Seminário Internacional Debate a Desmedicalização e o Futuro da Saúde Mental no Brasil

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O 9º Seminário Internacional A Epidemia das Drogas Psiquiátricas teve início no dia 30 de outubro na Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP/Fiocruz), marcando mais um  momento de reflexão, debate e crítica sobre os rumos da medicalização psiquiátrica da vida contemporânea. A abertura foi conduzida pelo professor Paulo Amarante, que lamentou o cancelamento do pré-seminário que seria realizado no dia anterior na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) devido à grave crise de segurança pública no Rio de Janeiro. A operação policial realizada no dia 28 de outubro vitimou mais de 120 pessoas e transformou-se na maior chacina cometida pelo estado, levando medo e insegurança à vida dos cariocas, especialmente os que moram nas favelas e periferias atingidas pela operação. Devido aos graves acontecimentos, a organização do seminário decidiu suspender a feira de economia solidária e parte da programação cultural, lançando um informe orientando os inscritos sobre os riscos da participação presencial e estimulando a participação on-line do evento. Ainda sim, o seminário contou com a presença de cerca de 100 pessoas, além de uma audiência de cerca de 4.000 mil pessoas, que assistiram e debateram via YouTube. O pesquisador enfatizou a importância de transformar a dor em resistência e solidariedade e a necessidade de mudança na política de guerra às drogas para uma política que garanta direitos à população.

Durante a mesa de abertura foi feita uma homenagem à estudante Isabelle Marques, aluna do Curso de Especialização em Saúde Mental e Atenção Psicossocial, falecida em 25 de outubro. Em seguida, representando a presidência da Fiocruz, Patrícia Canto destacou a importância do tema do Seminário e falou sobre o papel fundamental do SUS na promoção de cuidados em saúde mental, apontando que “nem tudo se resolve com medicamentos. É preciso enfrentar as dimensões sociais do sofrimento humano”. Citando o patrono da Fiocruz Sergio Arouca, Patrícia lembrou a frase em que ele dizia “saúde é não ter medo”, uma sentença que ressoa bastante diante do contexto de insegurança e violência vivido no estado. Já o  diretor do Departamento de Saúde Mental do Ministério da Saúde , Marcelo Kimati, apontou como mudou-se a forma de encarar as categorias psiquiátricas. Se antes eram um fator de exclusão, hoje geram sentimento de pertencimento a um grupo social e como esse processo, muitas vezes, tira o que o ser humano tem de mais importante que é a sua particularidade.

 

Idealizador do Mad in América faz palestra de abertura

A primeira mesa do evento, intitulada “O que são evidências na Psiquiatria”, contou com a participação do jornalista e pesquisador norte-americano Robert Whitaker, autor de Anatomia de uma Epidemia e idealizador do site madinamerica.com . O palestrante trouxe dados para o debate sobre a fragilidade científica da medicalização do sofrimento psíquico ao revisar evidências sobre medicamentos psiquiátricos, em especial antidepressivos e antipsicóticos. Questionou ainda os ensaios clínicos randomizados tradicionais e ressaltou que muitos estudos têm desenho enviesado, com forte financiamento da indústria farmacêutica e participantes pouco representativos da população real.

Whitaker apontou que, embora medicamentos psiquiátricos, aprovados pela Food and Drug Administration dos Estados Unidos, pareçam mostrar benefício estatístico em curto prazo, quando comparados a placebo, a redução dos sintomas nem sempre é clinicamente significativa. A preocupação se estende com as avaliações do uso de longo prazo em que, segundo os estudos apresentados, pacientes não medicados para depressão ou transtornos psicóticos podem ter resultados melhores ao longo do tempo do que aqueles medicados.

Além disso, Robert destacou que o uso contínuo desses medicamentos pode piorar o quadro de condições como depressão e transtorno bipolar, sugerindo efeitos adversos de longo prazo como cronificação do sofrimento e aumento de quadros decorrentes de transtornos psiquiátricos com o aumento da prescrição. O palestrante elogiou o protagonismo brasileiro no debate sobre a desmedicalização: “Nenhum país tem feito tanto quanto o Brasil. Isso se deve ao trabalho de instituições como a Fiocruz e pesquisadores como Paulo Amarante”.


 

 

 

 

Antidepressivos na gravidez

Na parte da tarde, a mesa “Evidências no uso de antidepressivos na gravidez” reuniu o biólogo e professor de psicofarmacologia Marcos Ferraz e o médico obstetra Adam Urato. Ferraz apresentou uma análise crítica da Medicina Baseada em Evidências, ressaltando que a psiquiatria carece de marcadores biológicos e que os resultados dos antidepressivos não superam significativamente os da psicoterapia. Ele alertou ainda para os riscos do uso dessas substâncias durante a gestação, que podem causar danos permanentes ao feto.

Adam Urato reforçou a preocupação, apresentando dados de estudos que associam o uso de antidepressivos em gestantes a complicações como abortos espontâneos, baixo peso do bebê ao nascer e maior risco de internações neonatais. “Os riscos são reais e o público precisa ser informado”, afirmou. Segundo ele, o benefício terapêutico é pequeno frente aos possíveis prejuízos, e cada caso deve ser avaliado considerando alternativas não farmacológicas. A busca deve ser sempre no sentido de avaliar os benefícios diante dos riscos.

 

 

 

Segundo dia traz resgate histórico de práticas na saúde mental, psicotrópicos e saúde mental na infância

No segundo dia do evento, o debate se voltou ao “Panorama global de iniciativas desmedicalizantes”. Robert Whitaker fez um resgate histórico, lembrando que, nos séculos XVIII e XIX, práticas não medicalizadas, como as adotadas pelos Quakers, mostraram bons resultados no tratamento da loucura. Nessas casas, o tratamento era baseado em acolhimento, com prática de esportes, alimentação saudável e convivência. Em um grande panorama histórico, Robert foi trazendo diversas experiências que reproduziam práticas não medicalizadas e também o contraponto com o aumento de experiências manicomiais e com alto grau de medicalização.  Nesse histórico, o jornalista chegou até a experiências contemporâneas como o Diálogo Aberto na Finlândia e as iniciativas  de grupos livres de medicamentos na Noruega, que priorizam escuta, liberdade e ambientes saudáveis. “Esses modelos nos lembram que o cuidado pode existir fora da lógica hospitalocêntrica e medicamentosa”, observou.

 

A mesa “Práticas desmedicalizantes em saúde mental” reuniu relatos pessoais e profissionais. A psicóloga Ingrid Abreu narrou sua trajetória de uso intenso de psicofármacos e o processo de retomada de autonomia com o apoio de uma psiquiatra que valorizou o sentir e a escuta. “Medicação pode ser apoio, mas não trata a raiz do problema”, afirmou. Já o pesquisador Edvaldo Nabuco relatou décadas de vivência entre internações, remédios e retomadas, destacando a importância do movimento da Reforma Psiquiátrica e da luta por um tratamento humanizado. Nabuco relatou seus tratamentos e a busca que sempre faz para ter maior controle quando está medicado praticando atividades físicas regulares.

No campo profissional, o enfermeiro Alexander Ramalho, que mediou o debate representando o Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial (LAPS), contou a história de uma paciente que evitava médicos por medo da prescrição de remédios. “Às vezes que tentou suicídio foram com os próprios medicamentos. Quando passou a fazer esportes, voltou a se sentir viva”, disse, ilustrando o impacto das práticas de cuidado centradas na pessoas.

 

Na mesa seguinte, “Prescrição responsável de psicotrópicos”, o psiquiatra Holmes Martins criticou o uso indiscriminado de antidepressivos. Ele relatou o caso de uma paciente que pediu para suspender a medicação porque não conseguia chorar a morte da mãe. “Antidepressivos são apatizantes. Não é um efeito colateral, é o próprio efeito”, afirmou. Holmes apresentou seu projeto do Dicionário Decolonial da Psiquiatria, que propõe repensar a linguagem e as práticas de poder na medicina.

Encerrando o segundo dia, a psicóloga Luciana Jaramillo abordou a Medicalização das infâncias, questionando a patologização de comportamentos e a influência das redes sociais na propagação de diagnósticos e rótulos. “Estamos capturando a infância na lógica do espetáculo e do controle”, disse. Já o pesquisador Paulo Telles expôs sobre Práticas e desafios na saúde mental, debatendo o potencial terapêutico de substâncias como cannabis medicinal e psicodélicos quando utilizados com acompanhamento adequado, ressaltando a importância de um olhar individualizado sobre o paciente ao mesmo tempo da análise de seu lugar social. Pesquisas iniciais com psicodélicos têm trazido apontamentos interessantes. Apesar de provocarem um sofrimento inicialmente, resultados duradouros são possíveis de serem vistos com poucas doses. Todos esses tratamentos têm sido  realizados com acompanhamento psicológico intenso, segundo o pesquisador.

 

 

 

Cultura e resistência encerram o evento

Para finalizar um evento com debates tão aprofundados, foi exibido o documentário Coisa de Favela, que reúne seis produtores culturais de Manguinhos para uma conversa sobre arte, cultura e saúde mental. Ao final, a poeta Celeste Estrela declamou sua poesia Madrugada de Favela, afirmando que a favela é lugar de arte, cultura, resistência e de construção cotidiana de vida.

Com debates densos e experiências plurais, o 9º Seminário Internacional A Epidemia das Drogas Psiquiátricas reafirmou a importância de pensar o cuidado em liberdade, com base em evidências críticas, escuta e responsabilidade social. A Fiocruz se consolida, mais uma vez, como um espaço de resistência e produção de novos paradigmas em saúde mental.

 

O Seminário Internacional nas Mídias

O Seminário teve repercussão nas mídias sociais. O grupo Outra Saúde e o grupo de comunicação da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP/Fiocruz) cobriram o evento. Com o título: 9º Seminário ‘A Epidemia das Drogas Psiquiátricas’: Painel discute alternativas para além da medicalização, o informe ENSP relata:  “o evento promoveu um amplo debate sobre o que são evidências na psiquiatria e sobre os caminhos possíveis para a construção de práticas e cuidados desmedicalizantes. Com a participação de especialistas nacionais e internacionais, a nona edição do seminário buscou refletir criticamente sobre o uso de psicofármacos, suas implicações e alternativas. O painel de encerramento abordou temas como a prescrição responsável de psicotrópicos, as práticas e desafios em saúde mental, e os processos de medicalização e desmedicalização das infâncias.”

 

 Links: 

https://informe.ensp.fiocruz.br/noticias/56886

https://informe.ensp.fiocruz.br/noticias/56880

https://informe.ensp.fiocruz.br/noticias/56874

https://www.instagram.com/p/DQmLByBjbsw/

https://www.instagram.com/p/DQeXJ8DkVcl/ 

 

O site Outra Saúde publicou a matéria intitulada, Os jovens querem diagnósticos psiquiátricos, em que relatam: “Indústria farmacêutica, psiquiatria tradicional e redes sociais influenciam a juventude a definir sua identidade pelo uso de remédios – assumindo-se ’ansiosos’ou ‘depressivos’. Para Robert Whitaker, Fiocruz pode construir um novo paradigma que enfrente essa visão.”

 

Link: 

https://outraspalavras.net/outrasaude/os-jovens-querem-diagnosticos-psiquiatricos/

https://www.instagram.com/p/DQwwBYYk4Mn/?igsh=MWI0dHp1NHQwZWxzdg== 

https://www.instagram.com/p/DQ68Y0kkaP7/?igsh=anQwM2wwYjl1ZzM3

 

Já o Centro de Estudos Estratégicos Antonio Ivo de Carvalho da Fiocruz republicou a matéria realizada pelo Informe Ensp, com o título: Robert Whitaker analisa evidências sobre medicamentos psiquiátricos e destaca efeitos a curto e longo prazo. 

 

Link:

https://cee.fiocruz.br/?q=robert-whitaker-analisa-evidencias-sobre-medicamentos-psiquiatricos-e-destaca-efeitos-a-curto-e-longo-prazo