Texto traduzido para o português por Enzo Barletta e revisado por Camila Motta.
Nota do editor: Nos próximos meses, a Mad in Brasil publicará uma versão serializada do Relatório escrito por James B. (Jim) Gottstein, Adv.; Peter C. Gøtzsche, MD; David Cohen, PhD; Chuck Ruby, PhD; Faith Myers. A cada quinze dias, uma nova seção do livro será publicada e todos os capítulos estão arquivados aqui.
Sumário Executivo
Os tratamentos convencionais do sistema de saúde mental são imensamente danosos e contraproducentes, frequentemente impostos a pacientes que não os desejam. O enfoque excessivo em drogas psiquiátricas está reduzindo a taxa de recuperação de pessoas diagnosticadas com transtorno mental grave de possíveis 80% para 5%, e reduzindo suas expectativas de vida em cerca de 20 anos. O encarceramento psiquiátrico, eufemisticamente chamado “internação involuntária”, é igualmente contraproducente e prejudicial, aumentando os traumas dos pacientes e sendo maciçamente associado a suicídios. Intervenções psiquiátricas danosas vêm sendo impostas as pessoas sem considerar os fatos sobre os tratamentos e seus danos, em violação à Legislação Internacional.
Os elementos mais importantes para melhorar a vida dos pacientes são: Pessoas, Lugar e Propósito. Pessoas — inclusive pacientes psiquiátricos — precisam de relacionamentos (Pessoas), um lugar seguro onde morar (Lugar), e atividades que lhes sejam significativas, geralmente estudos ou trabalho (Propósito). É preciso oferecer às pessoas esperança de que estas coisas são possíveis. Abordagens voluntárias que melhoram a vida dos pacientes devem se tornar amplamente acessíveis, em vez do atual regime danoso e contraproducente de drogas psiquiátricas para todos, para sempre, ao qual muitos são frequentemente forçados. Entre estas abordagens estão Peer Respites, Casas Soteria, Diálogo Aberto, Hospitais sem Drogas, Housing First, Emprego, Warm Lines, Grupos de Ouvidores de Vozes, Equipes comunitárias e não-policiais de assistência, e CPR Emocional (eCPR).
Ao implementar essas abordagens, os sistemas de saúde mental poderão ir em direção à possível taxa de recuperação de 80%, e até mesmo alcançá-la.
Por pior que seja para os adultos, o encarceramento e prescrição psiquiátrica a crianças e adolescentes é algo ainda mais trágico e deve cessar. Crianças e adolescentes devem, em vez disso, ser ajudados no controle de suas emoções e a se tornarem bem-sucedidos, e seus pais devem receber apoio e assistência no alcance deste objetivo.
I. O Atual Sistema de Saúde Mental é Extremamente Contraproducente e Prejudicial
O uso excessivo de drogas psiquiátricas
É universalmente aceito o fato de o sistema de saúde mental ser um fracasso, especialmente em relação ao que foi alcançado com o aspecto mais notável do tratamento psiquiátrico desde os anos 1950, e de modo exponencial desde o início dos anos 1980: as drogas psiquiátricas. Às custas de grande despesa pública, a sua implantação ubíqua promovida pelo sistema atual, inclusive compulsoriamente em pacientes que não as desejam — muitas vezes segurando-os e injetando-os contra sua vontade, ou ameaçando fazê-lo para que se tornem “complacentes” — agrava drasticamente os resultados e o sofrimento.
Desde a introdução da Torazina (clorpromazina), chamada droga milagrosa, em meados da década de 1950, a taxa de incapacidade para pessoas diagnosticadas com transtorno mental grave aumentou em mais de seis vezes.1
É provável que pelo menos parte do aumento depois de 1987 tenha ocorrido porque as pessoas foram expulsas da assistência social sob a legislação welfare to work [bem-estar para o trabalho] aprovada em 1996,2 tendo que ser registradas como deficientes para continuar recebendo assistência financeira. Já a diminuição desde 2013 se deve, em grande parte, à maior dificuldade imposta pelo governo para o recebimento destes pagamentos por invalidez, o que, por sua vez, pode perfeitamente ter aumentado o número de pessoas sem teto.
Thomas Insel, que por 12 anos foi Diretor do Instituto Nacional de Saúde Mental (NIMH), afirmou francamente em 2009 e repetidamente desde então que “apesar de cinco décadas de medicação antipsicótica e desinstitucionalização, há pouca evidência de que as perspectivas de recuperação tenham mudado substancialmente no último século”.3
Nós temos atualmente uma taxa de recuperação de apenas 5% para pessoas diagnosticadas com esquizofrenia e mantidas em neurolépticos.4,5
Isso é muito pior do que qualquer contexto visto antes do advento dos neurolépticos em meados da década de 1950.
Contudo, se tentarmos evitar o uso de neurolépticos após as pessoas vivenciarem seu primeiro episódio psicótico, uma taxa de recuperação de quase 80% pode ser alcançada. O gráfico a seguir mostra os resultados do programa “Diálogo Aberto” ao norte da Finlândia, onde o uso de neurolépticos é evitado sempre que possível.6
Resultados semelhantes foram alcançados durante o estudo da Casa Soteria na década de 1970, conduzido por Loren Mosher, MD, então Chefe de Pesquisa em Esquizofrenia do NIMH:
A taxa de recuperação de pessoas que interrompem o uso de neurolépticos após tê-los usado aumenta de 5% para 40%.7
Embora isso seja 8 vezes melhor do que continuar o uso (40% vs. 5%), é metade do que pode ser alcançado ao se evitar os neurolépticos em primeiro lugar (80%), conforme estabelecido pelos estudos de Diálogo Aberto e Casa Soteria.8 Isso demonstra a importância de se evitar o uso de neurolépticos, desde o início. Além de melhorar muito suas vidas, permitir que 16 vezes mais pessoas se recuperem, não apenas economiza uma enorme quantia de despesas com tratamento, como converte em cidadãos produtivos e contribuintes, pessoas que, do contrário, estariam recebendo subsídios e serviços financiados pelo público durante toda a vida.9
Os resultados de Harrow e Jobe foram tão inesperados e contrários às crenças da psiquiatria convencional que outras explicações foram propostas, como a de que as pessoas que deixaram os neurolépticos tinham, inicialmente, um melhor prognóstico, e por isso, tiveram melhores resultados, o que fez com que análises adicionais fossem realizadas. Nenhuma das explicações alternativas se mostrou verdadeira.10
Além de reduzir drasticamente a taxa de recuperação, o uso extensamente difundido de drogas psiquiátricas é extremamente prejudicial do ponto de vista físico, reduzindo a expectativa de vida em cerca de 20 anos.11 Em um dado período de tempo, o risco relativo de morte aumenta notavelmente com o aumento do número de neurolépticos que uma pessoa toma.12 Usuários de neurolépticos têm um risco elevado de mortalidade cardíaca, mortalidade por todas as causas e morte súbita cardíaca em relação a pacientes psiquiátricos que não o são.13
Pessoas prescritas com doses até mesmo moderadas de neurolépticos têm um grande aumento nos riscos relativos e absolutos de morte súbita cardíaca.14
Citando o livro de Robert Whitaker, Mad in America, de 2002, Gøtzsche escreveu recentemente sobre como as empresas farmacêuticas ocultam um grande número de mortes em seus ensaios clínicos de neurolépticos:
Um em cada 138 pacientes [número inicial, posteriormente atualizado para 145] que participaram dos ensaios clínicos de neurolépticos mais recentes morreu, mas nenhuma destas mortes foi mencionada na literatura científica, e a FDA não exigiu que isso fosse feito. Muitos pacientes se mataram, e a taxa de suicídio foi de duas a cinco vezes maior do que a taxa usual para pacientes com esquizofrenia. Um dos principais motivos foi a acatisia causada por síndrome de abstinência.15
O resultado da introdução de mais e mais psicofármacos é a piora da taxa de mortalidade padronizada entre pacientes com esquizofrenia com o passar do tempo, algo recentemente resumido por Robert Whitaker, autor de Mad in America: 16
As taxas de mortalidade padronizada (SMRs) revelam taxas de mortalidade maiores entre grupos de pacientes em comparação com a população geral. Por exemplo, uma taxa de mortalidade padronizada de 2 para pacientes com esquizofrenia, significa que este grupo tem duas vezes mais chances de morrer em um dado período de tempo do que a população geral. As SMRs para pacientes com esquizofrenia e bipolaridade pioraram nos últimos 50 anos.
Em 2007, pesquisadores australianos realizaram uma revisão sistemática dos relatórios de taxas de mortalidade entre pacientes com esquizofrenia em 25 países. Eles descobriram que as SMRs para “mortalidade por todas as causas” aumentaram de 1,84 nos anos 1970 para 2,98 nos anos 1980 e 3,20 nos anos 1990.
Aqui está um resumo do aumento das SMRs para pessoas com transtorno mental grave de acordo com diversos estudos:
Em 2017, pesquisadores do Reino Unido relataram que a SMR para pacientes bipolares havia aumentado de modo constante no período entre 2000 e 2014, aumentando em 0,14 ao ano, ao passo que, para pacientes com esquizofrenia, ela havia aumentado de modo gradual entre 2000 e 2010 (0,11 ao ano) e depois mais rapidamente entre 2010 e 2014 (0,34 ao ano). “A discrepância na mortalidade de indivíduos com transtornos bipolares e esquizofrenia em relação à população geral está aumentando”, escreveram eles.
O uso a longo prazo de antidepressivos também se mostrou associado ao aumento da morbidade e da mortalidade.
Além de matarem pessoas por meio de danos físicos diretos, como parada cardíaca e diabetes, os neurolépticos aumentam drasticamente a taxa de suicídio,17 assim como o fazem os chamados antidepressivos,18 os anticonvulsivos/antiepilépticos comercializados como “estabilizadores de humor”,19 e as benzodiazepinas.20 Além disso, como discutido na próxima seção, o encarceramento psiquiátrico por si só está associado a um enorme aumento dos suicídios.
Embora algumas pessoas as considerem úteis, no geral, estas drogas são prejudiciais e contraproducentes, reduzindo drasticamente as taxas de recuperação e a expectativa de vida. O uso forçado de drogas psiquiátricas é uma atrocidade.
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Mad in Brasil (Texto original do site Mad in America ) hospeda blogs de um grupo diversificado de escritores. Essas postagens são projetadas para servir como um fórum público para uma discussão – em termos gerais – da psiquiatria, saúde mental e seus tratamentos. As opiniões expressas são próprias dos escritores.