Centenário de Frantz Fanon

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Texto originalmente publicado em Viento Sur (12/04/2025) a qual agradecemos, como também ao autor, a autorização de reprodução no MIB.

Faz cem anos do nascimento de Frantz Fanon (1925-1961), o autor cultuado da descolonização cuja obra fez parte da bagagem dos revolucionários da década de 1960, como Ernesto Che Guevara, Patrice Lumumba e Nelson Mandela, e contribuiu para forjar a ideologia de resistência e as lutas revolucionárias do Sul Global.

 

Nascido na Martinica quando a ilha ainda era uma colônia francesa, Fanon atendeu a três condições: ser negro, psiquiatra e membro da Frente de Libertação Nacional (FLN) durante a guerra de independência da Argélia. Ainda adolescente, aderiu ao movimento cultural e político da Negritude, promovido por Aimé Césaire — um compatriota que foi seu professor de literatura —, Leopold Sédar Senghor e Léon-Gontran Damas. Césaire, um grande poeta, político e comunista, teria uma profunda influência sobre Fanon, especialmente em seu primeiro livro, Pele Negra, Máscaras Brancas, onde ele aborda a alienação dos negros na sociedade branca por meio de observações clínicas, diagnosticando os sintomas patológicos do racismo na vida cotidiana. Analisa relações neuróticas onde o conceito de raça é reproduzido e naturalizado. Sua análise desvenda uma civilização na qual o sujeito dominado deve se submeter às máscaras brancas do colonizador, adotar seus significados (branquitude) e renunciar aos seus próprios (negritude). Nesse processo de alienação, todos tem pressa para se assemelhar ao branco, imersos em uma angústia de identidade. É na sua reivindicação da negritude que Fanon se diferencia de seus mestres, os ideólogos da nação negra, porque ele coloca a revolução social antes do seu antirracismo, a luta por outra sociedade sem opressores ou oprimidos, onde a cor da pele não importa, onde a diferença é aceita.

Fanon estudou medicina em Lyon com uma bolsa de estudos por ter lutado com as forças aliadas contra os nazistas. Especializado em psiquiatria, ele foi trabalhar, depois de alguns anos na França, com François Tosquelles – um psiquiatra catalão exilado após a Guerra Civil, cofundador do POUM e precursor da psicoterapia institucional – na Argélia, como diretor médico do hospital psiquiátrico Blida-Joinville, com mais de dois mil pacientes em condições desumanas e uma equipe médica escassa.

Fanon chegou à Argélia pouco antes da guerra de independência, onde sua filiação inicial à FLN o forçou a combinar seu trabalho como terapeuta com o ativismo clandestino, usando o hospital como refúgio e clínica para insurgentes. Em sua prática, ele trata vítimas e perpetradores da colonização, casos clínicos de sujeitos afetados pela guerra, colonos e colonizados, torturadores e torturados. Torturadores que vão ao seu escritório depois das sessões de tortura, queixando-se de várias doenças não relacionadas ao seu trabalho, digamos.

Como psiquiatra, Fanon vai além do que aprendeu em Saint Alban, antecipando-se a Franco Basaglia — que recorreria ao exemplo de Blida em sua negação da instituição psiquiátrica — ao propor que o microcosmo social da psicoterapia institucional torna o interno crônico, que o confinamento sempre limita o valor desalienante da terapia e que o meio socioterapêutico autêntico é a sociedade. Isso o leva a buscar tratamento fora do hospital psiquiátrico, promovendo uma terapia que confronta o sujeito com o conflito que causou a crise, com a toxicidade da realidade. Essa mesma realidade o obrigou, como militante clandestino, a se exilar na Tunísia, onde fundou o primeiro hospital-dia da África e atuou como estrategista e teórico da revolução, porta-voz em toda a África negra do Governo Provisório da República da Argélia. Uma revolução que Fanon aspira que se torne a vanguarda da revolução de toda a África.

Foi seu último livro, Os Condenados da Terra (cujo título faz referência à primeira estrofe de A Internacional), escrito já sofrendo de leucemia – ele morreu aos 36 anos, em 1961 – que lhe traria reconhecimento mundial. Nele, ele nos mostra que a violência da barbárie colonial não se manifesta apenas em massacres genocidas, mas, sobretudo, na imposição aos povos e raças colonizados de uma dependência servil e degradante. Por esta mesma razão, porque a privação e a submissão estão revestidas de humilhação, a resposta libertadora, a emancipação, sempre terá que ser uma insurgência violenta.

Mais de seis décadas se passaram desde a morte de Fanon, e a lacuna entre riqueza e pobreza no mundo foi reconfigurada, assim como o colonialismo, persistindo em formas de racismo, xenofobia e exploração, exceto na Palestina, onde a ocupação permanece de fato. Uma ocupação genocida que o governo israelense defende como um direito para salvaguardar a civilização ocidental, baseado na crença profundamente enraizada de que esse direito prevalece sobre o de outros povos que podem ser exterminados. Enquanto a Europa pede que o país “se abstenha de massacres” e o mantenha como parceiro comercial, inclusive em armas.

Hoje, muitos de nós concordaríamos com Fanon quando ele rejeita a Europa, uma Europa que engana seus valores, aqueles que ele foi defender nas trincheiras quando adolescente, e cuja verdadeira face ele espalha por todo o mundo ocidental.

Faz séculos – escreve naquela que foi talvez a sua última carta, que conclui Os Condenados da Terra e que nos parece premonitória – uma antiga colônia europeia decidiu imitar a Europa. Isso foi tão bem sucedido que os Estados Unidos da América se tornaram um monstro no qual as falhas, as doenças e a desumanidade da Europa atingiram dimensões terríveis.

O fato é que, com as imagens de Gaza naturalizando a desumanidade dia após dia, as bandeiras nacionais fechando fronteiras e apoiando uma extrema direita claramente fascista, ao reler Fanon quando diz: “O colonialismo não pode ser compreendido sem a possibilidade de tortura, estupro ou assassinato” (Fanon F., Por la revolución africana., México, FCE, 1974, p. 71), não se pode deixar de pensar que as democracias liberais em que vivemos, e que mantemos, não podem ser compreendidas sem a exploração, a alienação social e a guerra inerentes ao capitalismo que as constitui.

A habitabilidade social deste planeta só será possível através da subversão da ordem existente, e isso requer consciência coletiva.