O trabalho ocupa atualmente uma função central na vida dos indivíduos, desta maneira, os mais diversos aspectos relacionados à atividade laboral ocasionarão demandas no campo da saúde mental. Analisar o trabalho em uma perspectiva psicossocial é uma das formas de considerar a realidade do trabalho como um conjunto de processos permeado por questões do contexto, das relações interpessoais estabelecidas e da trajetória individual de cada trabalhador.
Para compreender o sentido do trabalho em uma perspectiva psicossociológica no contexto atual – e toda a intensidade e predominância que ele representa – é preciso considerar não apenas que o seu papel é resultante dos vários momentos históricos que foram de diferentes maneiras, moldando a relação do indivíduo com o trabalho; como também é preciso compreender que é recente o entendimento de que o trabalho tem efeitos sobre a saúde mental, visto que o trabalho não está apartado das dimensões emocionais e cognitivas, mas na verdade, configura-se como um dos elementos centrais de expressão destas dimensões. Neste sentido, ao se falar do trabalho do ponto de vista psicológico é necessário considerar que o trabalho rege a vida, a organização do tempo, das relações interpessoais e dos grupos sociais, entretanto, por muito tempo o trabalho humano não foi pensado como parte da vida das pessoas e não era considerado fator importante na constituição da dimensão psíquica (Borsoi, 2007).
É importante compreender ainda que o trabalho demanda processos no âmbito psicológico tanto em função das implicações das condições de trabalho na saúde do trabalhador, como também em função da sua ausência, pois não compor o cenário do mercado de trabalho representa carência em vários âmbitos: do meio de subsistência, da forma de elaboração criativa, da organização do tempo, da perspectiva futura de sustento, da inserção em um grupo social, do desenvolvimento da carreira, da expressão da identidade – o que pode ocasionar sofrimento, além de exclusão social, pois quando o individuo encontra-se desempregado ou aposentado sente-se vulnerável em decorrência da ausência do trabalho. Tudo isto porque o trabalho não se restringe à satisfação das necessidades básicas, mas é também constituinte da identidade humana, favorece a autoestima, as potencialidades e o sentimento de pertença no meio social (Navarro & Padilha, 2007).
O trabalho é resultado dos esforços do ser humano para assegurar a satisfação de suas necessidades e sobrevivência e, de acordo com Ramos (2008), o trabalho data dos tempos mais remotos da história humana, porém nas sociedades antigas e pré-letradas não era institucionalizado, desta maneira, passou a ser tema de discussão a partir da industrialização, quando a produção exigiu que ele fosse mais eficiente e prático. Atualmente, o trabalho, quando formalizado configura-se como emprego – trabalhoconfigura-se como um esforço intencional que produz alteração no ambiente visto que tem o propósito de produzir transformação, neste sentido o trabalhopode ser remunerado ou não, como é o caso do trabalho informalou trabalho voluntário; já o empregoconfigura-se como a formalização, por meio de vínculo legal, da atividade de trabalho (Zanelli & Silva, 2008). A discussão aqui se refere ao trabalhoem qualquer uma de suas formas de expressão, independente de seu modelo adotado. Neste sentido, despendendo do formato executado, a ação de trabalharpode ser fonte de prazer a partir do momento que proporciona capacidade de transformação além da possibilidade de constantemente aprendizado, aquisição de conhecimento, invenção e modificação da natureza. Entretanto, o trabalho também pode gerar sofrimento, quando realizado em condições precárias, com falta de recursos financeiros, sob relações abusivas e falta de autonomia (Viana & Machado, 2011).
A compreensão da dimensão central do trabalho na vida humana levou a Psicologia, no percurso de seu desenvolvimento, a englobar o trabalho no seu escopo de estudo, tendo em vista que compreender a forma como os seres humanos vivenciam a ação de trabalhar possibilita uma melhor compreensão acerca do comportamento humano – o trabalho representa o elo entre as experiências pessoais e coletivas e, diante da ocorrência de intensas pressões por trabalho em todos os níveis hierárquicos nas organizações, da intensificação das mudanças tecnológicas, da concorrência globalizada e do desemprego estrutural, das cobranças contínuas pela resolução de problemas e obtenção de produtividade; as demandas relacionadas ao trabalho são processos de expressão de fragilidade e também de satisfação e prazer (Zanelli, 2010). Vale ressaltar que ainda atualmente grande parte dos profissionais do campo da saúde mental não se atenta ao fato de que, o indivíduo que busca suporte psicológico é um trabalhador ou alguém que vivencia a falta de trabalho, portanto, mesmo de forma indireta, muitos dos processos relacionados ao universo contemporâneo do trabalho estarão relacionados às suas queixas psíquicas elaboradas.
O estudo do sofrimento psicológico no campo do trabalho pode ser embasado em abordagens distintas – as Individualistas, as Psicossociológicas e a Psicodinâmica do trabalho. Na perspectiva das Abordagens Individualistasa explicação para o processo de saúde-doença no ambiente de trabalho tem o foco mais nas características pessoais do que nas condições de trabalho e na relação do trabalhador com a atividade; em relação às Abordagens Piscossociológicaso trabalho é visto como estruturante para o indivíduo e para a sociedade e, desta maneira, trabalhar é fonte de promoção de saúde e de construção da identidade, entretanto, pode também ser fonte de adoecimento – neste sentido, a explicação para o processo saúde-adoecimento tem o foco nas condições de trabalho, sendo este cenário eleito como origem do nexo causal entre trabalho/saúde-doença; com respeito à Psicodinâmica, a discussão sobre a saúde psíquica e o contexto do trabalho pauta-se na intenção em focar a saúde e as estratégias que os trabalhadores empregam para a manutenção da saúde, o trabalho tem um papel apenas desencadeador dos processos de fragilidade psíquica e o nexo entre a relação trabalho/saúde-doença não é centralizado (Borges, Guimarães & Silva, 2013).
Independente do olhar voltado para os problemas de ordem da saúde mental no contexto do trabalho é preciso considerar que tais alterações são resultado de um processo dinâmico composto por fatores de esfera biológica, psicológica e social e, portanto, necessitam de formas de atuação que proporcione a atenção à saúde, com vistas a criar estratégias de intervenções pautadas em prevenção, assistência e promoção da saúde, sob uma perspectiva ampla que integre diversas áreas do conhecimento demarcado pela interdisciplinaridade (Sato, Lacaz & Bernardo, 2006).
Os efeitos do trabalho nas esferas biológica, psicológica e social podem,por exemplo,ser observados nas atividades realizadas no turno noturno: as queixas sobre o cansaço físico, o estresse, a desregulação do ciclo do sono e os impactos gerados nos relacionamentos sociais (representados pela dificuldade em encontrar familiares, amigos, grupos de convivência, falta de energia para aproveitar as folgas em momentos de lazer), possuem relação com processos de adoecimento dos trabalhadores de diversas áreas, como os Serviços Gerais, os profissionais do setor Hoteleiro, os profissionais da Saúde e da Segurança (Belo, Costa, França, Nascimento e Pereira Neta, 2017). Tais trabalhadores exercem suas atividades vivenciando constantes riscos ocupacionais que podem ser caracterizados como ocultos, aqueles cujo trabalhador sequer desconfia de sua existência; latentes, àqueles que ocasionam danos em situação de emergência; reais, quando todos os envolvidos têm conhecimento de sua existência, porém, por seus custos serem elevados ou pela falta de interesse público em resolvê-los, estes riscos têm suas possibilidades de controle diminuídas (Bulhões, 1994).
Os diversos processos de preconceito e exclusão social também são responsáveis por vivências de fragilidade no contexto do trabalho, portanto, o estudo do preconceito é uma das formas de acesso a esta problemática. Neste aspecto o preconceito pode ser conceituado tanto em uma vertente da Cognição Social – com enfoques afetivos e emocionais, como em uma visão psicossociológica – com enfoque nos processos de exclusão e inclusão social na qual o preconceito é definido como uma forma de relação intergrupal organizada em torno das relações de poder entre grupos, produzindo representações ideológicas que buscam justificar a expressão de atitudes negativas e depreciativas, bem como a expressão de comportamentos hostis e discriminatórios (Camino & Pereira, 2000).
Nesta perspectiva o contexto do trabalho configura-se como um cenário de construção das representações discriminatórias com discursos hostis produzidos na dinâmica da interação social, constituindo-se assim como um elemento fundamental para que as representações sejam compartilhadas e também instituídas e reelaboradas.Os discursos são pronunciamentos sobre uma dada realidade e quando proferidos, trabalham com as ideias de seu tempo e da sociedade em que foram elaborados – discursos discriminatórios são capazes de moldar as ações discriminatórias dos indivíduos, inclusive de forma sutil, pouco reconhecível à primeira vista e expressado de várias maneiras no contexto laboral.
Discutir a respeito da importância da atenção à saúde mental no contexto do trabalho não se esgota nos aspectos aqui mencionados quando se chega à conclusão que falar em trabalho é falar em um processo central que solicita instâncias físicas, psíquicas e sociais, realizado, na maioria das vezes, em um contexto de precariedade. Diante disto, os profissionais da saúde mental necessitam estar atentos aos atuais marcadores sociais que regem as questões no campo do trabalho e, somado a isto, considerar a possibilidade de uma ligação entre a vivência do trabalho e as queixas da esfera psíquica.
Referências
Belo, R. P.; Costa, W. R. da; França, R. S. de; Nascimento, F. H. M. do e Pereira Neta, A. S. (2017). O trabalho noturno em diferentes campos de atuação: seus efeitos na saúde do trabalhador da cidade de Parnaíba-PI. Relatório do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica – PIBIC e Programa Institucional de Iniciação Científica Voluntária – ICV. Universidade Federal do Piauí.
Borges, L. de O.; Guimarães, L. A. M. e Silva, S. S. da (2013). Diagnóstico e promoção da saúde psíquica no trabalho. Em: L. Borges e L. Mourão, O trabalho e as organizações. Porto Alegre: Artmed.
Borsoi, I. C. F. (2007). Da relação entre trabalho e saúde à relação entre trabalho e saúde mental. Revista Psicologia & Sociedade, 19, 103-111.
Bulhões, I. (1994).Riscos do trabalho de enfermagem.2.ed. Rio de Janeiro: Editora Folha Carioca.
Camino, L. & Pereira, C. (2000). O papel de Psicologia na construção dos Direitos Humanos: Análise das teorias e práticas psicológicas na discriminação ao homossexualismo. Revista Perfil (13), 49-69.
Navarro, V. L. e Padilha, V. (2007). Dilemas do Trabalho no Capitalismo Contemporâneo. Psicologia e Sociedade; 19, Edição Especial 1, 14-20.
Ramos, G. (2008). Uma introdução ao histórico da organização racional do trabalho.Brasília: Conselho Federal de Administração.
Sato, L.; Lacaz, F. A. de C. e Bernardo, M. H. (2006). Psicologia e saúde do trabalhador: práticas e investigações na Saúde Pública de São Paulo. Estudos de Psicologia, 11(3), 281-288.
Viana, E. A. de S. e Machado, M. N. da M. (2011). Sentido do trabalho no discurso dos trabalhadores de uma ONG em Belo Horizonte. Psicologia & Sociedade, 23 (1), 46-55.
Zanelli, J. C. e Silva, N. (2008). Interação humana e gestão: a construção psicossocial das organizações de trabalho. São Paulo: Casa do Psicólogo.
Zanelli, J. C. (2010). Estresse nas organizações de trabalho: compreensão e intervenção baseadas em evidências. Porto Alegre: Artmed.