O trabalho em horário noturno e seus efeitos na saúde do trabalhador

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O trabalho é uma condição básica da sociedade. No que se refere ao trabalho realizado no horário noturno, este tem se desenvolvido desde a Revolução Industrial e fez parte do processo de urbanização. Na atualidade, as relações de produção acontecem no contexto da sociedade de 24 horas com o oferecimento de serviços em horários diferentes do horário comercial (Moreno, Fischer & Rotenberg, 2003) e necessita dos serviços de muitos trabalhadores, que por sua vez estão vulneráveis aos fatores psicossociais constituintes do processo de adoecimento. Para a Legislação Brasileira, o trabalho noturno é aquele que acontece no horário das 22 horas de um dado dia até às 05 horas do dia subsequente (Lei número 5.452/1943: Consolidação das Leis do Trabalho, Capítulo II – “Da duração no Trabalho”, Seção IV, Artigo 73, § 2º; BRASIL, 1943).

 

A fim de compreender os processos de trabalho em uma perspectiva psicossociológica é fundamental mencionar o quanto a vida de um trabalhador – em relação à saúde física, à saúde psíquica e também às relações interpessoais – pode ser afetada pelo exercício no horário noturno. De acordo com Izu, Cortez, Valente e Silvino (2011) no âmbito biológico os seres humanos possuem funções orgânicas regidas relógio biológico com seu modo de funcionar controlado pelo ritmo circadiano e sincronizado com os fatores ambientais e os fatores sociais. O ritmo circadiano se repete a cada vinte e quatro horas, rege o ciclo sono-vigília e está relacionado à duração do período de luz (Gomes, Quinhones & Engelbardt, 2010), sua desestruturação pode ter efeitos nos horários de alimentação, sono e lazer; pode ocasionar prejuízos orgânicos e psíquicos, impactos nas relações interpessoais em decorrência da dificuldade ou impossibilidade da interação social (Simões, Marques & Rocha, 2010). Portanto, os trabalhadores do horário noturno têm um desgaste psicofisiológico maior do que aqueles que trabalham durante o dia, pois trabalham no momento em que as funções orgânicas encontram-se diminuídas.

A partir destas considerações, foi realizada uma pesquisa que objetivou conhecer os efeitos do trabalho no horário noturno na saúde dos trabalhadores de diferentes ramos de atuação – Hotelaria, Saúde, Segurança e Serviços Gerais. Foi elaborado um roteiro de entrevista semiestruturada que abordava questões referentes à escolha profissional, à conciliação do horário de trabalho e relações familiares, às mudanças ocasionadas em função da atuação no horário noturno, à possibilidade de realização das atividades de lazer, aos aspectos positivos e negativos em trabalhar no horário noturno. Participaram 19 Auxiliares de Serviços Gerais – ASG (Nascimento, Belo, Pereira Neta, Sales & Sales, 2017), 25 profissionais da área da Saúde (Costa, Belo, Sales, Sales & Rodrigues, 2018), 19 profissionais do ramo Hoteleiro (Pereira Neta & Belo, 2017) e 20 profissionais da área de Segurança (França & Belo, 2017). Para a análise dos discursos elaborados foi realizada Análise de Conteúdo (Bardin, 2011) e posteriormente utilizado o software IRAMUTEQ – Interface de R pour analyses Multidimensionnelles de Textes et de Questionneires, versão 0.7 (Camargo & Justo, 2013).

De forma geral os dados indicaram vivências de fragilidade na saúde em decorrência das perdas ocasionadas pelo horário de trabalho. Em relação aos ASG`s (Nascimento, Belo, Pereira Neta, Sales & Sales, 2017), trabalhar no horário noturno demonstrou ocasionar alterações e privação no sono; presença de cansaço e estresse – “A gente que trabalha à noite exige muita energia, a nutricionista me falou que à noite o corpo pede descanso e como não dá, o corpo sofre as consequências”; inversão dos padrões de sono-vigília – “A gente fica mais cansada e estressada, o sono que se perde é o melhor”. Outro aspecto mencionado diz respeito às relações sociais afetadas – “Minha família reclama porque quando estou em casa estou deitada, nunca quero sair”, a respeito disto, Spector (2006) comenta que os prejuízos sociais relacionados à jornada noturna faz com que muitos destes trabalhadores adotem a estratégia de sono diurno, o que tem reflexo no âmbito da vida social à medida que provoca o isolamento do trabalhador com a família e com o círculo de amigos. Os ASG`s que participaram da pesquisa, em sua maioria, prestavam serviços em hospitais do setor público em regime de plantão por 24 horas, desta maneira muitos destacaram os riscos dos acidentes envolvendo materiais perfuro cortantes, o que ocasiona tensão no grupo.

No caso dos profissionais da área de Saúde (Costa, Belo, Sales, Sales & Rodrigues, 2018), também foram comentadas vivências referente à alteração do ciclo circadiano em relação ao sono e o quanto isto contribui para o cansaço mental – “A falta da qualidade do sono compromete os meus três dias seguintes porque é tenso, o ambiente não favorece”; além disto, em relação à qualidade do sono, a maioria dos respondentes disse ter dificuldades para dormir ou acordam várias vezes durante a noite, o sono, por isto, não é relaxante, não alcança a fase Rapid Eye Moviments– REM. Somado a isto, a maioria dos entrevistados mantêm mais de um vínculo empregatício, fator que compromete a recuperação das horas de sono não dormidas nas noites de trabalho – “Noite é feita para você dormir e é um sono que você não recupera e às vezes eu amanheço com dor de cabeça porque eu tenho que ir para outro local de trabalho. Tudo isto dificulta a possibilidade também de ficar mais tempo em casa para descansar e aproveitar o convívio com a família – “Eu estou pagando ultimamente para justamente ficar em casa, aí às vezes eu tenho que trocar para ficar mais tempo em casa porque eu acho melhor”. Por meio das respostas foi comentado que, trabalhar à noite, na maioria dos casos, não foi uma escolha, mas uma imposição da organização ao elaborar a escala de trabalho – “Se eu pudesse escolher eu não dava plantão noturno não, dorme mal, tem o problema de no outro dia você estar cansado”. Os entrevistados julgam como consequência do trabalho em horário noturno os sintomas de labirintite, o aumento do peso, o estresse, a fraqueza no corpo e as dores na coluna; também foi informado o uso de analgésico e relaxante muscular.

Em relação aos profissionais do setor Hoteleiro (Pereira Neta & Belo, 2017), estes optaram pelo trabalho em horário noturno devido à menor demanda de atividades, o que faz com que o horário noturno seja mais tranquilo quando comparado ao turno diurno – “Antes de vir para cá eu trabalhava em outro hotel, então eu escolhi à noite porque é mais tranquilo”. No que concerne aos efeitos do trabalho noturno na saúde dos trabalhadores, foi mencionado o impacto do trabalho noturno nas esferas biológica, psicológica e social, em função da dificuldade em conciliar o trabalho com as relações sociais, da dificuldade do contato com os amigos e ainda a existência do constante cansaço físico e mental – “Passei a sentir muito mais sono, muito estresse, devido ao cansaço passei a me irritar por qualquer coisa”; “O mais negativo é perda de sono, e em alguns casos, perda de concentração”. Foi também comentada a mudança na rotina, agravada por um fator inerente ao setor hoteleiro: a alta estação, que em função do aumento da demanda de trabalho tem reflexo não apenas no sono, mas também nos horários da alimentação – “Em altas temporadas é muito corrido e acontece às vezes de chegar em casa me sentar e dormi no sofá e perder a hora de me alimentar”. Ademais, os trabalhadores do setor hoteleiro se submetem às longas e intensas jornadas de trabalho, visto que este setor oferece serviços ininterruptos que se estendem aos fins de semanas e feriados – “A gente não aproveita os feriados, nem fim de semana, carnaval, porque são os hotéis que hospedam os turistas, aqui é sempre lotado, aqui é igual a um hospital, não fecha nunca. Com esse trabalho me sinto apenas máquina, porque não tenho vida social, se eu for atrás do meu cansaço e só dormir, aí mesmo é que me isolo”. Como estratégia para enfrentar tal situação, muitos dos respondentes usam as redes sociais para manter o contato com os amigos e familiares – “Só nas folgas que são três dias seguidos no mês, aí dá para eu ver a família e os amigos. Eu uso internet, telefone, WhatsApp. Passei a perder os aniversários, me afastou dos amigos. Outra dificuldade enfrentada por parte dos trabalhadores noturnos do setor hoteleiro se refere aos problemas em relação ao lazer, os entrevistados declararam que no tempo livre preferem ficar em casa – “Lazer nem tenho, é raro”.

No contexto de trabalho dos profissionais de Segurança (França & Belo, 2017), algumas das falas a respeito das atividades extras trabalho demonstram que os momentos de folga são organizados em função de atividades esportivas e contato com familiares e amigos – “Apenas faço atividade física, encontro os amigos de forma esporádica”; “Futebol, academia, na hora que eu chego eu levo logo minha filha para a escola, aí durmo e acordo para buscar”; deste modo as atividades físicas, são consideradas lazer, entretanto, a maioria desta prática acontece em função do trabalho, o que sugere que os horários de folga acabam sendo uma extensão do trabalho. Especificamente, neste grupo de entrevistados existe uma constante preocupação, mesmo nos momentos em que se está fora do trabalho – “Você não pode levar o trabalho para dentro de casa, mas quando a roda de amigos é do trabalho, o assunto é ocorrência”. Neste grupo foi mencionado como aspecto positivo o ganho salarial por conta dos adicionais noturnos e de periculosidade e/ou insalubridade, obtidos em função do serviço prestado durante a noite. Por outro lado, foi também mencionado ser necessário ficar acordado todo o tempo, o que é entendido como algo ruim – “O estresse é maior à noite, é mais fácil pela manhã. Questão da visibilidade, a criminalidade prefere agir mais à noite, é mais complicado”; a alteração na saúde – “Primeiro pela questão do sono, problemas no estômago que eu tinha antes que piorou porque tomo muito café, refrigerante e salgados, é o que a gente encontra à noite pra comer. Agora tenho problemas de concentração, porque o trabalho te deixa alerta e pela perda de sono não consigo mais me concentrar facilmente, então qualquer barulho distrai”; o constante estado de alerta, mesmo quando está de folga – “Quando a gente está fora do serviço continua alerta. Qualquer coisa a gente está em alerta”.

Diante dos resultados, que em função da categoria laboral apresentaram algumas especificidades, foi possível concluir que o trabalho realizado no horário noturno repercute na saúde dos trabalhadores. As queixas circundaram fazendo referência tanto à dimensão física quanto psíquica, sendo citado o estresse, a desregulação do ciclo do sono-vigília, os impactos gerados nos relacionamentos sociais e a falta de energia para aproveitar as folgas em momentos de lazer: foi possível perceber uma visão negativa do trabalho no horário noturno em decorrência da inversão dos padrões de sono-vigília, o que ocasiona o cansaço físico e mental. Além disto, os discursos elaborados por parte dos trabalhadores demonstram que o trabalho figura, para a maioria dos profissionais, como fundamental, como algo pelo qual têm paixão e dedicam-se com afinco, ficando clara a centralidade ocupada pelo trabalho na dinâmica de suas vidas (França & Belo, 2017). Sabe-se que o trabalho, em função das condições de trabalho existentes, pode ser gerador de sofrimentos e de adoecimentos, mas pode também ser espaço de satisfação. Neste aspecto, é fundamental ação da Psicologia nos contextos organizacionais, pois tem muito a contribuir no planejamento e desenvolvimento de intervenções voltadas à prevenção de fatores de risco à saúde psíquica dos trabalhadores.

Referências

Bardin, L. (2011). Análise de Conteúdo. São Paulo: Edições 70

Brasil. Presidência da República. Decreto-Lei nº. 5.452, de 1º de maio de 1943. Brasília, 2017. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del5452.htm.

Camargo, B. V., Justo, A. M. (2013). IRAMUTEQ: Um Software Gratuito para Análise de Dados Textuais. Temas em Psicologia, 21 (02), 513-518.

Costa, W. R.; Belo,R. P.; Sales, M. S.; Sales, I. C.; Rodrigues, P. N. V. (2018). Trabalho noturno: seus efeitos na saúde dos trabalhadores da área de saúde. Perspectivas online: humanas e sociais aplicadas, 08, 37-50.

França, R. S. de e Belo, R. P. (2017).Trabalho noturno: seus efeitos na saúde dos trabalhadores da área de Segurança na cidade de Parnaíba-PI. Relatório Final do Programa Iniciação Científica Voluntária – ICV, Universidade Federal do Piauí.

Gomes, M. M.; Quinhones, M. S. e Engelhardt, E. (2010). Neurofisiologia do sono e aspectos farmacoterapêuticos dos seus transtornos. Revista Brasileira de Neurologia, 46 (01).

Izu, M.; Cortez, E. A.; Valente, G. C. e Silvino, Z. R. (2011). Trabalho noturno como fator de risco na carcinogênese. Ciencia y Enfermería, 17 (03), 83-95.

Moreno, C. R.; Fischer, F. M. e Rotenberg, L. (2003). A saúde do trabalhador na sociedade 24 horas. São Paulo em Perspectiva, 17 (01), 34-46.

Nascimento, F. H. M.; Belo, R. P.; Pereira Neta, A. S.; Sales, M. S. e Sales, I. C. (2017). Trabalho Noturno: Seus efeitos na saúde dos trabalhadores de Serviços Gerais. Rede de Estudos do Trabalho – RET, 21, 1-25.

Pereira Neta, A. S. e Belo, R. P. (2017). Trabalho Noturno: seus efeitos na saúde dos trabalhadores do ramo Hoteleiro na cidade de Parnaíba-PI. Relatório Final do Programa Iniciação Científica Voluntária – ICV, Universidade Federal do Piauí.

Simões, M. R. L.; Marques, F. C. e Rocha, A. M. (2010). O trabalho em turnos alternados e seus efeitos no cotidiano do trabalhador no beneficiamento de grãos. Revista Latino-Americana de Enfermagem, 18 (6), 01-07.

Spector, P. (2006). Psicologia nas organizações. São Paulo: Editora Saraiva.