Identidade e Emancipação: a experiência de usuários de CAPS no Blog Libertando a Mente

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Recentemente falamos aqui no Mad in Brasil sobre o Libertando a mente, um projeto de que utiliza o blogue como ferramenta de inclusão digital e social. Hoje o Blog Libertando a Mente está no ar e vamos falar um pouco sobre os processos que envolveram o lado social dessa dupla proposta de inclusão.

Em abril de 2018 um grupo de usuários do Centro de Atenção Psicossocial Carlos Augusto da Silva Magal (CAPS-Magal) ocupou uma sala do Laboratório Internet, Saúde e Sociedade (Laiss) na Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Naquela ocasião funcionários do Caps souberam das atividades de inclusão digital realizadas pelo laboratório e enxergaram ali uma oportunidade. A situação foi um pouco caótica e suscitou nos profissionais presentes a necessidade de um método. A experiência deu origem ao projeto de divulgação científica “Eu quero entrar na rede: um blogue sobre saúde mental construído por pessoas em sofrimento psíquico”, que alguns meses depois seria aprovado no Edital para Projetos de Divulgação Científica da Vice-presidência de Educação, Informação e Comunicação da Fundação Oswaldo Cruz (VPEIC/FIOCRUZ).

O Projeto aprovado contava a coordenação do professor Paulo Amarante e formava uma parceria entre o Laiss, o CAPS Mangal e o Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial (LAPS). Uma equipe multidisciplinar, que incluiu profissionais da área da saúde e das ciências humanas e sociais dos três parceiros, passou a pensar como o se daria essa experiência comunicativa. Tendo como base projetos de inclusão anteriormente realizados no Laiss pelo professor André Pereira Neto, ficou definido que os 10 usuários selecionados pelos profissionais da CAPs Magal receberiam uma bolsa de 100 reais e os encontros seriam semanais no Laiss, sob minha mediação.

Cidadãos sem documentos

No primeiro dia a equipe do Laiss esperava pelos usuários no laboratório, eles seriam acompanhados até lá por um profissional do CAPs. No horário marcado eles não chegaram, 10 minutos de atraso se seguiram à uma ligação do profissional que os acompanhava avisando que eles não poderiam entrar pois estavam sem seus documentos. A sede da Fiocruz fica localizada na Cidade do Rio de Janeiro, entre as comunidades de Manguinhos e da Maré, e possui duas entradas, uma de cada lado, pela Avenida Leopoldo de Bulhões e pela Avenida Brasil. É exigido, daqueles que entram a pé no espaço da instituição, documentação de identificação.

O episódio se repetiria mais algumas vezes e acabou gerando o questionamento: por que várias dessas pessoas, moradoras de comunidade constantemente expostas à violência, não portavam documentos de identificação? A resposta foi simples e cruel: porque depois de anos de curatela, silenciamento e limitação de acesso à diferentes tipos de espaço, alguns deles não apreenderam esse código de convivência que, por mais simples que seja, compõe o “ser cidadão”. Eles vinham de uma vivência limitada de cidadania, o que José Murilo de Carvalho1 vai chamar de cidadania incompleta.

O primeiro passo do projeto não foi ensinar sobre a reforma psiquiátrica ou comunicação, mas, nesse ponto, sobre ser um cidadão ‘comum’. Esse processo envolveu a desconstrução de profissionais envolvidos no projeto e dos próprios usuários. Como nós profissionais, desde sempre cidadãos e constantemente portadores de direitos e deveres, entre eles o de se identificar quando solicitado por uma autoridade, poderíamos ensinar para um indivíduo socialmente silenciado e invisibilizado que ele precisava andar com seus documentos? E ainda mais importante: como um indivíduo considerado louco, vítima constante de estigmatização, pode entender que ele é cidadão comum? Nessa experiência está refletida a cidadania do doente, citada por Susan Sontag2 em sua reflexão acerca da doença como metáfora. Uma cidadania que é diferente para saudáveis e adoecidos.

O começo do projeto envolveu uma conversa com os usuários acerca dos perigos que envolviam moradores de favela, alguns deles negros e especialmente atingidos pela violência urbana a que todos estão expostos, circularem por territórios violentos sem nenhuma forma de identificação. Iniciado o processo de compreensão acerca do tema, cada um ganhou um crachá que os identifica como alunos do Laiss e permite a circulação no espaço da Fiocruz. Foi surpreendente como aquele pedaço de papel dentro de um plástico pendurado por um cordão foi emancipador.

O território da ciência

Eles não dependiam mais de um profissional do CAPs para entrar da Fiocruz, não eram mais intrusos naquele espaço da ciência. Tal fato se tornou visível em uma primeira atividade de texto, na qual foi solicitado que eles fizessem um pequeno relato sobre o que sabiam da Fiocruz e sua relação com ela. Em geral eles falaram da experiência de serem bem recebidos e alguns deles falaram sobre a admiração que tinham com a instituição, mas que era acrescida do distanciamento, de um olhar estrangeiro, como é possível perceber em um dos relatos:

Bem, apesar de nunca ter entrado no núcleo da Fiocruz, sempre tive curiosidade em conhecer o lugar. Sempre passei pela Av. Brasil e observava o museu que até mesmo a distância é notável.”

Mesmo sendo moradores da região e tendo o Castelo símbolo da instituição como parte do cenário cotidiano, eles eram externos à ela. Uma parte deles nunca havia entrado na Fiocruz ou apenas para eventos para externos, como campanhas de vacinação, com exceção de um deles que havia feito um curso de agente comunitário. Essa é uma questão que nos leva a pensar como na maioria das vezes o ‘território’ do qual tanto falamos em nossos estudos de saúde carregam em si uma lógica de alteridade. Mesmo pensando o território como simbólico, quando tratamos de regiões periféricas e de favela ele é na maioria das vezes lá fora, ocupado por indivíduos outros.

Pouco a pouco, a liberdade de circular pela Fiocruz fez deles parte. Se transformaram de pessoas que não carregavam documentos e eram barrados na portaria, a transeuntes comuns que passam pelos seguranças da portaria de cabeça erguida. 

O relato de outro usuário mostra como a identificação como alunos indiferenciados, sem a marca do estigma, permitiu a eles uma nova experiência como indivíduos, permitido a construção de relações mais iguais e um sentimento de pertencimento ao espaço científico:

O Laiss que abriu as portas para nós entramos no mesmo mundo que as pessoas “normais” vivem, no projeto “Eu quero entrar na rede”. Então a primeira visão que eu tive sobre a Fiocruz foi ótima, pessoas bem receptivas, segurança e é um lugar super calmo e respeitoso. Todas as pessoas são educadas conosco, não somos vistos apenas como pessoas especiais e sim como alunos de um novo projeto.”

Essa experiência nos mostrou que pensar saúde mental é pensar a identidade. Pensar novas formas de construir o saber sobre saúde mental e também novas formas de construir o ser indivíduo e cidadão. Desconstruir os muros mentais é fazer de qualquer território o território da loucura e da ciência, e portanto, de inclusão e emancipação.

Bibliografia:

1 CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.

2 SONTAG, Susan. A doença como metáfora, AIDS e suas metáforas. Rio De janeiro: Companhia de bolso, 2007.

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Bruna Vanessa Dantas Ribeiro, Jornalista. Mestre em Comunicação pela Universidade Federal de Goiás (UFG) Doutoranda em Informação e Comunicação em Saúde pelo Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (Icict/Fiocruz). Mediadora do projeto “Eu quero entrar na rede: um blogue sobre saúde mental construído por pessoas em sofrimento psíquico”.