UM DEBATE ENTRE ALLEN FRANCES E ROBERT WHITAKER

Nota do Editor: Allen Frances e Robert Whitaker já participaram juntos em diversos eventos internacionais, como na Conferência da Sociedade para a Ética em Psicologia e Psiquiatria, em Los Angeles, onde tiveram um breve debate. Allen Frances fez um convite por escrito a Robert Whitaker pela continuidade do debate na imprensa. E assim os dois fizeram. A resposta de Whitaker segue a postagem de Allen Frances. O debate entre os dois que foi publicado em Mad in America está sendo aqui apresentado na íntegra para que o público brasileiro tome conhecimento. Seu conteúdo é da maior importância para todos nós, na medida em que contribui ao debate que está em aberto em nosso país. Embora as referências principais falem diretamente da realidade da assistência em saúde mental nos Estados Unidos, a realidade brasileira tem muito em comum. E muito certamente irá contribuir para aprofundar o processo de reforma psiquiátrica no Brasil.

0
2150

UM DEBATE ENTRE ALLEN FRANCES E ROBERT WHITAKER

Por ALLEN FRANCES, MD e ROBERT WHITAKER

Nota do Editor: Allen Frances e Robert Whitaker já participaram juntos em diversos eventos internacionais, como na Conferência da Sociedade para a Ética em Psicologia e Psiquiatria, em Los Angeles, onde tiveram um breve debate. Allen Frances fez um convite por escrito a Robert Whitaker pela continuidade do debate na imprensa. E assim os dois fizeram. A resposta de Whitaker segue a postagem de Allen Frances. O debate entre os dois que foi publicado em Mad in America está sendo aqui apresentado na íntegra para que o público brasileiro tome conhecimento. Seu conteúdo é da maior importância para todos nós, na medida em que contribui ao debate que está em aberto em nosso país. Embora as referências principais falem diretamente da realidade da assistência em saúde mental nos Estados Unidos, a realidade brasileira tem muito em comum. E muito certamente irá contribuir para aprofundar o processo de reforma psiquiátrica no Brasil.

 

Allen Frances escreve:

Eu tive dois debates recentes com Robert Whitaker – em outubro, no Mad in America Film Festival, em Boston, e em novembro, no encontro da International Society for Ethical Psychology and Psychiatry, em Los Angeles. Ambos foram corajosos e interessantes.

Bob e eu concordamos em muitas coisas, mas discordamos sobre quais são os maiores problemas éticos e clínicos enfrentados em nosso campo e sobre o que é necessário ser feito para solucioná-los.

Deixem-me traçar onde eu vejo as nossas concordâncias e as nossas discordâncias, e expressar a esperança que nós possamos encontrar um ampliado terreno em comum.

  • Sobre o papel da Psiquiatria

Bob é um dos mais eloquentes e bem-informados críticos da psiquiatria, e certamente é o mais influente. Ele vê a Associação Psiquiátrica Americana (APA) como uma organização poderosa e corrupta e que é amplamente responsável por espalhar um equivocado modelo médico, o que resulta em um generalizado tratamento psiquiátrico inapropriado.

Eu não sou defensor da APA e tenho condenado duramente a sua incompetência e conflito de interesse financeiro na produção de um apressado e mal feito DSM-5. Eu tenho recomendado que o DSM deva se tornar de interesse público, e não uma publicação como fonte de renda para a APA; que a APA perdeu qualquer credibilidade como fiador do sistema de diagnóstico; e que ela deveria perder a franquia do DSM para uma nova entidade neutra, com bases mais amplas,  mais competente e sem interesses financeiros.

Eu também concordo com a crítica do Bob que a APA se afastou de seu modelo original bio/psíquico/social e que ao invés dele tem promovido um modelo de cuidado excessivamente biológico, médico. E eu concordo que a APA se tornou demasiadamente dependente do dinheiro dos laboratórios farmacêuticos – embora isso tenha sido consideravelmente incrementado nos anos recentes.

Mas eu discordo da interpretação do Bob de que a APA seja poderosa o suficiente e inteligente o suficiente para haver vendido ao mundo o modelo biomédico e os excessivos tratamentos com drogas. Ao invés disso, eu vejo a APA como uma organização infeliz e trapalhona – não tão poderosa, e tampouco tão inteligente. O único poder real da APA é o seu controle do DSM, e mesmo isso é demasiadamente superestimado, porque os danos do DSM em sua maioria vêm do seu mau uso por poderosas forças externas. A APA é um alvo fácil, mas inútil. Eu mantenho que nós poderíamos descartar a APA e assim mesmo o mundo mudaria muito pouco.

O real gorila na sala é a Big Pharma. As empresas farmacêuticas são ricas, poderosas, inteligentes, e muito motivadas para gastar bilhões de dólares ao vender doenças e empurrando drogas. A massiva campanha de marketing da Big Pharma tem convencido o público e os médicos que as aflições e os problemas da vida cotidiana são realmente transtornos mentais não diagnosticados e causados por um desequilíbrio químico a requer um comprimido como solução. Algumas pessoas na APA ajudaram a promover essa visão, outros se opuseram a ela – ambas partes têm sido em grande parte irrelevantes. A verdadeira força de marketing está toda com a Big Pharma – na TV, nas revistas, na internet, e com as pessoas bonitas indo aos consultórios médicos para distribuir amostras grátis. E a Big Pharma tem tido sucesso em retirar a maior parte da psiquiatria das mãos dos psiquiatras – 80% dos remédios psiquiátricos são atualmente prescritos pelos médicos da atenção primária, com frequência após uma consulta de 7 minutos, para pacientes que não necessitam desses medicamentos.

Bob e eu concordamos fortemente com a meta de redução da medicação em excesso, mas discordamos no método. Ele pensa que isso possa ser alcançado pela domesticação do poder da psiquiatria. Eu penso que a luta contra a APA é uma distração inútil. O único meio significativo para conter a mania por consumo de medicação é pôr um fim em toda a propaganda da Big Pharma dirigida diretamente ao consumidor (apenas permitida nos Estados Unidos e na Nova Zelândia), bem como proibição a todo marketing voltado aos médicos. Essa estratégia de colocar um fim à propaganda de marketing – que funcionou para conter até há pouco a inexpugnável Big Tobacco – poderia igualmente funcionar para dar um stop na Big Pharma e proteger as pessoas das pílulas que não necessitam.

O papel da medicação

Bob aceita que a medicação seja ocasionalmente necessária, mas lê a literatura, na qual eu acredito, de um modo parcial, enfatizando seus danos e minimizando seus benefícios. Bob acredita que a medicação possa com frequência ser substituída por abordagens fortalecedoras das capacidades dos sujeitos e de natureza psicossocial.

Eu não poderia concordar ainda mais com o Bob, quando ele diz que a medicação é usada com muita frequência por pessoas que não necessitam dela; mas minha experiência clínica, minha experiência em pesquisa, e meu conhecimento da literatura, convencem-me que a medicação tenha um papel essencial na estabilização das pessoas durante o que com frequência são episódios agudos de psicose e também para a redução dos riscos de recaída. Bob e eu concordamos que muitas pessoas levam bem as suas vidas em longo prazo sem remédios, mas eu acredito que é arriscado e clinicamente não razoável argumentar contra a medicação para pessoas no meio de um episódio agudo de psicose.

O testemunho de muitas pessoas que eu tenho encontrado no Hearing Voices e Mad in America é evidência convincente de que elas próprias não necessitaram da medicação que lhes foi prescrita e que ficaram muito melhores sem ela. Isso vai ao encontro da minha própria experiência com centenas de pacientes medicados em excesso – a ´des-prescrição´ com frequência resultou em remarcáveis melhorias. Mas isso não é generalizável para todos. Não há uma regra que sirva para todos, e há pessoas que desesperadamente necessitam de medicação e que ficam terrivelmente mal sem ela.

O que nos leva ao que acredito seja de longe o maior problema ético enfrentado por todos nós – o fato que no mínimo 300.000 pessoas com graves problemas psiquiátricos se encontram inadequadamente presos e que mais que 250.000 estão nas ruas. Esses não são criminosos comuns, como Bob parece assumir. O fechamento de 600.000 leitos psiquiátricos durante os últimos 50 anos, sem a provisão de serviços comunitários adequados e habitação, tem resultado em uma criminalização bárbara do doente mental.

Isso tem sido exacerbado pela política da ´janela quebrada´ das polícias que tem se espalhado a partir da cidade de Nova York para muitas jurisdições pelo país afora. A teoria é que os crimes maiores podem ser prevenidos pelo aumento do senso de ordem na comunidade, e que isso seja melhor alcançado pelo rigoroso encarceramento das pessoas que cometeram ofensas, mesmo que pequenas. O ônus mais pesado cai no doente mais grave que geralmente é pego por delitos incômodos – furto de comida, gritar á noite, dormir num banco da praça – que poderiam facilmente serem evitados se elas contassem com um lugar para viver, bem como serviços e tratamento adequados.

Os policiais são forçados a estar na linha de frente das respostas dadas, como socorristas, porque os serviços são frágeis. Eles aprenderam a não incomodar levando doentes mentais aos hospitais, devido a que lá não há leitos, não há serviços, e somente há uma inútil consulta agendada para um futuro distante. A cadeia parece ser a única opção e leva a horríveis abusos coercitivos. E algumas vezes o resultado é ainda pior. Policiais ficam assustados com aqueles entre os doentes mais graves que são psicóticos e agitados. Demasiadas vezes isso resulta em puxar de uma arma; algumas vezes resulta em morte.

Assim eu sinceramente apoio a cruzada do Bob contra a medicação em excesso quando ela é inapropriada, mas me preocupo que ela possa ser danosa quando estendida a aqueles que realmente necessitam de medicação para estabilizar sintomas que de outra forma os levam às prisões ou para viver nas ruas. Minha aposta é que se o Bob dispor de tempo para ir a salas de emergência, prisões e com população de rua, ele provavelmente irá concordar comigo com relação aos casos individuais. É sempre mais fácil recomendar contra a medicação no abstrato do que se defrontar com pessoas que têm em sua vida real crises psiquiátricas. E todos podemos unir forças para dar suporte a habitação adequada como um primeiro e necessário e indiscutível passo.

  • O papel do tratamento involuntário

Bob e eu concordamos no papel crucial de capacitar as pessoas com problemas psiquiátricos. Eu tenho escrito há trinta anos a respeito da necessidade de decisões negociadas de tratamento, que permitam os pacientes a escolha do que mais se adeque a elas entre as opções disponíveis. A cruzada corajosa de Tom Szasz contra o tratamento involuntário atingiu absolutamente o alvo quando 650.000 pessoas estavam involuntariamente e desumanamente internadas em hospitais do estado. Mas os tempos mudaram dramaticamente. As coisas estão muito diferentes agora quando 90% daqueles leitos estão fechados e que há dez vezes mais pacientes em prisões do que em hospitais. É hoje muito mais difícil entrar em um hospital do que sair dele. As permanências em hospitais são mais ou menos por uma semana; na prisão pode durar anos.

E as condições em uma prisão para um doente mental grave são degradantes e ultrajantes. Eles não se adaptam à rotina da prisão e desproporcionalmente são jogados em um confinamento solitário – o que pode levar qualquer um à loucura e ser devastador para aqueles que estão comprometidos com o teste da realidade. Muitos se jogam contra as paredes, se borram com os próprios excrementos ou se encontram como zumbis graças à medicação. A cada ano 200.000 estupros ocorrem nas prisões – e aqueles com problemas psiquiátricos são os mais vulneráveis. Eles são com frequência vítimas de abuso físico.

Assim eu entusiasticamente dou apoio à meta do Bob de amentar a capacidade das pessoas para melhor lidarem com as suas vidas, mas eu penso que ele erra no alvo. A coerção psiquiátrica foi outrora uma esmagadora ameaça, mas agora a luta primária deve ser contra a criminalização cruel da doença mental e a coerção muito mais horrível que se segue a isso. A coerção psiquiátrica é raramente necessária quando há serviços apropriados disponíveis, e deve ser usada somente para prevenir uma coerção muito pior imposta pela prisão.

Bob é provavelmente muito modesto para reconhecer que ele é no momento uma das mais poderosas vozes no país, influenciando tanto atitudes quanto políticas. Meu apelo é para que ele use o seu poderoso púlpito para defender as pessoas mais vulneráveis e negligenciadas e coagidas em nosso país – aqueles com problemas psiquiátricos graves que se encontram inapropriadamente em prisões e nas ruas. Triste dizer isso, mas hoje é a polícia e as associações dos delegados que são os que mais dão apoio ao crescente financiamento da saúde mental para acomodar as necessidades desesperadoras do doente mental. Não deveriam o Bob e o Mad in America estarem focalizando sua atenção na real e horrível prisão coercitiva e na experiência de rua de hoje, ao invés de continuarem na batalha contra a coerção psiquiátrica do passado? E o que dizer de se ir atrás do verdadeiro motor da medicação excessiva – os poderosos laboratórios farmacêuticos que ganham tão desregradamente com o tráfico de drogas!

A Resposta de Robert Whitaker

Em seu post, Allen Frances levanta quatro pontos para discussão:

  • A importância – ou a relativa não-importância – da Associação da Psiquiatria Americana e da psiquiatria acadêmica na criação do sistema de cuidados que atualmente temos.
  • O papel dos medicamentos psiquiátricos.
  • O encarceramento das pessoas com doenças mentais e a falta de moradia para essa população.
  • O tratamento involuntário.

Esses são grandes tópicos, mas eu tentarei cobri-los um por um.

  1. O poder da APA e da Psiquiatria Acadêmica

Meu próprio pensamento acerca desse assunto durante os vários últimos anos tem sido refinado pelo tempo que passei como bolsista no Edmond J. Safra Research Lab on Institutional Corruption da Universidade de Harvard. O laboratório, sob a direção de Lawrence Lessig, criou um quadro de referência para a investigação de instâncias de ´corrupção institucional´ em nossa sociedade, e eu gastei os últimos dois anos escrevendo um livro em coautoria sobre o comportamento da Associação da Psiquiatria Americana – e a psiquiatria acadêmica nos EUA – através dessas lentes. A minha coautora, Lisa Cosgrove, professora de psicologia na Universidade de Massachusetts Boston, fez uma pesquisa sobre a influência da indústria farmacêutica na psiquiatria. Ela tem sido bolsista no laboratório Safra há vários anos.

Em nosso livro, que tem com título Psychiatry Under Influence: Institutional Corruption, Social Injury and Prescriptions for Reform, nós focalizamos o comportamento da APA e da psiquiatria acadêmica desde 1980. Esse é o ano em que a APA publicou a terceira edição do seu Manual de Diagnóstico e Estatística, e esse é o momento em que a APA adotou um modelo de doença para a categorização dos transtornos psiquiátricos.

Foi uma decisão fatídica, e que certamente não foi feita pelas empresas farmacêuticas. A APA assim procedeu por uma variedade de razões: houve um impulso científico por detrás desse movimento, o qual serviu igualmente aos interesses da APA enquanto corporação, que na época estava em competição com outras profissões por pacientes. E como os autores do DSM III admitiram, a maioria dos diagnósticos no Manual eram para ser consideradas hipóteses, assim como que ainda deveriam ser ‘validadas’. O pensamento era que a pesquisa deveria corroborar os diagnósticos ditos como doenças ‘reais’.

Contudo, uma vez que a APA publicou o DSM III, ela começou regularmente a conduzir campanhas ‘educativas’ que foram desenhadas para vender esse novo modelo de doença ao público. E a estória que a APA começou a dizer foi essa: que os transtornos psiquiátricos passaram a ser reconhecidos como doenças do cérebro; que os pesquisadores psiquiátricos fazem grande progresso em identificar a biologia dos transtornos mentais; que esses transtornos são com frequência ‘mal reconhecidos’ e ‘não tratados’; e que drogas para esses tratamentos são muito seguras e efetivas.

A estória de desequilíbrio químico trouxe todos esses elementos narrativos juntos. Seria agora aparentemente conhecida a etiologia de muitos transtornos mentais, e a psiquiatria passou a contar com drogas que corrigem essas anormalidades, como a insulina assim o faz para o diabetes. Trata-se de uma estória a falar de um extraordinário avanço científico. As empresas farmacêuticas então passaram a explorar essa estória para vender suas drogas, mas foi a APA e a psiquiatria acadêmica que forneceu isso – e a estória do modelo de doença mais amplo – com uma legitimidade científica.

Essa narrativa fundamentalmente mudou a nossa sociedade. Mais do que dez por cento de nossas crianças em idade escolar são agora diagnosticadas com um transtorno mental, e um em cada cinco adultos agora toma uma droga psiquiátrica diariamente. E isso tudo poderia ficar bem se a estória do modelo de doença que é dita ao público estivesse fundamentada na ciência. Infelizmente, a ciência tem estado de fato a contar uma estória bem diferente.

A estória dita na literatura científica tem sido essa: a pesquisa tem fracassado em ‘validar’ os transtornos do DSM; a hipótese do desequilíbrio químico não foi demonstrada; e a etiologia dos transtornos mentais permanece desconhecida. Prozac e outros antidepressivos SSRI fornecem pequeno benefício comparado com o placebo, para aqueles com depressão leve à moderada; os antipsicóticos atípicos não são melhores do que os antipsicóticos da primeira-geração. Enquanto isso, os estudos de longo-prazo dos tratamentos com drogas para TDAH, depressão e esquizofrenia fracassam em mostrar que as drogas promovam um benefício, com resultados para pacientes não medicados em estudos na depressão e esquizofrenia melhores do que aqueles encontrados em pacientes medicados.

Que seja a ‘corrupção’ que tem causado tantos danos em nossa sociedade: desde 1980, a APA e a psiquiatria acadêmica não têm cumprido com a sua obrigação pública de dizer-nos o que a ciência tem revelado a respeito do seu modelo de doença. Como resultado, a nossa sociedade tem organizado seu tratamento de transtornos psiquiátricos – e suas políticas e leis nesse domínio – ao redor de uma estória falsa, uma estória de um modelo de doença sendo validado e de tratamentos medicamentosos que são muito efetivos e seguros. Enquanto a indústria farmacêutica tem desempenhado seguramente um papel em dizer essa falsa estória, é a psiquiatria enquanto uma profissão médica que tem dado a isso credibilidade pública.

Deste modo, eis aí a minha discordância com Allen Frances nesse primeiro ponto. Ele vê a APA como uma organização “triste e atrapalhada” e assim tem sido principalmente um espectador inocente, com a corrupção surgindo de uma poderosa indústria farmacêutica. Eu não sei se a APA deva ser considerada como uma organização “triste”, mas eu sei bem o seguinte: a nossa sociedade tem olhado a APA e a psiquiatria acadêmica como a instituição médica que deve governar o pensamento da nossa sociedade a respeito da atenção psiquiátrica. Sim, a indústria farmacêutica é uma força poderosa, mas é a instituição médica que é vista como a autoridade ‘confiável’ pela sociedade. E se nosso sistema de atenção é uma bagunça hoje, então que o fracasso em última instância possa ser rastreado até a APA e à psiquiatria acadêmica, por dizerem uma estória que tem beneficiado os interesses corporativos do campo, mas que não tem tido um registro confiável da ciência.

Mas aqui é onde eu concordo com Allen Frances: a APA perdeu sua credibilidade enquanto “fiador do sistema de diagnóstico e que deveria perder a franquia do DSM para uma nova entidade neutra, com bases mais amplas, mais competente e não financeiramente interessada”. Eu não poderia estar mais conforme com isso. Nossa sociedade necessita de uma nova ‘confiança pública’ que nos dê um novo ‘manual de diagnóstico’ para pensar a respeito dos transtornos psiquiátricos. O atual manual do DSM deve ser jogado fora (aliás, o próprio diretor do NIMH Thomas Insel escreveu sobre isso recentemente), e um novo grupo multidisciplinar deveria assumir a tarefa de elaborar um novo.

  1. O Papel dos Medicamentos Psiquiátricos

Eu escrevi a esse respeito extensamente em meu livro Anatomy of an Epidemic. E aqui está o meu desacordo com Allen Frances nesse ponto: eu não penso que o problema seja simplesmente o da ‘supermedicação’, que faz parecer que quando as pessoas são “diagnosticadas apropriadamente” as drogas necessariamente forneçam um benefício claro. Eu penso que a ciência está dizendo à nossa sociedade que os medicamentos não encontram esse padrão de “eficácia”, e assim o nosso uso dessas drogas necessita ser fundamentalmente repensado.

Aqui está um somatório rápido da ‘base de evidências’ para drogas psiquiátricas. Em ensaios de curta duração, há evidências da eficácia desses drogas (pelo menos em uma certa extensão). Há também pessoas que se sentem bem com o uso em longo-prazo, e que atestarão isso. Não obstante, sobre o longo-prazo, eu acredito que haja clara evidência na literatura científica do que se segue:

  • Antipsicóticos, antidepressivos e benzodiazipínicos aumentam a cronicidade dos transtornos para os quais elas são usadas para tratar, e aumentam o risco de que uma pessoa se torne ‘dependente dos sistemas de previdência social’.
  • Estimulantes fracassam em prover um benefício de longo-prazo às crianças diagnosticadas com TDAH, e assim, uma vez que seus riscos são considerados, causam mais danos do que benefícios em longo-prazo.
  • O coquetel de drogas dadas aos pacientes bipolares é associado com uma notável piora dos resultados de longo-prazo, particularmente em termos de como os pacientes funcionam.

Dada essa base de evidência, eu creio que protocolos para a prescrição de drogas necessitam ser modificados radicalmente. O protocolo para o uso de antipsicóticos na abordagem do Diálogo Aberto no norte da Finlândia fornece um modelo para rivalizar. Tentar minimizar o uso das drogas em casos de primeiro episódio (e assim empregar primeiramente outros tratamentos não-medicamentosos), e quando as drogas são usadas, tentar minimizar o seu uso a longo prazo. O protocolo no norte finlandês é melhor descrito como sendo um protocolo de uso seletivo, que tem produzido resultados acentuadamente superiores aos nossos, e, por conseguinte, há uma racionalidade ‘baseada em evidências’ para o uso de drogas nessa maneira.

Allen Frances escreve que ele pensa que eu “esteja lendo a literatura’ de um “modo parcial enfatizando seus danos e minimizando seus benefícios”. Aqui está o que a psiquiatria pode fazer para provar o tal: ela pode apontar uma pesquisa que mostre que as medicações melhoram os resultados a longo-prazo, e que melhora o funcionamento das pessoas assim tratadas. Eu publiquei Anatomy faz cinco anos, e estou ainda aguardando tal evidência.

Frances também escreve que a solução para ‘supra-medicação’ do povo dos Estados Unidos é interromper a propaganda direta ao consumidor e o marketing da indústria de drogas junto aos médicos. Esse poderia ser um bom passo, mas eu penso que a solução real seria que a APA e a psiquiatria acadêmica incorporem os resultados dos dados de longo-prazo em suas diretrizes para o atendimento clínico. Se eles assim o fizerem, eu penso que eles encontrariam fortes razões para alterarem radicalmente seus protocolos para a prescrição desses drogas.

  1. O encarceramento das pessoas com doenças mentais (e o problema da população de rua)

Primeiramente, comecemos com uma perspectiva ampla. Os Estados Unidos encarceram seus cidadãos em uma taxa mais elevada do que a de qualquer país no mundo (conforme um estudo de 2013). Nós temos cinco por cento da população do mundo e assim mesmo nossos cidadãos compõem 25% do total da população de presos no mundo. Por conseguinte, o problema que estamos falando aqui é não apenas o ‘encarceramento’ do ‘doente mental’, mas um problema de uma sociedade que encarcera pessoas a uma taxa grotesca.

Em segundo lugar, o termo ‘doente mental’ hoje é tão vago, impreciso, que a ele falta um real significado. A APA, através do seu DSM, constrói definições de ‘transtornos mentais’ a tal ponto que mais de 30% dos estadunidenses são tidos como a sofrer de um surto de doenças mentais a cada ano. Comportamentos indesejados – transtorno desafiador opositivo e TDAH em crianças, abuso de substância nos adultos, etc. – ganham classificação de doença mental. Dadas tais definições, o que se pode esperar é que uma elevada percentagem de pessoas na cadeia e nos presídios possa estar a sofrer de algum diagnóstico de doença mental. De fato, é difícil se imaginar que possam haver muitos detentos que escapem a serem qualificados em algum diagnóstico do DSM. A minha questão aqui é a seguinte: quando nós ouvimos que as nossas cadeias e presídios estão ocupados por ‘doentes mentais’, eu honestamente não sei o que isso significa.

Contudo, eu não duvido que hajam pessoas ‘mentalmente perturbadas’ nas cadeias e nos presídios, e que muitos chegaram lá por crimes ‘incômodos’. Mas, dada a imprecisa definição de ‘doença mental’, eu não penso que tenhamos uma boa noção de quantas dessas pessoas nós estamos falando. Seria muito legal se ver pesquisas que investiguem quantas pessoas são diagnosticadas como ‘gravemente doente mental’ antes que sejam presas.

Além disso, qualquer investigação desse problema deveria olhar para essas duas questões. Muitas dos nossas prisões são hoje administradas de forma muito rude. Detentos são isolados por um longo período de tempo. Tal tratamento pode fazer com que a mais sã pessoa se torne louca. Seria em parte devido a isso que nós tenhamos tantos ‘doentes mentais’ em prisões? E ainda, aqueles que dirigem as prisões sabem que se os detentos são diagnosticados como doente mentais graves, o que torna possível colocá-los em antipsicóticos, isso fará com que seja mais fácil manejar os detentos. Não seria em parte por isso que nós escutamos que tantos detentos são doentes mentais?

Em terceiro lugar, a preocupação da psiquiatria com respeito ao encarceramento do doente mental está sendo usada para defender tratamento forçado dos que estão sendo tratados no território, como um Cavalo de Troia. Os defensores do tratamento forçado dos que estão em regime ambulatorial (tais como o Treatment Advocacy Center) argumentam que o tratamento medicamentoso forçado preveniria que o doente mental termine em uma prisão, e assim a sua legislação, que de fato inibe os direitos civis de cidadania de forma profunda, vem camuflada sob a roupagem retórica de ‘humanismo’. Se nós formos ter uma honesta discussão social a respeito da vergonha do encarceramento do ‘doente mental’, então será necessário estar completamente dissociado daquela agenda legislativa.

Na verdade, um argumento pode ser feito de que o crescente encarceramento do ‘doente mental’ seja ainda um exemplo de como o nosso paradigma de atenção baseado na droga tem nos enganado. O uso dos medicamentos psiquiátricos em nossa sociedade tem explodido nos últimos 25 anos; há uma grande pressão da sociedade para que se coloque as pessoas diagnosticadas com esquizofrenia ou transtorno bipolar a tomar seus medicamentos; e nós ainda temos esse problema de centenas de milhares de ‘doentes mentais’ em presídios e cadeias.

Contudo, eu concordo plenamente com Allen Frances nesse ponto: qualquer esforço para refazer a atenção em saúde mental nesse país necessita incluir como foco o que pode ser feito para ajudar as multidões de pessoas pobres e desprivilegiadas que manifestam estados emocionais de sofrimento nas salas de emergência e em abrigos para os sem teto, e o seu eventual encaminhamento para as cadeias e presídios. Mas, na minha opinião, se nós queremos encontrar uma solução, nós devemos focalizar em como fornecer moradia, suporte social e empregos que ajudem as pessoas a levarem uma vida plena de sentido. Se nós queremos reduzir o número de pessoas ditas serem doentes mentais nas cadeias, então nós devemos focalizar na redução da pobreza em nosso país. Substancialmente aumentando o salário mínimo, indubitavelmente esse seria um bom primeiro passo para se dar conta desse problema.

Em resumo, o tratamento medicamentoso forçado não é uma resposta ao problema da ‘prisão’; criar um sociedade mais justa e solidária sim. Eu também penso que nós poderíamos tomar emprestado uma página dos Quakers no começo dos anos 1800. Eles construíram asilos de terapia moral para a ‘loucura’, com a ideia que tais refúgios – onde as pessoas poderiam estar próximas à natureza e serem tratadas de uma maneira amável, humanista – poderiam, com o tempo, ajudar muitas pessoas a ficarem bem. Tais lugares seriam com certeza boas alternativas às cadeias e aos presídios, onde os detentos de hoje podem ficar isolados por 23 horas ao dia.

Tratamento forçado

Eu não penso que a ‘coerção psiquiátrica’, como Allen Frances escreve, seja principalmente uma coisa do “passado”. Eu penso que a coerção psiquiátrica, nas formas sutis e menos sutis, é mais do que nunca um problema. Nós temos a coerção sutil que ocorre nas escolas, quando professores e administradores que incentivam certos pais a começarem a tratar as crianças como portadoras de TDAH. Nós temos a dramática expansão da prescrição de antipsicóticos em situações que basicamente carecem de consenso: para fomentar o consumo entre crianças; entre os detentos; entre os pacientes ‘mentais’ em hospitais; e entre os idosos em casas de recolhimento. Finalmente, nós temos a aprovação de leis que autorizam ambulatórios estaduais que, em essência, forçam as pessoas a tomar medicamentos antipsicóticos.

Deveras, na medida em que há a popularização do diagnóstico do TDAH, e com a chegada dos antipsicóticos atípicos, a coerção psiquiátrica tem estado em marcha em nossa sociedade, tanto assim que paira como uma nuvem sobre a sociedade atual. Tal coerção é um marcador para uma sociedade com medo, menos livre e, portanto, se quisermos listar importantes batalhas a serem travadas hoje, eu argumento que a luta contra essa expansão de ‘coerção psiquiátrica’ deva estar no topo da lista.

Eu sou grato a Allen Frances por reavivar essa discussão/debate. Em essência, ela vai ao coração do que nós estamos tentando fazer com o madinamerica.com, e que é trazer à luz essas questões fundamentais, e que esperamos que se tornem melhor conhecidas pelo público.

Allen Frances é um clínico, educador, pesquisador e uma autoridade líder em diagnóstico psiquiátrico. Ele presidiu a força-tarefa do DSM-IV, foi membro da força-tarefa que preparou o DSM-III-R, e escreveu a versão final da seção sobre Transtornos de Personalidade no DSM-III. Ele é professor emérito e ex-chefe do Departamento de Psiquiatria e Ciências do Comportamento na Universidade Duke.

Robert Whitaker é jornalista, avaliador de relatórios em revistas médicas e os meios de comunicação sobre transtornos psiquiátricos e tratamentos. Autor de vários artigos sobre doença mental e a indústria farmacêutica. Autor de dois livros com impacto internacional, como Mad in America, Anatomy of an Epidemic, Psychiatry under the influence institutional corruption social injury and prescriptions for reform.

[trad. Fernando Freitas]