Democratização do debate sobre saúde mental: por que precisamos falar sobre o assunto?

1
1997

Meu interesse pelo campo da saúde mental se deu por meio do trabalho de conclusão de curso da faculdade de jornalismo, no ano de 2011. Aflita e com muitas dúvidas, caiu no meu colo contar a história de um hospital psiquiátrico de Goiânia. O tema me comoveu de tal forma que passei a ser voluntária nesse mesmo hospital e fiz o mestrado sobre representação da loucura na televisão. Durante muito tempo eu fui a única aluna a falar sobre o assunto no Programa de Pós-Graduação em Comunicação na Faculdade de Informação e Comunicação (FIC), da Universidade Federal de Goiás.

Percebi que se quisesse me aprofundar no tema apenas o campo da comunicação não atenderia aos meus anseios. Hoje desenvolvo uma pesquisa de doutorado sobre a inclusão digital de usuários de Centros de Atenção Psicossocial (Caps) na Fundação Oswaldo Cruz. Já se passaram quase 10 anos que pesquiso saúde mental e durante todo esse tempo foram inúmeras as vezes em que me perguntaram o porquê dessa escolha, ao que se seguiam questionamentos sobre a sanidade mental dos meus familiares e até a minha própria. Isso ocorre unicamente porque eu não pertenço aos espaços psiquiátricos.

 

Para a maioria da população não é compreensível que uma pessoa sem uma conexão profissional ou pessoal com o campo da saúde mental se dedique a estudar e a trabalhar com o tema, que ainda parece muito restrito. Quando se é um estrangeiro na terra da saúde mental, falar sobre o tema provoca um ar de admiração e surpresa, como se lidar com o assunto sendo um “leigo” fosse algo que ficasse entre o divino e o profano.

Na última década muita coisa mudou no debate público sobre minorias no Brasil. A partir da década de 1990 em nível mundial e 2000 no Brasil, os movimentos sociais se fizeram ouvidos e passaram a pautar a agenda pública com questões identitárias de populações vulneráveis. Esses movimentos pelos direitos civis fizeram com que questões importantes como racismo, feminismo, direitos de povos originários, população LGBTQI+ etc. passassem a ocupar um espaço maior nos debates da sociedade de uma forma geral, inclusive na mídia. Entretanto, mesmo com esse cenário cada vez mais favorável, quando tratamos da loucura os muros mentais deixados pelos séculos de internação ainda impedem grandes saltos. Isso tem uma forte relação com um imaginário popular sobre a loucura, no qual saúde mental é coisa de médico e de doido.

Essa ideia acaba por ter algumas consequências sérias: a falta de informação geral sobre o assunto; a manutenção de estereótipos e preconceitos; a dificuldade de pessoas comuns assumirem que precisam de ajuda e buscarem tratamento; uma maior susceptibilidade à medicalização em saúde mental; a limitação em se discutir políticas públicas e o constante risco de retrocesso nos processos da Reforma Psiquiátrica brasileira.

Um novo debate à luz da Reforma Psiquiátrica

A partir desse movimento muitos avanços foram possíveis, um deles é a instituição de 18 de maio como dia Nacional da Luta Antimanicomial e a posterior ampliação para o mês da pauta. Durante todo o mês de maio são realizadas em todo o Brasil ações que trazem luz à discussão, que apesar de não atingir toda a população, ganha maior visibilidade na mídia promovendo uma ampliação do debate.

Nos últimos anos outros focos de discussão tomaram forma independentes do movimento da Reforma Psiquiátrica através de campanhas como o Setembro Amarelo, de prevenção ao suicídio, e o Janeiro Branco, de promoção da saúde mental. Se por um lado essas campanhas colocam o tema em pauta na mídia e na sociedade, por outro, dão destaque a um viés medicalizante tendo psicopatologias como questões centrais do debate.

Para a psiquiatra, Professora e pesquisadora do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial (LAPS) da Fundação Oswaldo Cruz, Ana Paula Freitas Guljor, essa ainda é uma questão complexa. “O acesso ao tema se dá por uma perspectiva de agravo e doença com receitas de tratamentos psicoterápicos e medicamentosos e não a partir da transformação do lugar social da loucura por uma vertente emancipatória”, afirma a profissional. A realidade é que mesmo com grandes esforços, a ampliação e o aprofundamento do debate com a sociedade ainda é um desafio para o movimento.

Como falar sobre saúde mental fora dos espaços psiquiátricos?

Tendo como base os movimentos em saúde mental, que há quatro décadas encabeçam as discussões e ações acerca do tema no Brasil e que hoje contabilizam muitas conquistas, é necessário repensar os espaços de debate. Ana Paula Guljor acredita que apesar de importante para o movimento da Reforma Psiquiátrica, a democratização do debate ainda é um aspecto menos valorizado no cotidiano de trabalhadores em saúde mental.

Nesse sentido, mais do que apontar os problemas na perpetuação do modelo institucional da discussão sobre saúde mental, cabe pensar junto com os movimentos de profissionais, pessoas em sofrimento mental e familiares a democratização e propor soluções. É aí que fica evidente uma questão fundamental: como superar o cenário que está posto? Um primeiro passo está em tirar o debate acerca do sofrimento mental das mãos de profissionais de saúde, de dentro dos hospitais, Caps, consultórios etc. e levá-lo para outros espaços e pessoas. Precisamos ouvir mais vozes e nos fazer ouvidos e isso pode se dar principalmente por meio da arte, da comunicação e da educação.

Expressões artísticas produzidas por pessoas em sofrimento mental têm sido efetivas em construir canais de troca entre esses indivíduos e a sociedade, além de levar a temática a outros espaços. As produções artísticas vão de encontro com a dimensão sociocultural da Reforma Psiquiátrica, promovendo uma maior integração entre o campo da saúde mental e a sociedade. Obras que carregam sentidos extravasam os muros do hospital e têm grande potencial para abrir espaços de diálogo e mostrar que existem subjetividades fora da doença. O trabalho desenvolvido pela psiquiatra Nise da Silveira no Centro Psiquiátrico Nacional, que em 1999 passou a receber o nome da médica, é um exemplo. Iniciado em 1952, o Museu de Imagens do Inconsciente mostra o poder das expressões artísticas no cuidado com pessoas em sofrimento mental e na abertura de espaços de fala.

Mais à frente, os novos dispositivos que surgiram com a Reforma Psiquiátrica foram terreno para emergência de inúmeras iniciativas que promovem e ampliam o debate sobre saúde mental através de diferentes manifestações artísticas. Formando em 2000, o grupo Harmonia Enlouquece une usuários e profissionais do Centro Psiquiátrico Rio de Janeiro (CPRJ). Com músicas que falam da realidade de pessoas em sofrimento, em 2009 a banda chegou a ter uma música, Sufoco da vida na trilha sonora da novela Caminho das Índias, da Rede Globo.

No carnaval a loucura ganha as ruas do Rio de Janeiro e atrai foliões para festejar e divulgar as pautas da saúde mental através dos blocos Tá Pirando, Pirado, Pirou!, que existe desde 2005, e Loucura Suburbana, formado em 2001 e que em 2010 tornou-se o primeiro Ponto de Cultura em saúde mental da cidade. Esses projetos impulsionam a discussão para fora das instituições psiquiátricas de forma leve e descontraída, promovendo a interação com a sociedade.  Esses são apenas alguns exemplos de iniciativas que vão se espalhar pela música, teatro, artes plásticas, etc.

Tratando especificamente da comunicação, a democratização do debate passa por duas questões: a simplificação do discurso profissional e a emancipação de pessoas em sofrimento mental e amplificações de suas vozes. Simplificar o discurso médico e profissional no geral é uma forma de fazer com que informações seguras e de qualidade sejam divulgadas e mais facilmente absorvidas pelas pessoas comuns. O profissional de saúde não deve ter medo de se comunicar de forma simples e objetiva, nem de compartilhar espaços de fala e conhecimento com o outro, especialmente com pessoas em sofrimento mental. É papel desses profissionais promover um debate aberto, plural e democrático que leve mais informação à sociedade e fomente a emancipação de pessoas sofrimento mental.

No caso do Brasil, em que séculos de reclusão afastaram essas pessoas do convívio em sociedade, não é possível falar em democratizar o debate da saúde mental se não pensamos a emancipação desses indivíduos. O sequestro institucional foi também um sequestro discursivo. Promover a integração social passa pela retomada das narrativas por parte das pessoas em sofrimento mental. A construção de canais e redes prioritariamente autônomas é uma forma de cortar mediadores e criar pontos de encontro e troca de conhecimento entre usuários e a sociedade, inclusive na grande mídia. Em um cenário de multiplicação de tecnologias da informação e comunicação (TICs), desenvolver habilidades tecnológicas e facilitar o acesso são formas de promoção da inclusão social.

Nesse sentido, o trabalho desenvolvido desde 2018 com usuários do Caps Magal no Blogue Libertando a Mente tem mostrado o potencial do uso das TICs para popularizar o tema e promover a inclusão digital e social de pessoas em sofrimento mental. Outro exemplo de maior alcance é o Podcast Esquizofrenoias, da jornalista Amanda Ramalho, que convive com a depressão e a ansiedade desde a adolescência. O programa começou a ser produzido em 2018 e trata do assunto de forma natural, trazendo as experiências da jornalista e de convidados, além de posicionamentos de especialistas.

Já na área da educação, pensar os processos e espaços de ensino e aprendizagem também é uma forma de promover o debate. Isso pode se dar tanto na formação profissional em diversas áreas do conhecimento no ensino técnico e superior, como na formação de crianças e jovens em idade escolar. Para uns, esse debate pode ocorrer na formação e na atuação profissional. Para outros, ainda há tempo de promover uma educação básica que amplie as noções de saúde mental e a liberdade para falar sobre o assunto.

O livro infantil Paulinho e a pílula anti-pulo, de Clara D’ávila e Lucas Gonçalves, com ilustrações de Marcos Chica Díaz, mostra como é possível levar a discussão para crianças. Com um texto simples e curto, em português e espanhol, e imagens coloridas e lúdicas, o livro fala sobre a medicalização infantil por meio da história do menino Paulinho e de sua incontrolável mania de pular. Sem adultos que falem abertamente e de forma fundamentada sobre saúde mental, dificilmente teremos próximas gerações que o farão e estaremos fadados à perpetuação dos preconceitos e do debate institucionalizado.

Por fim, a questão é complexa e deve ser pensada coletivamente: profissionais da saúde mental, usuários, familiares, sociedade civil e entidades governamentais. A discussão restrita produz uma população desinformada sobre o tema e alheia aos processos civilizatórios – direitos, cidadania, inclusão social e diversidade – ligados à saúde mental. Isso reduz a possibilidade de um debate rico e democrático sobre saúde pública no Brasil. Sem debate democrático não há ampliação e defesa de direitos.

Referências bibliográficas:

AMARANTE, Paulo. Saúde mental e atenção psicossocial. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2007.

AMARANTE, Paulo . Loucos pela vida: a trajetória da reforma psiquiátrica no Brasil. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 1995.

1 COMENTÁRIO