano depois esse sonho se tornaria realidade! O IIPDW nasceu e Fernando tornou-se associado do nosso instituto e desempenhou um papel muito ativo no Brasil promovendo a abstinência de drogas.”

Ao perseguirem essas iniciativas, Freitas e Amarante o faziam dentro da mais destacada instituição de ciência e tecnologia: a Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ). Ambos eram professores da escola, e Amarante também dirigia um Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e atenção Psicossocial da Fiocruz. Freitas era um dos pesquisadores do laboratório.

Através de seus esforços, a Editora FIOCRUZ publicou uma tradução para o português de Anatomy of an Epidemic, com Freitas e Amarante co-escrevendo o prefácio. Em 2016, eles lançaram conjuntamente o Mad in Brasil, com Freitas e Amarante atuando como co-editores.

Em entrevista ao Mad in America no ano passado, Freitas contou como eles queriam que o Mad in Brasil promovesse uma transformação nos cuidados de saúde mental. “[Queremos] promover, criar, uma ruptura radical – uma ruptura – uma ruptura radical em nossa relação com o modelo psiquiátrico”, disse ele. Mesmo em uma abordagem centrada na comunidade, os elementos medicalizados – a confiança no diagnóstico, a ênfase nas drogas – precisam ser questionados”.

“Refletir, repensar, questionar. Queremos mudar a conversa”, disse.

Freitas foi um editor incansável. Ele traduzia regularmente artigos científicos, histórias pessoais e blogs publicados no Mad in America e outros sites afiliados para o português. Sua assistente, Camila Motta, publicava regularmente resenhas de artigos publicados em revistas médicas brasileiras. Em seus seis anos no comando, Freitas traduziu mais de 700 artigos – blogs, histórias pessoais e relatórios do MIA – com sua última tradução publicada em 16 de janeiro, pouco mais de uma semana antes de sua morte. Mad in Brasil desenvolveu um número constante de leitores mensais – o número de visitantes normalmente girava em torno de 20.000 por mês.

“Duas semanas antes de Fernando falecer, ele estava postando no Mad in Brasil”, disse Runciman. “Sua paixão pela mudança na saúde mental esteve lá até o fim.”

O diferencial de Mad in Brasil é que ele está sediada na principal instituição de ciência e saúde pública da América Latina, a FIOCRUZ. Por analogia, tente imaginar pesquisadores e líderes proeminentes do Instituto Nacional de Saúde Mental dos Estados Unidos atuando como editores do Mad in America e publicando notícias científicas, blogs, histórias pessoais e relatórios detalhados que contam as falhas do modelo de doença da psiquiatria e a necessidade de uma mudança radical. Isso nunca aconteceria, é claro, e destaca um aspecto importante do que Mad in Brasil trouxe para esse empreendimento Mad in the World (e para o IIPDW): o esforço para transformar radicalmente a psiquiatria no Brasil teve sua base em uma instituição de prestígio na saúde pública, liderados por professores daquela instituição.

Depois de lançar Mad in Brasil, o próximo projeto de Freitas e Amarante era criar um “Seminário Internacional sobre a Epidemia de Drogas Psiquiátricas” anual. Eles organizaram seis dessas conferências, que normalmente envolviam convidar um grupo internacional de pesquisadores, pessoas com experiência e profissionais para dar palestras (primeiro por meio de apresentações presenciais no Brasil e depois online durante a pandemia). A lista de palestrantes internacionais inclui muitos nomes familiares ao Mad in America: Irving Kirsch, Laura Delano, Will Hall, Joanna Moncrieff, John Read, Lucy Johnstone e Jaakko Seikkula, para citar apenas alguns. Em novembro passado, para o sexto seminário internacional, eles convidaram Allen Frances e Andrew Scull para um debate sobre os méritos da psiquiatria e seus tratamentos.

Juntos, Freitas e Amarante escreveram em coautoria vários artigos e livros e prepararam teses para a ABRASME sobre a medicalização da vida, que decorreu da quinta edição do Manual Diagnóstico e Estatístico da American Psychiatric Association. Mais recentemente, eles supervisionaram a tradução do livro de Jaakko Seikkula sobre Diálogo Aberto e co-escreveram um prefácio para o livro.

A Medicalização da Vida

Como pode ser visto na breve biografia, Fernando Freitas dedicou sua vida profissional buscando transformar a assistência psiquiátrica no Brasil e no geral. Fê-lo através de uma notável e duradoura amizade com Paulo Amarante.

É claro que havia um lado pessoal em ser convidado para o mundo deles e, como testemunham os sentimentos acima, Fernando deixou sua marca em tudo o que conheceu. Seu calor, sua inteligência, sua paixão e sua capacidade de amizade eram os traços definidores de seu caráter. Além disso, ele tinha um ótimo senso de humor e uma risada contagiante.

Para Freitas, Amarante e outros brasileiros que organizaram e falaram nesses eventos, o tema mais destacado foi a medicalização da vida, e a perda – para a sociedade, para seus filhos e para todos – que advém dessa patologização do ser humano como doença. Como Freitas e Amarante sugeriram em seu livro de 2015, The Medicalization of Psychiatry, isso levou a um senso empobrecido de si mesmo (e outros danos), e foi essa crença geral que animou todos os seus esforços.

Mad in America publicou uma resenha dos últimos escritos de Fernando sobre o assunto, que Sandra Caponi menciona acima, em 5 de janeiro deste ano.

Fernando deixa uma filha, Natália, e uma enteada, Lara. Como revelam as expressões de pesar, sua morte é uma perda para todos que desejam ver a psiquiatria “radicalmente transformada”.