Como a Casa Soteria Cura?

O modelo de tratamento alternativo da Soteria ajuda indivíduos que sofrem de esquizofrenia sem depender de medicamentos ou de coerção

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Um artigo recente publicado na Psychopathology explora os fatores de cura associados à abordagem alternativa de Soteria para o tratamento da psicose. O modelo Soteria baseia-se em relacionamentos pessoais, atividades interativas e no uso mínimo de medicamentos psiquiátricos em uma confortável ‘comunidade viva’, em oposição a um ambiente psiquiátrico convencional. Os autores explicam como esses fatores promovem a cura de indivíduos que sofrem da síndrome da esquizofrenia.

“Soteria representa uma abordagem alternativa ao tratamento da psicose aguda, proporcionando um ambiente social baseado na comunidade, relacionamentos pessoais (‘estar com’) e atividades compartilhadas significativas (‘fazendo com’) com uso mínimo de medicamentos neurolépticos”, escrevem o Dr. Daniel Nischk e Dr. Johannes Rusch. 

Image by Denise Husted from Pixabay

A história de Soteria enquanto abordagem em saúde mental remonta a 1971, quando o Dr. Loren Mosher, do Instituto Nacional de Saúde Mental (NIMH), abriu a primeira ‘Casa Soteria’ em Santa Clara, Califórnia. Embora as ideias radicais de Mosher tenham levado à sua renúncia do NIMH, seu trabalho se expandiu em todo o mundo, com casas na Hungria,Vermont e Israel, para citar algumas.

Soteria é bem conhecida por sua abordagem não médica, proporcionando aos que têm experiências de psicose aguda um ‘porto seguro’ durante esses estados extremos difíceis. Essa abordagem não médica inclui uma residência confortável e familiar, equipe assistencial formada por leigos e envolvimento em atividades e relacionamentos da vida cotidiana, em oposição à situação artificial de uma enfermaria psiquiátrica ou de serviços assistenciais no chamado ‘território’.

Pesquisas da Soteria House original apontaram resultados positivos, como benefícios relacionados à psicopatologia, trabalho, funcionamento social e a interrupção de medicamentos psiquiátricos.

Os princípios centrais de Soteria foram desenvolvidos por Loren Mosher e Luc Ciompi há mais de 30 anos e incluem:

  1. “A provisão de um pequeno ambiente terapêutico comunitário (semelhante a uma comunidade viva);
  2. Uma proporção significativa de funcionários leigos;
  3. A preservação do poder pessoal, das redes sociais e das responsabilidades comunitárias;
  4. Um estilo relacional ‘fenomenológico’, que visa dar sentido à experiência subjetiva de psicose de uma pessoa, desenvolvendo uma compreensão dela por ‘estar-com’ e ‘fazer-com’ os clientes; e
  5. Nenhum ou senão um antipsicótico em baixa dose, com todos os medicamentos psicotrópicos sendo tomados por opção e sem coerção.”

O artigo atual utiliza a fenomenologia e uma análise do ambiente social da casa da Soteria para descobrir os mecanismos de cura do modelo de tratamento. Muitas das idéias dos autores são derivadas da experiência com a Soteria House Reichenau na Alemanha, bem como de relatos publicados anteriormente sobre o modelo da Soteria. Os autores descrevem um entendimento fenomenológico da esquizofrenia, seguido de uma análise de como o ambiente de Soteria oferece uma oportunidade para os indivíduos recomporem um sentimento desordenado de si com segurança.

O Dr. Nischk e o Dr. Rusch começam explicando que alguns profissionais veem a esquizofrenia como um “distúrbio do eu mínimo ou essencial”. Em outras palavras, o sentimento subjacente de ser um “eu” capaz de pensar, sentir e agir por si próprio é perturbado. Isso leva a uma organização caótica da realidade, da flutuação da autoconsciência à dificuldade de navegar em um mundo social compartilhado com os outros. Experiências psicóticas anômalas, como delírio e paranoia, são descritas como uma tentativa de dar sentido a essa relação eu-mundo que se encontra desordenada.

“A partir desses distúrbios básicos, uma série de alterações experimentais consequenciais e compensatórias pode se desenvolver, incluindo um senso anormal de consciência e presença, experiências corporais alteradas e uma distinção frágil entre si e o outro”.

Os autores também vinculam esse núcleo perturbado à vida social, afirmando que a confusão da psicose coincide com a incapacidade de julgar os limites entre o eu e o outro. O eu central não é meramente ‘interno’, mas está relacionado às dificuldades em estabelecer um relacionamento de ‘eu-Outro’ que permitiria entender a si mesmo como um ‘eu’ em primeiro lugar.

“O desafio terapêutico pode, portanto, consistir em fornecer um ambiente social que considere as frágeis fronteiras interpessoais, oferecendo oportunidades de engajamento.”

Um dos efeitos desse distúrbio básico é a dificuldade de navegar em ambientes complexos. Os autores explicam que as enfermarias psiquiátricas convencionais costumam ter listas estranhas e alienantes de regras e demandas sociais, o que pode confundir as pessoas que sofrem de psicose. A casa Soteria, por outro lado, estabelece um ambiente ‘normal’. Isso pode ser tão simples quanto uma máquina de café, uma mesa com cadeiras e um baralho de cartas, todos situados em um ambiente pequeno e ‘aconchegante’ com carpete para atenuar o excesso de ruído.

Os papéis sociais também são bem definidos, como ‘hóspede” e ‘hospedeiro’, em vez da complexa hierarquia de um hospital psiquiátrico. Os autores argumentam que esse tipo de ambiente ‘normal’ é menos confuso e pode permitir um mundo mais relaxado e familiar para os indivíduos navegarem, reduzindo em última análise a tensão emocional.

Um dos pilares do modelo de Soteria é o que os autores chamam de ‘estar-com’. É descrito como semelhante à relação original entre cuidador e criança, a partir da qual o eu principal é estabelecido no desenvolvimento. Como a psicose é marcada por dificuldades com o relacionamento Eu-Outro, acredita-se que compartilhar espaço com indivíduos que sofrem de psicose pode ajudá-los a começar a desenvolver um Eu central mais robusto. Isso é alcançado através de uma forma atenciosa e atenta de se relacionar, correspondendo ao que os autores chamam de ‘sincronia’ ou ‘intercorporalidade’, explicada como o ritmo natural de ‘olhares, gestos e respostas afetivas’.

Indivíduos com um Eu central perturbado podem começar a sondar e testar com segurança os limites das pessoas que passam tempo com eles, levando a uma capacidade mais forte de refletir sobre si próprio e se ver como um indivíduo. Pode parecer o natural compromisso de sentar e conversar, passear juntos ou realizar tarefas mútuas.

“Isso pode preparar o terreno para outros atos de formação da individualidade, como trocar relatos em primeira e segunda pessoa, distinguir fantasias das percepções, verbalizar auto-perturbações difusas ou contextualizar experiências com relação ao tempo e ao local, aproximando novamente o processo ao que ocorre durante a infância e adolescência. Eventualmente, uma perspectiva de terceira pessoa pode ressurgir, a partir da qual o indivíduo pode refletir sobre suas suposições e experiências.”

Um segundo pilar é chamado de ‘fazer-com’. É descrito como uma extensão de ‘estar com’ no contexto do ambiente social de Soteria. Cozinhar, limpar e outras tarefas mútuas oferecem uma oportunidade para um maior envolvimento social e consolidação de um eu central mais forte, além de desenvolver habilidades essenciais para a vida, muitas vezes prejudicadas em indivíduos com diagnóstico de esquizofrenia.

Os efeitos de ‘fazer-com’ abrangem tudo, desde o fortalecimento dessas habilidades sociais e da vida necessárias até a construção de um ‘esquema motor’ mais coerente, à medida que os indivíduos que sofrem de psicose frequentemente enfrentam uma sensação de corpo e mente fragmentados. A repetição corporal e a solução de problemas, fundamentadas em um ambiente social seguro, podem fornecer um espaço de cura para essa fragmentação. Essas tarefas podem ajudar a treinar as habilidades de concentração e memória, reconstruindo a base social, cognitiva, emocional e corporal do eu central.

“Portanto, estar-fazendo-com enquanto uma maneira holística de responsabilidades comunitárias designadas mutuamente oferece vários caminhos para promover a restituição de uma vasta gama de aspectos da individualidade subjacentes a muitas habilidades mais elevadas, motoras e sociais”, escrevem os autores. “Em um contexto mais amplo, essa prática coletiva diária pode ajudar as pessoas com a síndrome da esquizofrenia a restabelecer maneiras de senso comum de interagir e, assim, reabitar seu mundo social …”

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Nischk, D., & Rusch, J. (2019). What makes Soteria work? On the effect of a therapeutic milieu on self-disturbances in the schizophrenia syndrome. Psychopathology, 1-8. (Link)

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Equipe MIA Research News: Micah Ingle é um estudante de doutorado em Psicologia: Consciência e Sociedade na Universidade do Oeste da Geórgia. Ele publicou abordagens terapêuticas centrando a pessoa ao contexto e às características das pessoas com alta empatia, em oposição ao modelo médico individualizante. Seus interesses atuais incluem a interseção de estruturas sociopolíticas / econômicas e saúde mental, individualismo em psicologia, gênero, psicologia da libertação e perspectivas mitopoéticas inspiradas pelo pensamento junguiano.